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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.44 no.81 São Paulo Dec. 2011

 

HOMENAGEM

 

Sônia e o consolo da filosofia1

 

Sônia and the consolation of philosophy

 

Sônia y el consuelo de la filosofía

 

 

Olgária Chain Féres Matos2

Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo - USP

 

 

Diante do irreparável o que podemos esperar? Esse enigma de nossa condição, Sônia o interroga em seus trabalhos de pensadora, de psicanalista e de amiga, pela maneira como ela nos acompanhou e acompanha ainda. Melhor dizendo, nos amparou. É que a psicanálise não era, para Sônia, apenas uma forma de saber, uma prática singular de conhecimento e autoconhecimento pela mediação de um Outro, mas principalmente uma forma de consolo.

Foi assim que a Sônia soube recriar, na psicanálise, e como ninguém, a tradição da História da Filosofia e suas Consolações. Penso em Sêneca ou Boécio, A consolação a minha mãe Hélvia e Consolação da Filosofia, ambas escritas no horizonte da proximidade da morte. Pois de que valeria a psicanálise se ela não diminuísse o sofrimento? Sônia tomava a consolação não como um direito que seus pacientes pudessem exigir, mas como um dever a cumprir. Porque Sônia buscava conosco reconforto para a tristeza, proteção contra o destino; a consolação era, para Sônia, um talismã contra a desventura. Para Sônia, a consolação não era compaixão, pois não se tratava de um "sofrimento a dois", já que a compaixão não alivia ninguém, mesmo sendo um sofrimento mimético que nos entristece e abrange.

Dos escritos dos antigos, da epopeia homérica aos mitos trágicos que conhecia tão bem, Sônia compartilhava conosco que, contra a dor, não se deve hesitar em raciocinar, argumentar, persuadir. Os antigos procuravam convencer por discursos e cartas que a morte não é um mal, tampouco o sofrimento; que tudo o que perdemos não nos é retirado, mas sim o que não nos pertencia realmente, porque o bem que se tem de próprio, no mais confidencial de nós mesmos, em nosso ser mais íntimo, não poderia jamais se perder. Já para Sônia, é de outra natureza a consolação. Pois, ao contrário dos clássicos, que queriam consolar afirmando que o sofrimento é um erro do pensamento, a consolação tem para Sônia um outro sentido, pois Sônia não nega a dor e o cansaço de existir. A consolação não é criadora de ilusões, uma evasão da dor e da tristeza, porque ela é ao mesmo tempo sempre necessária e sempre insuficiente, o luto sempre recomeçado, sempre inacabado. Conversando com a Sônia, lemos uma passagem de Montaigne, que escreveu seus Ensaios para consolar-se da perda de seu amigo La Boétie: "Como eu sei por uma certeira experiência, não há mais doce consolação na perda daqueles a quem amamos que aquela que nos traz o saber que não esquecemos de lhes dizer nada e de termos tido com eles uma perfeita e completa comunicação." É que a alegria supera a tristeza, que a gratidão supera a nostalgia, que a delicadeza do que se viveu supera o sofrimento de estarmos de agora em diante privados de todas essas coisas. Sônia também: consolava, nomeando o inconsolável.

Mas assim como Sônia nos consolava, há também o dever de consolar. Lembro um poema de Baudelaire que li também com a Sônia. Nele Baudelaire evoca a figura, tão primeira em sua vida - como Sônia foi para mim, minha primeira e única analista -, da ama que embalou seus males infantis. A essa pessoa que se foi e que tanto o consolou, era o momento de retribuir consolo, pois os que desapareceram também necessitam da atenção dos que estão vivos. E isso porque os mortos que se pranteiam têm isto de excepcional, que eles permanecem nos confortando mesmo na morte, cobrindo-nos de solicitudes e calor, capazes de chorar por nós: "que poderia eu responder a essa alma pia / vendo correr-lhe o pranto da visão vazia?"

Desse amor pelo Outro que se chama atenção, fica a recordação, uma das tarefas mais nobres do pensamento, nosso supremo bem, contra a qual os reveses da sorte não têm nenhum poder. E o consolo é esse porque com ele vem o sentimento de gratidão, "a gratidão é o ato de amor pelo qual nos esforçamos em fazer o bem a quem nô-lo fez por um sentimento de amor" (Espinosa). Esse amor não provém de uma falta ou uma insatisfação, mas da alegria dos dons recebidos e, assim, compartilhados. É o reconhecimento do valor da vida que nos foi oferecido como um dom absoluto pela Sônia, não foi simples troca entre iguais.

Em uma de nossas sessões, Sônia me disse que iria dar um presente de aniversário para sua netinha que faria seis anos e que acabava de se alfabetizar. Sônia escreveu-lhe uma carta que ia junto com um livro, com as palavras: "agora que você aprendeu a ler, nunca mais você estará só." O prazer da vida em comum e do pensamento significa que "os poderes de Eros são concebidos não como destruição mas como paz, não como terror mas como beleza: redenção do prazer, a paralisação do tempo, a absorção da morte" (Marcuse). Sim, nós não estamos sós porque sempre próximos da Sônia, por esse sentimento de gratidão que temos com ela, esse sentimento de uma dívida infinita.

 

 

Endereço para correspondência
Olgária Chain Feres Matos
E-mail: olgaria@uol.com.br

 

 

1 Texto lido por ocasião da homenagem prestada pela SBPSP à Sônia Curvo de Azambuja no dia 24 de setembro de 2011.
2 Professora titular do Departamento de Filosofia da USP. Foi analisanda da Sônia Azambuja.

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