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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.44 no.80 São Paulo jun. 2011

 

RESENHA

 

Bion e a psicanálise infantil: interações entre indivíduos e nos grupos

 

Book reviews

 

Reseñas

 

 

Maria Olympia de Azevedo Ferreira França

Endereço para correspondência

 

 

Anne Lise S. Scappaticci e Luisa C. Tirelli (Orgs.)
(Primavera Editorial, São Paulo, 2011, 160 páginas)

 

 

Esse livro organizado por Anne Lise Scappaticci reúne cinco artigos da revista Richard e Piggle, editada em 1998 por Vincenzo Bonaminio e Luisa Carbone Tirelli, e tem o mérito de pôr a descoberto um tema cujos valor e importância já se revelam em seu título: Bion e a psicanálise infantil – interações entre indivíduos e nos grupos.

Johan Norman, em um dos capítulos desse livro, nos lembra que "a análise de crianças e adolescentes requer, com frequência, um grande empenho contratransferencial". "Cheguei a reconhecer a grande utilidade do vértice de aproximação bioniano para minha capacidade de sustentar a interação no aqui e agora e para a comunicação dentro da sessão analítica" (p. 57).

Na maior parte desses artigos não encontraremos um uso abusivo de referências com nomenclatura teórica da obra de Bion. No entanto, encontramos neles vestígios teóricos clínicos de autores que percorreram e refletiram sobre as teorias bionianas. Esses vestígios, tais quais panos de fundo, iluminam e ancoram a captação da transferência, a noção do timing, a linguagem a ser usada clinicamente e, sobretudo, a compaixão do analista junto ao sofrimento mental de seus pacientes. No dizer de Tirelli, "Bion nos ofereceu chaves de leitura que favorecem e sustentam, na sala de análise, o difícil contato com aspectos primitivos e caóticos do funcionamento da mente, cuja tolerância, do ponto de vista emocional, é árdua" (p. 19).

Com a introdução por Bion de novos vértices de captação do fenômeno psíquico, muitas vezes se pergunta se uma nova técnica ou mesmo se uma nova psicanálise foi introduzida. Os autores em questão, veladamente, chamam a atenção para essa possível confusão, esclarecendo que Bion frequentemente recordava que ele seguia as linhas traçadas por Freud e Klein.

Até onde eu sei, é curioso que Bion seja pouco citado como um autor fundamental para a análise infantil ou de adolescentes, por ter sido um dos que mais destrincharam a constituição da mente primitiva. Esses artigos são preciosos, pois seus autores, cada qual à sua maneira, vai clareando e apresentando sob a luz do vértice bioniano as atualizações teóricas quanto a esse âmbito de conhecimento psicanalítico.

É no artigo de Luisa Tirelli que encontramos mais descrições conceituais dos suportes para a aproximação de aspectos primitivo-caóticos da mente, tais como as relações pré-objetais, a ampliação do conceito de identificação projetiva kleiniano e a natureza e a qualidade da formação de vínculos. Ela destaca a valiosa contribuição de Bion para a clínica, pela introdução do conceito da função alfa.

De maneira bastante criativa essa autora explana sobre a utilização do conceito de grupalidade para a aproximação e captação do mundo psíquico primitivo, enfatizando o quanto a penetração nas ideias da constituição grupais internas e externas podem nos auxiliar clinicamente. As contribuições de Bion sobre a natureza e tipos de interações grupais sem dúvida estão presentes naquelas da autora. É importante notar que não se contrapõem à teoricidade dos objetos internos de Klein, todavia trazem mais luz à aproximação de sua dinâmica. Essa abordagem sobre a terapia grupal desperta bastante interesse, mesmo para aqueles não familiarizados com ela.

A autora põe em destaque, como essencial da contribuição bioniana à teoria kleiniana, as referências desenvolvidas por Bion, digamos assim, do aspecto ativo da rêverie e da capacidade negativa, junto à formação do vínculo com o paciente. Diz ela, à página 31: "a rêverie materna coloca em funcionamento, na criança, um processo intrapsíquico de elaboração dos dados sensoriais".

Pierre Privat e Dominique Quelin, no capítulo "Sobre a prática da psicoterapia de grupo com as crianças", tomam como referência os trabalhos de Bion sobre grupos, os quais, para ele, têm um tipo de escuta diferente da terapia individual. Os autores postulam também que o trabalho de terapia grupal "versará inicialmente sobre o continente antes de levar em consideração os conteúdos" (p. 108).

Johan Norman faz uma interessante observação sobre a natureza dos pensamentos bionianos: "A obra de Bion não se propõe a reformular o pensamento psicanalítico, mas representa um instrumento útil e uma alternativa na polifonia das teorias psicanalíticas" (p. 57).

Na leitura dos artigos de Johan Norman e Donald Meltzer transparece o que, a meu ver, é a essência da contribuição de Bion: uma leitura epistemológica da constituição do psíquico pelo acontecer do ato clínico indissolúvel de ser pensada como uma experiência emocional entre duas pessoas. Generosamente, referem-se às sutilezas de seus encontros, desnudando para os leitores suas sensibilidades e capacidades de compaixão em face de seus pacientes. Demonstramnos liberdade criativa em suas tarefas, assim como no uso de suas intuições, para se aproximar das profundezas do mundo interno e externo de seus pacientes.

As percepções de Bion sem dúvida aumentaram o espaço para a liberdade de pensamento ao mesmo tempo em que nos transmitiram estados de mente que facilitam o "bom uso" dessa liberdade. Os autores declaram abertamente a introjeção e a valorização da disciplina preconizada por Bion do "sem memória e sem desejo", do uso do silêncio, da não utilização da causa e efeito ou explicação do presente pelo passado e, principalmente, do trabalho clínico tendo como carro-chefe a experiência emocional do fazer analítico. É provavelmente sob esse vértice que Johan Norman destaca a importância da capacidade de rêverie do analista e a necessidade da concepção de um objeto continente internalizado quase que anterior a qualquer outro movimento psíquico transformador para crescimento. Em sua exposição valiosa de um caso clínico, transparecem a atenção e a disciplina do autor para que o setting proporcione ao pequeno paciente a confiabilidade necessária para que um objeto continente se instale dentro dele, vencendo assim seus temores mais primitivos que tendem a afastar qualquer integração. Na aquisição dessa confiabilidade, também nos lembra Luisa Tirelli, referindo-se aos seminários italianos de Bion nos quais esteve presente (p. 16), que em suas falas "transpareceu a diferença entre ser acolhedor e ser cativante, entre ser interessado no pensamento do outro ou provocar a adesão dele de maneira sedutora". Depreendo dessa observação que é o objeto acolhedor e interessado, por meio de sua capacidade de rêverie, aquele que mais prepara e ativa o funcionamento da função alfa de seu paciente.

E o que transmitir aos leitores sobre o artigo de Meltzer, cujo título é tão significativo, "As evoluções das relações objetais?".

Meltzer, nesse artigo, reconsidera as críticas que fizera a Bion em seu livro The clinical significance of the work of Bion, afirmando não tê-lo entendido em sua primeira leitura.

Por tratar-se de um grande mestre criativo como ele é, limito-me simplesmente a reproduzir literalmente alguns de seus pensamentos contidos nesse livro:

No âmbito deste mesmo processo, o elemento que me parece importante sublinhar em Bion é a áspera autocrítica à qual se submeteu em análise de esquizofrênicos e o método psicanalítico (1967). Mas, além de si mesmo, estava criticando toda a psicanálise por não ter encontrado uma linguagem que fosse precisa e compreensível. E quando Parthenope Bion diz que Bion trabalhava às margens da linguagem, era aquele mesmo nível que Wittgenstein trabalhava, nos limites da linguagem, os limites do que pode ser dito e daquilo que deve ser demonstrado, e como tudo isso pode ser gráfico ou musical, ou ainda uma combinação de palavras e música, isto é, poesia. Certamente, o que permanece na obra de Bion é o seu caráter poético. Infelizmente, a poesia serve para traduções e reconstruções do tipo apostólico. (p. 50)
Obviamente, a linguagem não constitui o único modo de expressão: existe também a musicalidade da voz. Nos primeiros anos de análise, é isto o que é transmitido da contratransferência e constitui, do meu ponto de vista, o elemento responsável pelo maior efeito terapêutico. Se não mais, facilita o transfert e produz certo tipo de confiança, por si mesma, terapêutica. Todavia, as tentativas de evitar qualquer tipo de ação a favor da comunicação são muito difíceis e, talvez, até mesmo, impossíveis. Qualquer coisa que se fale ou se faça em análise possui um componente de ação. (p. 51)
Penso ser razoável afirmar que esta (trilogia: Uma memória do futuro) constitua a obra-prima de Bion … na medida em que se trata de produções de um gênio … finalmente liberto dos vínculos do elitismo, que assim libertou seu senso de humorismo e seu próprio modo de ver a si e ao mundo (saída de Londres). Bion, também, vendo-se por meio da crítica, do desprezo e da suspeita na qual estava circundado, conseguiu libertar a si mesmo. (p. 56)

Devo fazer justiça quanto ao que escrevi no início desta resenha: se por um lado Bion não é especialmente citado como um autor que se dedica à psicanálise infantil, suas conceituações tão bem recebidas desde nosso primeiro encontro, em 1974, passaram desde então a impregnar toda a nossa literatura acadêmica e clínica, inclusive a infantil.

 

 

Endereço para correspondência
Maria Olympia de Azevedo Ferreira França
Rua Angelina Maffei Vita, 625, ap. 91
01455-070 São Paulo, SP
Tel: 11 3032-8735
E-mail: mofranc@terra.com.br

Recebido em: 30/5/2011
Aceito em: 2/6/2011

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