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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.44 no.80 São Paulo jun. 2011

 

INTERFACE

 

Origens literárias do modelo psicanalítico da mente1

 

The literary origins of the psychoanalytic model of mind

 

Origen literario del modelo psicoanalítico de la mente

 

 

Marisa P. Mélega2

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo - SBPSP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A evolução do modelo da mente é aqui abordada por meio do modelo epistemológico de Bion − em que os pensamentos são vistos como criadores de significados − e da contribuição de Meltzer à teoria da criatividade − segundo a qual a criatividade depende da função mental criadora dos objetos internos. Ao considerar o modelo psicanalítico da mente como um processo estético e imaginativo, e ver nele forte semelhança com a experiência literária, a autora complementa sua argumentação apresentando resumo de rastreamento empreendido por Meg Harris Williams na busca de tais origens na literatura inglesa.

Palavras-chave: Modelo de mente, Criatividade, Conflito estético, Literatura.


ABSTRACT

The author approaches the evolution of mind's model through Bion's epistemological model – where thoughts are viewed as creating meanings – and Meltzer's contribution to the theory of creativity – in which the creativity depends on the mental creative function of internal objects. Regarding the psychoanalytic model of mind as an esthetic and imaginative process, finding remarkable similarities with literary experiences, the author also presents a summary of Meg Harris Williams' research in the literary origins of the psychoanalytical model of mind in English Literature.

Keywords: Psychoanalytic model of mind, Creativity, Esthetic conflict, Literature.


RESUMEN

La autora aborda la evolución del modelo de la mente valiéndose del modelo epistemológico de Bion, en el cual los pensamientos son vistos como creadores de significados. También se sirve de la contribución de Meltzer a la teoría de la creatividad, al afirmar que la creatividad depende de la función mental creadora de los objetos internos. Al considerar los modelos psicoanalíticos de la mente como un proceso estético e imaginativo, la autora nota fuertes semejanzas con la experiencia literaria. Con la intención de rastrear los orígenes literarios del modelo psicoanalítico de la mente, se describe, resumidamente, el camino de Meg Harris Williams por la literatura inglesa.

Palabras clave: Modelo de mente, Creatividad, Conflicto estético, Literatura.


 

 

O modelo psicanalítico da mente modificou-se bastante ao longo do tempo. Neste trabalho, parto do modelo notadamente epistemológico preconizado por Bion.

Ao formular a teoria do pensar (1962), Bion dividiu a vida mental em espaços simbólicos e não simbólicos, enfatizando o fato de que a mente era um instrumento para refletir acerca das experiências emocionais.

A primeira contribuição de Bion para o desenvolvimento da personalidade é a sua descrição da relação mãe-filho, em que o comportamento materno não é visto apenas como capaz de oferecer cuidados fisiológicos ou atendimentos que possam conter a ansiedade do bebê dentro de limites toleráveis.

Bion acentua que a mãe precisa pensar como o bebê sente e "pensa", para ajudá-lo a pensar sobre si mesmo. Servindo-se do conceito de identificação projetiva de Klein, acrescentou-lhe uma dimensão "realista", por entender que o único modo de comunicação do bebê acontece no início, por identificação projetiva. Ele projeta a parte perturbada de sua personalidade na mãe e esta, com sua rêverie, recebe tais comunicações em seu inconsciente, põe ordem no caos de sensações e pensamentos e os devolve de modo mais tolerável ao bebê, para que possam ser internalizados. A partir da experiência, promove-se o aprendizado que contribuirá para o crescimento da mente, nutrida por significados e imaginação.

Bion descreveu o processo de elaboração das experiências emocionais chamando-o de função alfa, uma abstração que gera metáforas, mitos e símbolos para dar significados às experiências emocionais. Em sua teoria do pensar, os pensamentos são vistos como criadores de significados e a mente, como vivendo num mundo significante, e não simplesmente como um órgão de adaptação ao mundo exterior.

Meltzer, lançando mão das contribuições de Klein e Bion, avança na formulação do conceito de superego, contribuindo com um importante aporte à origem da criatividade. Em Além da consciência, desenvolve ele, passo a passo, a ideia que o leva à nova formulação.

Conforme Meltzer, Bion sugeriu que o que interessa é pensar as experiências emocionais que suscitam conflitos entre as emoções e as antiemoções, e a forma como pensamos vai, por obra da própria emoção, sendo transformada em sonho.

Conclui-se que, para Bion, o sonho é pensamento: o primeiro pensamento. É a representação simbólica inicial do significado da experiência emocional, é a pedra fundamental sobre a qual necessariamente se apoiam todos os níveis de pensamento mais elaborados, tornados abstratos e organizados.

Quanto à passagem entre a emoção e o sonho, que dá representação à emoção, Bion a deixou envolta em mistério. No dizer de Meltzer:

O conceito de mistério, de que há mistérios sobre o funcionamento mental …, onde a mente não consegue penetrar, seja nos espaços pertencentes a ela própria, seja nos de outra pessoa – esse é o conceito que estabelece uma conexão entre a psicanálise, a história da arte e o pensamento literário, especialmente na Inglaterra, com toda uma linha de desenvolvimento que vai de Shakespeare a Milton e aos poetas românticos, particularmente Wordsworth, Blake, Coleridge e Keats, durante o século XIX. A meu ver, esse é um tributo que devemos a Bion, pelo mérito de ter estabelecido esta conexão entre o pensamento psicanalítico e a evolução do pensamento literário. (Meltzer, 1992, p. 404)

A constituição de uma zona de mistério afeta, no entender de Meltzer, o conceito de superego:

Bion achava que a primeira realização da função alfa na vida do bebê não é realizada pelo bebê, mas a primeira realização pela função alfa dessa misteriosa transformação da emoção em símbolo (a ser usado na atividade de sonhar) devese à mãe. O bebê sendo amamentado, no epítome de sua relação com a mãe, não está se alimentando simplesmente com o leite do seio, mas também com a rêverie da mãe – que lhe chega através dos olhos e da voz maternos, bem como da forma como ela o segura, e assim por diante. A mãe transmite ao bebê algo que elaborou em sua mente, associado ao estado emocional do bebê, em forma simbolizada, dando-lhe condições de ter um sonho e assim começar a pensar sobre a experiência que está tendo. Ora, se o bebê internaliza não apenas um seio e um mamilo que o alimentam, mas um seio e um mamilo pensantes, temos um superego pensante, que será o iniciador do pensar sempre que o self se defrontar com uma nova experiência emocional para a qual não tenha equipamento para pensar. A necessidade de ter um objeto pensante que possa ser reativado no nível infantil sempre que o self se defrontar com uma nova experiência é uma necessidade de todo indivíduo. Ter um objeto capaz de ajudá-lo a simbolizar a experiência emocional e dar-lhe uma representação num sonho que será o início de seu pensar sobre essa experiência. (Meltzer, 1992, p. 406)

Deste desenvolvimento de Meltzer decorre um conceito de superego, de pais numa relação harmoniosa e que precisam ter uma área de privacidade onde se recolher, para que possam realizar seu ritual amoroso. Essa área de privacidade, no mundo interno:

é algo semelhante a uma câmara nupcial, onde os objetos internos têm condições de se recolherem para renovar sua conjunção recíproca, e fabricar bebês, que são também pensamentos, símbolos. Percebe-se que essa é também uma teoria da criatividade e não apenas uma teoria do desenvolvimento do self, criatividade que depende da função mental criadora dos objetos internos. (Meltzer, 1992, p. 406)

Segundo essa teoria, toda a função criadora artístico-científica tem suas raízes na criatividade desses objetos internos, que dependem da permissão do self para se retirar em sua câmara nupcial e renovar sua combinação um com o outro.

Sabemos, através da prática analítica, que tremendas forças da personalidade se alinham para não permitir tal combinação, e que no modelo teórico de Bion são as forças de menos amor – puritanismo, menos ódio – hipocrisia e menos sede de conhecimento e compreensão – filistinismo, resistência a qualquer ideia nova.

E o que leva a resistir à beleza da criatividade? Ou melhor, que dores psíquicas surgem numa personalidade ao se defrontar com o objeto estético em sua beleza, sendo o protótipo original desse objeto estético a mãe com seu bebê no colo a amamentá-lo?

Meltzer (1998) nos brinda com mais uma contribuição original: a conceituação do conflito estético e seu papel no desenvolvimento emocional, na violência e na arte. Ele toma como ponto de partida a descrição que Bion faz das emoções como vínculos que, além de amor e ódio, incluem o conhecer, e realiza um salto imaginativo para confrontar os vínculos emocionais positivos com os vínculos emocionais negativos, como ocorre na tradição de Milton, Blake e Coleridge. Demonstra também como estão entrelaçados entre si os vínculos positivos, citando Blake em 'O matrimônio do céu e do inferno' (The marriage of heaven and hell), e como estão entrelaçados os vínculos negativos, referindo-se ao 'inimigo asqueroso' (foul fiend) de Coleridge.

Bion, ao introduzir o conceito de "mudança catastrófica" – ele que já tinha aderido à formulação de Keats: "a beleza é a verdade, a verdade é a beleza" – iniciou por esclarecer as implicações desta formulação. É a "nova ideia" a que golpeia a mente, como uma catástrofe, com a finalidade de ser assimilada, para pôr em movimento toda a estrutura cognitiva. A nova ideia se apresenta, no pensamento de Bion, como uma "experiência emocional da beleza do mundo e sua maravilhosa organização".

O conflito dos vínculos emocionais positivos e negativos, que rodeiam o desejo e o interesse, está sempre presente, e prazer e dor estão inextricavelmente unidos. Tal conflito deve encontrar sua representação simbólica, graças ao trabalho da função alfa, e estar disponível para os pensamentos oníricos, para a transformação em linguagem verbal ou em outras formas simbólicas, como nas artes.

Tolerar esse conflito depende da capacidade que Bion chamou de "capacidade negativa"; utilizando a conceituação de Keats, corresponde à capacidade de manter-se na incerteza, sem se esforçar para chegar a um fato ou a uma explicação.

Na luta contra o poder cínico dos vínculos negativos, a mente precisa tolerar a incerteza das relações íntimas, sendo este o centro do conflito estético. O conflito estético poderia ser enunciado em termos de impacto estético do exterior da bela mãe, a disposição de nossos sentidos, e o seu interior enigmático, que deve ser construído mediante a imaginação criativa.

A visão de Klein quanto ao fato de a posição depressiva ser um passo evolutivo depois da posição esquizoparanoide, segundo Meltzer, resulta numa visão trágica, por se inverterem os valores humanos, e se olhar para trás, para o objeto abandonado (ou perdido), em lugar de se olhar para a frente, para o desenvolvimento e a possibilidade de um objeto enriquecido, que a própria renúncia torna alcançável.

Essa visão é, para Meltzer, um vestígio da "agonia romântica", e implica uma estrutura linear de posse e perda, mais do que uma imagem complexa capaz de reunir o passado e o futuro na experiência presente. Foi o que Bion viu em sua fórmula posição esquizoparanoide (PS) e posição depressiva (PD), como a oscilação reiterada de integração de valores que deve ser vivenciada a cada "mudança catastrófica".

O elemento trágico na experiência estética reside não na transitoriedade, mas no caráter enigmático do objeto. No conflito estético, a experiência central da dor reside na incerteza, tendendo à desconfiança e à suspeita. A busca de conhecimento, o vínculo K, o desejo de saber, tornam possível dar ao objeto sua liberdade e liberta o sujeito da ânsia de gratificação e de controle sobre o objeto. Para Meltzer, este é o modus operandi para a mudança de PS para PD, onde se exerce a capacidade negativa e onde se encontram a beleza e a verdade.

O modelo psicanalítico da mente, que considera a psicanálise como processo estético e imaginativo, parece ter forte semelhança com a experiência literária, com a literatura e a psicanálise explorando o mesmo mundo mental, mas com instrumentos diversos.

Poetas e artistas, de maneira geral, sempre abordaram a realidade psíquica por meio de linguagem metafórica, para superar as restrições da linguagem racionalizante (lógica) em cada época e para tentar abarcar as constelações emocionais e os processos simbólicos do pensamento.

Em The chamber of maiden thought, Meg Harris Williams e Margot Weddel (1991) propõem um percurso pela literatura inglesa, com o intuito de rastrear as origens literárias do modelo psicanalítico da mente. Declaram, desde o início, que o sentido dessa exploração é o de ampliar o conhecimento e não o de propor uma visão redutora em que o conteúdo fantástico literário possa se tornar simples objeto da interpretação psicanalítica, com o que concordo inteiramente.

Meg Williams, escritora e artista com longa vivência no mundo psicanalítico e responsável por sete dos nove dos capítulos que compõem o volume, inicia o percurso analisando a obra de Shakespeare. Cada peça de Shakespeare – afirma ela – parece começar do mesmo jeito: um conjunto de personagens (talvez diferentes aspectos de um só) assimila, aos poucos, aspectos do mundo interior e revela de que modo a mente funciona.

Cada personagem, por sua vez, parece deixar entrever uma fresta que leva a habitações contíguas do pensamento – segundo a famosa metáfora de Keats, à "câmara do pensamento virginal" – e, mesmo sem desejar, a ela se dirige, movido por uma rede de tensões psíquicas que parece arrastar também os outros personagens, descortinando diante deles um novo mundo feito de forças insuspeitas.

A autora descreve e comenta a peça Ricardo II, em que encontra um modelo de desestabilização mental, originado a partir do interior, que mina o sistema de "supostos básicos" que cimentavam a estrutura da sociedade daquela época.

Esses supostos básicos concentram-se na imagem da mente-criança (o rei), protegido pela coroa-paraíso (o espaço da mãe): identificações estas cristalizadas no narcisismo. Tudo isso é demolido gradativamente, à medida que se produzem contatos emocionais − e o drama termina como o começo de uma nova história de reconstrução.

Ricardo II pertence ao grupo de dramas "líricos" da primeira maturidade de Shakespeare. Nos dramas "problemáticos" – sua produção intermediária –, Shakespeare está continuamente procurando a natureza das forças que obstaculizam a "rica prole", ou seja, os pensamentos criativos que emergem da sagrada casa da mente.

Em Hamlet, a estrutura da peça parece dilatar e explodir o modelo clássico da tragédia de vingança, sendo que desse modo um drama latente e metafórico emerge e se torna um drama onírico.

Hamlet está atormentado pela sensação de que todos querem escrever sua história, tocar suas notas, descobrir seu mistério, antes que ele possa enfrentar o problema de sua verdadeira identidade. Ele encarna o ideal do príncipe do renascimento. O espelho dos costumes e dos modos, o objeto de todos os olhares. Seu formato parece perfeito até o momento em que ele tem que se tornar príncipe, no lugar de continuar representando um papel.

A peça explora as frustrações e os subterfúgios que o espírito encontra na sua busca de "reciprocidade simbólica" ou de compreensão. Hamlet enfrenta dolorosas profundezas na busca da própria identidade. "Senhor, não sabemos o que somos, e não sabemos o que podemos ser", diz ele, em um dos seus discursos.

No drama, Shakespeare mostra como o problema da formação do símbolo (ou percepção do símbolo) é intrínseco ao autoconhecimento da mente. A obscura identidade do futuro príncipe da Dinamarca só poderá assumir sua verdadeira forma se forem estabelecidas relações entre o self e seus objetos internos.

Se as mortes de Ricardo II e Hamlet foram, em certo sentido, acidentes que permitiram encerrar o drama, sem servirem de indicadores do fim de uma luta espiritual e do início de uma nova época, a morte do rei Lear, na peça homônima (1605), não é um fechamento, mas um ponto essencial da metamorfose. A peça, segundo Williams:

representa, quem sabe, a expressão modelar de um nível de desenvolvimento da mente-menina, que apresenta as etapas da perda da onipotência, da desintegração turbulenta e da recuperação final de uma visão estética, que sustenta a capacidade que a mente tem de criar a si mesma. Em Lear, a luta se dá entre a sede de autoconhecimento (sabedoria) e as tentações da onipotência ignorante (danação). (Williams; Weddel, 1991)

Sua crença nos deveres das filhas é expressão de uma onipotência ilusória que é esvaziada gradativamente (exceto quando se refere a Cordélia), até revelar um homem sem abrigo, no centro de sua tempestade interior, e o acontecer da catastrófica metamorfose. Lear adquire nova identidade, por meio da linguagem da loucura, que expressa a "cegueira" da visão interna e do verdadeiro sentimento que é "o que sentimos, e não o que deveríamos dizer".

Em seguida, Meg Williams analisa o modelo de mente − que é ali entendida como tendo um lugar próprio − contido na obra de Milton.

Em sua dupla figura de pregador e poeta, Milton encorajou seus leitores a utilizarem sua capacidade de aprender graças à experiência emocional. Em sua obra máxima, O paraíso perdido, sua busca poética propõe desvincular a dependência da mente dos polos estáticos − o céu e o inferno.

Adão e Eva em sua queda, com o abandono da onipotência e a reintegração da humildade, percebem que "diante deles está o mundo, onde, guiados pela providência, escolheram um lugar para morar". Eles percebem que "têm o mundo à frente". Satanás sente inveja e ciúmes e introduz a morte no jardim do Éden.

A morte se torna para Milton uma transformação, não um fim ou uma prisão, um impulso em direção ao desenvolvimento, a tal ponto que Blake pôde dizer que Milton "era um verdadeiro poeta, mas da parte do Diabo, sem sabê-lo".

De fato, em O paraíso perdido, Deus é o porta-voz do poeta, um organizador autoritário por meio de quem Milton prega aos homens "as vias divinas", enquanto o diabo representa o veículo do espírito poético, até a queda do homem, quando esse espírito passa para Adão e Eva.

A complexidade da figura do diabo fará com que ele se torne parte da consciência do novo mundo, numa integração criativa de amor e ódio. No manuscrito que contém os primeiros poemas miltonianos, há uma carta em prosa (1633), em que o poeta se refere à obrigação que sente de fazer o uso do talento que lhe havia sido dado por Deus. O reconhecimento da inspiração (musa celeste, musa mãe) e do sentido do dever são pontos firmes na poética de Milton, tal como o já mencionado conceito de desenvolvimento.

Para Milton, a poesia representava a orientação vital interna que devia impregnar cada estrutura de conhecimento e cada habilidade intelectual. Mais − embora ele não chegasse a escrever nenhum tratado de poética: a poesia para ele era entendida não como um mero ofício, mas como o princípio-base da aprendizagem. Ele desenvolveu essa ideia num outro tipo de tratado − 'Tratado sobre a educação' (Aeropagitica and of education, 1664) −, no qual explicita que considera ideal o currículo que culmina com as "artes orgânicas": lógica, retórica e poesia.

"O primeiro poema em que Milton realiza um genuíno enfrentamento emocional, dentro da experiência poética, com a ideia de 'queda' ou 'morte é Lycidas'" − frisa Meg Williams − "o poema-chave que ele desenvolve antes de O paraíso perdido".

Lycidas (1637) foi composto após a morte de sua mãe. O verdadeiro argumento do poema é a capacidade de ser a mãe interior − ou musa, ou anjo da guarda − resiliente diante da morte, e sobrepujar as marés da paixão, cuja intensidade ameaça submergir o poeta. A figura do 'jovem Lycidas' representa um aspecto do poeta cuja identidade é dividida em duas partes: uma que parece perdida, morta, submergida por marés de dores assoberbantes, tumultuosas, e outra que empreende a tarefa de encontrá-lo (a ele, como poeta elegíaco).

No final, a descoberta do corpo de Lycidas, afogado, corresponde a uma "restauração interior". A função de Lycidas, no desenvolvimento mental de Milton, é a de estabelecer um tipo de musa dentro dele, capaz de resistir à destruição do ícone (a explosão emocional) e às forças negativas da onipotência invejosa (os falsos poetas, o 'caminho' facinoroso) e conseguir, então, restaurar o conceito de melodia ou de harmonia de modo que não seja um disfarce superficial, mas um símbolo genuíno, capaz de fazer frente à experiência catastrófica original do 'afogamento'. Isso ocorre no último movimento do poema, que começa com o reaparecimento do corpo perdido de Lycidas aos olhos da imaginação.

Meg Williams caracteriza, na continuação, o modelo de mente de Blake como o "olho da mente". Em Blake, o conceito do Deus transcendente e inalcançável é substituído pela visão de uma família divina, composta por divindades que guiam a mente criativa, sendo responsáveis pela expansão sem limites da visão interior para o infinito.

A imagem de Blake do mundo interior criativo (realidade psíquica), que ele chamou de Jerusalém, é composta pelas divindades internas, a saber: Jesus (Deus, como Jesus), as musas femininas ou filhas de Beulah (o mundo dos sonhos), colaboradoras de Jesus, que cuidam da alma sofredora e dos pequenos meninos de Jerusalém (as particularidades minúsculas da existência mental, invenções embrionárias da imaginação ou da visão, intelectual). Juntos, constituem todos a "humanidade divina", ou seja, a própria humanidade, porque todas as divindades residem no "coração do homem".

O processo que leva ao conhecimento dessas relações internas constitui "a construção de Jerusalém". Para William Blake, ver o "infinito" significa ser "humano". "Se as portas da percepção fossem purificadas, cada coisa apareceria ao homem como é: infinita. Pois o homem se fechou tanto que vê somente através das estreitas frestas de sua caverna". (Williams, Waddell, 1991)

Quando a percepção é purificada, a visão se torna translúcida e imaginativa, constituindo um paraíso interior. Do contrário, não havendo essa "tensão emocional", o homem entra num estado de não entidade espiritual, denominado por Blake de Ulro, sua versão do inferno, uma autoprisão circunscrita pela insensatez das impressões sensoriais às paredes da caverna.

"O modelo literário da mente em Blake é fundado no assédio dos opostos de Milton". Sem contrários, não há progresso: atração e repulsão; razão e energia; amor e ódio são necessários à existência humana.

No modelo de Blake, existe somente uma forma de conhecimento: imaginar o que existe na mente. A imaginação, tendo à sua volta os filhos da inspiração, é a verdadeira visão. A inventividade, sob a forma de fábula ou alegoria, é associada às filhas da memória e é dominada pela egoicidade, distinção de que Coleridge irá tratar mais adiante e que corresponde, aproximadamente, em psicanálise, à diferença que existe entre poder transformar as vivências sensoriais e emocionais em formas simbólicas pelo pensar imaginativo, e usar modos imitativos e memória, desvinculando o pensar das experiências sensoriais e emocionais.

A última palavra em termos da contribuição literária de Blake ao modelo da mente, explica a autora, deve ser deixada ao poema "O tigre", que demonstra simbolicamente como a tensão criativa entre os opostos é essencial para a vida mental.

 

The tiger

Tiger, tiger, burning bright
In the forests of the night,
What immortal hand or eye
Could frame thy fearful symmetry?

In what distant deeps or skies
Burnt the fire of thine eyes?
On what wings dare he aspire?
What the hand dare seize the fire?

And what shoulder and what art
Could twist the sinews of thy heart?
And, when thy heart began to beat,
What dream hand, what dread feet?

What the hammer? What the chain?
In what furnace was thy brain?
What the anvil? What dread grasp
Dare its deadly terrors clasp?

When the stars threw down their spears,
And water'd heaven with their tears,
Did He smile His work to see?
Did He who made the lamb make thee?

Tiger, tiger, burning bright
In the forests of the night,
What immortal hand or eye
Dare frame thy fearful symmetry?

Tigre, tigre, ardente fulgor
Nas florestas da noite,
Qual imortal mão ou olho
Pôde moldar tua assustadora simetria?

Em que abismos ou céus distantes
Incandesceu o fogo dos teus olhos?
Em que voos ele ousa lançar-se?
Qual mão ousa agarrar o fogo?

E que ombros, que engenhos
Pôde torcer as fibras do teu coração?
E quando o teu coração começou a bater
Qual tremenda mão, quais tremendos pés?

Qual martelo e qual corrente?
Em qual fornalha teu cérebro esteve?
Qual bigorna? Qual terrível mordaça
Ousa segurar teus mortíferos terrores?

Quando os astros derrubavam suas lanças
Inundando os céus com suas lágrimas,
Ele sorriu ao ver Seu trabalho?
Quem o cordeiro criou, criou também a ti?

Tigre, tigre, ardente fulgor
Nas florestas da noite
Qual imortal mão ou olho
Ousaria moldar tua assustadora simetria?3

A luz do tigre é uma daquelas luzes interiores que, para Blake, iluminam aspectos da eternidade. A pergunta central do poema é se o poeta pode suportar a aterradora conjunção entre as emoções contrárias inspiradas por tal luz, "a terrível simetria do terror e da beleza". A luz, ao mesmo tempo, convoca e repele o poeta, consciente de que tal simetria não se pode "enquadrar", ou seja, ser aprisionada ou domesticada.

Na segunda estrofe, a luz na floresta e o céu noturno sugerem o matrimônio do fogo dos olhos queimando nas profundezas, ou nos céus, de um jeito que evoca não somente o matrimônio do céu com o inferno, mas dos olhos azuis tornando-se profundos e incandescentes.

As câmaras centrais, concentradas no corpo do tigre, são uma construção simbolizada pelos trabalhos delas nas suas fornalhas, martelando as portas da percepção para forjar a visão interior, o fazer do artista-artesão, mais do que receptor da inspiração (da musa).

No curso desse processo, assiste-se à fusão de identidades entre o criador e o que é criado, fusão na qual o poeta é arrastado. O "ombro" de Deus se torna o do tigre, a "mão" e os "pés", a batida do coração (comunicada pelo ritmo acelerado do poema) são, em primeiro lugar, os do tigre, mas também os de Deus. Isso inclui o poeta na identificação, através do seu sentimento de terror.

Os batimentos de seu coração levam à sucessiva série de perguntas, que culmina no engajamento da rima em que tigre, Deus e poeta estão unidos. E as perguntas-modelo: "que tremenda mão e que tremendos pés?" e "Sobre quais asas" ligam as asas da exploração ao aperto do tigre, na viagem do poeta através do conhecimento. A repentina palavra "terrores", entre as referências concretas ligadas ao construir, joga luz sobre como o poeta pode ter sido tomado pelo terror da mão do tigre-Deus, ao agarrar a imagem que estrutura o poema.

O poeta sente que seu mundo interior se reaviva e inicia a pulsar como resultado da conquista do fogo da poesia, e encontra a própria identidade estruturada pela congelante simetria do símbolo. Daí as portas da percepção serem purificadas e iniciarem-se as lágrimas. A relação implícita com o tigre e o poeta é a dos amantes. "Quem o cordeiro criou, criou também a ti?".

No verso final, o poeta reconhece que a assustadora simetria do tigre depende mais da capacidade emocional do que da habilidade artística. O símbolo do tigre já está completo e ele descobre que o que torna aterrador o tigre é a união dos opostos, a tensão emocional, ou o conflito estético entre o tigre e o cordeiro, ambos aspectos de Deus.

Já a contribuição literária de Wordsworth ao modelo da mente é formulada por Meg Williams como "o clarão visionário." Ela encontra em Wordsworth também a intensidade da visão poética como manifestação da experiência universal que inicia a infância, sendo que a criança destacada em "a morada da alma" é portadora da nova vida que se inicia a partir de suas antigas "nuvens de glória".

Ao que Blake chamava de "caverna", Wordsworth chama de "sombras da casa-prisão", que limitam a percepção apenas aos requisitos da vida de sobrevivência. O hábito vai embotando a percepção, sem o recurso blakeano do "casamento" dos contrários, restando à criança apenas alguma "fugaz aparição", que lhe recorda sua vida espiritual de outrora.

O soneto Westminster bridge expressa perfeitamente o conflito estético, tal como O tigre de Blake, que surge quando a mente avança na compreensão do rico e grandioso potencial de suas divindades internas. Westminster bridge representa também o casamento de opostos: a inocência e a experiência.

Enquanto Wordsworth fez tesouro nostálgico da visão "passada", de certo modo venerando o ser que a hospedara, Coleridge, por sua vez, procurou assimilar a experiência poética por um meio mais gratificante, a imaginação, que permitisse à mente continuar a crescer. Meg Williams caracterizou o modelo de mente de Coleridge como "O ser progressivo".

Coleridge desenvolveu um modo de pensar a experiência poética baseado na leitura e na escrita da poesia, e contribuiu bastante para ligar literatura e psicologia. Ele elaborou também um tipo de experiência filosófica que diferenciava claramente os dois modos de aprendizado: o imitativo (ou mecânico) e o orgânico (imaginativo), em virtude do qual o conhecimento constitui "o ser" da mente e contribui para o seu crescimento.

O interesse de Coleridge dirigia-se ao modo como a mente obtinha os "princípios" e não as informações, a "identidade interna" e não os sinais externos do status social. Entendo que Coleridge buscava os conceitos, os significados ("os princípios") do conhecimento que se torna real pelo autoconhecimento, e que fornece o fundamento para o seu modelo de mente.

Um dos eventos seminais da experiência pessoal de Coleridge foi a composição de A balada do velho marinheiro (1797), em que são representados a culpa inconsciente e o remorso, e que constitui um complexo emocional da descrição de Wordsworth da alegria infantil.

Nesse poema, a figura do poeta é cindida em duas personagens: o marinheiro e o convidado nupcial, e tem pouco a ver com a ideia sentimental do poeta que "avança e cavalga sobre cada respiro da fantasia"; é um poeta perseguido pelo "furacão tirano e potente" das emoções. A viagem do marinheiro representa, em certo sentido, o sonho ou a condição interna do convidado, que é o que o impede de entrar na igreja, para celebrar o "matrimônio dos objetos internos".

Para Coleridge, o processo do autoconhecimento representa o oposto do processo egocêntrico; a mente "se torna" suas próprias ideias, tornando-se uma extensão do seu próprio ser. A poesia dá forma ao desconhecido, que constitui uma parte latente de nosso ser, de modo que nós passamos a nos identificar com ele, e ele conosco.

O verdadeiro pensar é produto da imaginação e de um modo de ser (de vir a ser); nisto consiste a ideia do crescimento orgânico e mental para Coleridge. A imaginação representa aquela condição da mente que cria não apenas obras de arte, mas a si mesma; a imaginação permite operar em seu interior e dar forma à própria identidade.

Tal discurso nos leva a considerar o problema da formação dos símbolos de que Coleridge se ocupou ao longo dos anos. "Quando a imaginação, em seu laboratório, dá ao [etéreo nada] uma moradia e um nome, e elabora a essência introduzindo-o [o etéreo nada] na existência, assistimos à produção de símbolos."

Coleridge sublinhou que "uma ideia", no sentido mais elevado da palavra, só pode ser expressa mediante um símbolo. Os símbolos representam a evidência concreta da comunicação existente entre o si mesmo e suas divindades internas que moram no reino das ideias, um reino diferente, que só pode operar através da imaginação.

Os símbolos representam a linguagem da imaginação e o alimento da mente, porque têm em seu interior as ideias que constituem os pré-requisitos da própria mente, tornando possível uma condição de crescimento contínuo.

O Manual do estadista, escrito contemporaneamente à Biografia, contém, segundo Meg Williams, as mais claras descrições do modo em que operam os símbolos. Coleridge inicia distinguindo a coisa real do seu análogo, ou seja, os símbolos, as alegorias, etc.

A mente, diz Coleridge, nada mais faz do que produzir sistemas de signos e, em sua "cegueira de autocomplacência", é incapaz de perceber que não são símbolos, mas "um produto falsificado da compreensão mecânica". Esta é condenada à desidratação espiritual como o marinheiro (da balada), quando sua garganta estava "seca como a poeira", e era incapaz de beber a água da fé, que "se torna uma fonte em seu interior que, jorrando, toca a vida interna".

Não é o si mesmo (self) que dá origem ao símbolo, mas a fonte da fé ou a luz da razão, aquele reino de recursos com quem o si mesmo (self) está ligado organicamente quando incorpora uma "parte vivente" dessa fonte na estrutura em evolução da mente. Para Coleridge, a característica essencial de um "símbolo" não pode ser separada de sua visão do crescimento mental. O símbolo contém aquela parte do conhecimento que é incorporada organicamente como uma nova parte da estrutura mental, conservando as ligações com a própria fonte e, consequentemente, o potencial para o futuro desenvolvimento.

Coleridge pôs acento na simbolização mais do que na verbalização; ele dizia que a verbalização consiste numa manipulação de indicadores fixos, enquanto a simbolização (mesmo verbal) representa o conteúdo imaginativo de uma ideia viva. O poder só é ativo quando é constituída uma relação entre forças dialéticas, emoções contrárias (como no matrimônio dos opostos de Blake) ou através daquela relação projetiva-introjetiva entre o self e seus objetos, tal como Coleridge deixaria entrever e como foi descrito no início deste texto.

Postulando a poesia como um princípio de ação mental, e não simplesmente como uma disciplina verbal, Coleridge a coloca como chave para entender a autenticidade ou a artificialidade de uma relação. Se uma experiência ou uma modalidade de percepção é poética, modelada pela imaginação, esta promove o crescimento irradiado pela razão (expressão preferida de Coleridge) que conduz "ao homem como ser progressivo". Do contrário, aquela modalidade de percepção pertence à esfera da fantasia mecânica ou àquela da compreensão não irradiada, que depende de entidades fixas e definidas, sendo uma reordenação e não um crescimento e uma transformação, que em si não é inútil, mas está sujeita a ser mal usada e a se tornar uma progressão morta. A poesia desperta a mente do torpor de seus supostos básicos e a faz "abrir os olhos e avançar".

A seguir, Meg Harris Williams analisa o mundo da poesia de Keats, habitado por deuses e poetas divinos, cujas identidades fazem pressão sobre aquela do poeta e parecem ter representado um fator-chave para a sua capacidade de continuar a pensar e para o progressivo distanciamento de si próprio, permanecendo fiel ao "gênio da poesia" entendido com princípio interno, "o que é criativo deve criar a si próprio".

A grande casa com muitas moradas é a bela metáfora da vida mental proposta por Keats. Em carta a Reynolds (13/05/1818), ele escreve:

comparo a vida humana a uma grande casa com muitas habitações, só duas das quais posso descrever, porque as portas das outras estão ainda fechadas para mim. A primeira habitação na qual entramos chamo "Câmara da infância ou da inconsciência", onde permanecemos até que começamos a pensar. Permanecemos ali por longo tempo, e embora as portas da segunda câmara estejam abertas e tenham uma aparência convidativa, não temos pressa, e imperceptivelmente somos levados a ela, por fim, ao despertar em nós "o princípio do pensamento"; e mal entramos nesta segunda câmara, a que chamo de "A câmara do pensamento virginal", a luz e o ar nos inebriam e não vemos senão delícias e maravilhas, e pensamos em ficar ali para sempre, felizes. Mas um dos efeitos tremendos por ter respirado aquele ar é que nosso olhar se tornou tão apurado, que agora vê dentro do coração e da natureza do homem, e nos convence que o mundo é cheio de miséria e desgosto, de dor, de doença e de angústia, e então pouco a pouco esta câmara do pensamento virginal se escurece e, ao mesmo tempo, sobre todas as paredes abrem-se portas, mas todas escuras, todas levando a vestíbulos escuros. Não se vê uma proporção de bem ou de mal. Estamos na névoa. Estamos agora nesta condição. Sentimos o "peso do mistério".

É nessa condição de névoa e de mistério que Keats, diz Meg Williams, ao estreitar as relações com seu mundo interno, conseguiu "continuar a pensar". A câmara do pensamento virginal encontra-se no centro da grande casa da mente e todas as portas podem ser abertas somente a partir desta. O êxtase inicial do pensamento virginal comunica o primeiro grande encontro de Keats com a poesia, que "atravessou seu conhecimento" como um novo planeta.

Keats possuía incomparável capacidade de interiorizar a experiência dos antepassados poéticos; estes faziam parte de seus objetos internos ou divindades mentais; ele fez de suas simbolizações alimento para o seu pensamento, e para o seu "verso essencial". Keats tornou-se saqueador da beleza que os poemas dos antepassados personificavam e através dos quais ele entendia dar consistência à própria identidade poética. Compreende-se daí a equivalência beleza-verdade, cuja expressão mais famosa está contida nos últimos versos de Ode on a grecian urn:4 'Beauty is truth, truth beauty', that is all/ Ye know on earth, and all ye need to know.

Keats considerou sempre o sentido da beleza como aquele primeiro passo que leva a reconhecer a riqueza de qualquer experiência potencial formativa da mente. No conceito de beleza, ele incluía uma variedade de sensações complexas, como a dor, a feiura, a cegueira, etc. A ideia de beleza representa o coração de todos os outros princípios críticos de Keats: "a intensidade", "a capacidade negativa", "o desinteresse", "a sábia passividade", "a abstração" e "a comunhão com a essência".

A "beleza essencial", aquela beleza que é verdade, é algo a ser criado no olho do observador, na sua interioridade e, como descreveu em outra metáfora de fazer-a-alma, na aranha que tece sua teia.

É o espírito da imaginação que dá a forma – moldura das tensões emocionais, delicadamente equilibradas entre dar e receber – da qual se desenvolve a "beleza essencial", a verdade que pode tornar grande cada mente.

Somente em resposta à "beleza" a mente pode harmonizar suas tentativas de explorar os pontos que sustentam a tela do mistério de seu ser, em que esta descobre uma congruência simbólica.

Keats descreve o mundo do "vale-de-fazer-a-alma" como "inteligências ou fagulhas da divindade" que ocorrem universalmente e vêm para "adquirir identidade e se tornar almas", "cada um com sua individualidade". É o mito pessoal de Keats, criatividade da mente, ou "criação do espírito". E para esclarecer este sistema de criação Keats escreve Ode à psique, que, como as outras odes, está ligada à questão da criatividade.

Nesta Ode à psique, Keats reconhece que uma deusa pagã tinha sido "negligenciada" e que ele é o cavalheiro que irá salvá-la.

A Ode à psique constitui a representação simbólica do sistema da criação do espírito de Keats, em que zonas desconhecidas da mente passam a ser fecundadas e unidas num modelo complexo de tensões e identificações emocionais, sob a égide de um implícito princípio de beleza que, por fim, consentirá a cada fagulha de identidade adquirir uma "própria individualidade". A mente (o self) se nutre e cresce por meio desse processo contínuo, em que não apenas esta, mas também seus objetos internos passam a ser regenerados como novas estrelas resplandecentes, capazes de conservar a essência de sua beleza.

O trabalho intenso que Keats teve com suas relações internas em busca da beleza da verdade o tornou o maior poeta romântico inglês. Para ele "aprender poesia" e "fazer-a-alma" eram a mesma coisa.

Como se viu, a concretude da realidade psíquica sempre foi dominante na consciência poética. E todos os poetas considerados neste estudo definiram o pensamento criativo como algo inseparável do autoconhecimento e do conhecimento da alma humana.

Para as autoras de The chamber of maiden thought, o paradoxo entre a onipotência egoística, a grandiosidade e o aprender da experiência emocional guiado pelos objetos internos constitui o fundamento do modelo literário da mente. O que não há é dicotomia entre pensar e sentir, ambos contribuindo para a evolução interna das ideias da mente através de um meio simbólico, o que reporta a Coleridge, "uma ideia não pode ser comunicada a não ser por um símbolo".

A sabedoria se alcança somente com a imaginação que consente ao ser "ver dentro", "onde há coisas invisíveis para a vista mortal", diz Milton.

A mente, conforme Keats, é "a própria casa da alma", um mundo autônomo onde a criatividade cria a si própria, o que Bion descreveu como mente simbólica em seu modelo epistemológico da mente.

Os poetas sempre reconhecem que o dom de sua visão pertence à musa – que vive nas divindades internas (objetos internos) – visão esta que se realiza pelas palavras dos poemas. É a linguagem concreta do símbolo que se revela em suas palavras. A linguagem concreta do símbolo que se revela decisiva no processo de comunicação da ideia.

A musa inspiradora representa o poder de gerar símbolos e deve-se entrar em relação com ela cada vez que se escreve um poema.

O poema, então, não pode surgir da onipotência do ser, da ilusão de conhecer todas as coisas e de controlar o próprio destino. O poema nasce e expressa o centro da vida mental e suas fontes de criatividade são as "divindades" ou os objetos internos.

Vemos, por intermédio dos poetas, a mente criando a si mesma por meio de uma rede dinâmica de tensões psíquicas e dando forma a um modelo de mente que nos faz participantes da reconstrução de nosso mundo em sua totalidade.

 

Referências

Bion, W. (1991). Uma teoria do pensar. In Melanie Klein hoje. Rio de Janeiro: Imago. (Aprendiendo de la experiência. Buenos Aires: Paidós, 1975)        [ Links ]

Keats, J. (1994). Selected poetry. Oxford UP.         [ Links ]

Meltzer, D. (1992). Além da consciência. Revista Brasileira de Psicanálise, 26 (3), 397-408.         [ Links ]

Williams, M. H.; Waddell, M. (1991). The chamber of maiden thought. London, New York: Routledge. (Trad. it. La stanza del pensiero verginale. Roma: Di Renzo, 1996.         [ Links ])

 

 

Endereço para correspondência
Marisa Pelella Mélega
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Recebido em: 26/5/2011
Aceito em: 23/6/2011

 

 

1 Este texto é uma versão resumida do capítulo I de "Imagens oníricas e formas poéticas – Um estudo da criatividade". Tese de doutorado, Universidade de São Paulo (São Paulo, 2004).
2 Membro efetivo, analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP.
3 Tradução livre da autora.
4 'A beleza é verdade, a verdade, beleza' – isso é tudo/ O que sabes na vida e tudo o que precisas saber. Tradução livre da autora.

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