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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.44 no.81 São Paulo dic. 2011

 

REFLEXÕES SOBRE O TEMA

 

Eu vi um balão no céu!1

 

I saw a balloon in the sky!

 

¡Vi un globo en el cielo!

 

 

Antonio Carlos Eva2

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP

 

 

Aceitei, prontamente e feliz da vida, o convite que me foi feito pela editora do Jornal de Psicanálise para escrever sobre a conferência "Eu vi um balão no Céu!", feita por Laertes Moura Ferrão em 12 de novembro de 1977, na solenidade de instalação do Núcleo Psicanalítico de Recife.

Laertes Moura Ferrão era, na ocasião, presidente de nossa Sociedade e também presidente da Associação Brasileira de Psicanálise ABP, que hoje atende pelo nome de FEBRAPSI.

Diante do convite percebi que seria uma boa oportunidade para prestar uma homenagem afetivo-científica ao Ferrão, recém falecido.

Dei-me conta, no entanto, nesses meses que medeiam o convite e o início da escrita, ser a tarefa profundamente difícil e complexa para mim. Apresentarei as razões que penso ter percebido na feitura do presente trabalho.

Penso mesmo que precisei fazer uma espécie de "cisão" entre a conferência a ser apresentada e o homem que a pronunciou. Bem sei que se trata de um artifício, quase que só um jogo de palavras, para me autorizar a escrever sobre os dois: homem e conferência.

Conheci Laertes Moura Ferrão quando eu era recém formado em medicina e não havia ainda ingressado na SBPSP. Nosso contato iniciou-se no antigo Sanatório Bela Vista, reduto de um grupo atuante de psicanalistas. Lá havia um conjunto de consultórios para o exercício de psicanálise e também para a clínica psiquiátrica, que incluía internações no sanatório.

Em outra dimensão, acompanhei, à distância, uma tarefa nova e ousada que Ferrão iniciara no Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Comerciários IAPC, utilizando-se do hospital do referido Instituto, localizado na Av. Brigadeiro Luiz Antônio. Era hábito arraigado na psiquiatria de então internar os alcoólatras em sanatórios ou hospitais psiquiátricos para recuperação física. Havia ainda a expectativa esperançosa de que o afastamento do álcool, através da internação, fizesse com que o hábito fosse abandonado. Conforme a visão de hoje, é claro que os resultados eram péssimos, no sentido do abandono do álcool; havia recidiva após recidiva, o que significava uma nova internação, no geral por 90 dias. Pensando sobre a situação existente, Ferrão, com um grupo de psiquiatras, iniciou uma abordagem mais sofisticada da questão que incluía internação, grupoterapia, de linha psicanalítica, que procurava oferecer uma oportunidade de socialização e de criação de laços emocionais entre os participantes, em busca de uma coesão grupal.

Cito esse trabalho liderado por Laertes Ferrão, de natureza grupal, por ter alguma aproximação com a tentativa que fiz, no Hospital de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo FMUSP, de implantar um atendimento psiquiátrico comunitário para pacientes internados na ala masculina do Hospital. Nasceu dessa atividade a tese de doutorado que apresentei na mesma Faculdade, "Aspectos da implantação de atendimento comunitário", que se guiava pela ideia de comunidade terapêutica, forte na época.

Nasceu e cresceu a partir desse período minha admiração e estima por Ferrão, de quem me aproximei mais intimamente após meu ingresso no Instituto da SBPSP. Frequentei os cursos teóricos e clínicos por ele oferecidos e estive com Ferrão em minha segunda supervisão oficial.

Considerando que as ideias e ação de Ferrão eram questionadoras e estimulantes para meu trabalho psicanalítico, continuei a frequentar sua atividade de ensino na SBPSP. Ampliando ainda mais a possibilidade de aprender com a experiência oferecida por ele, tornei-me seu analisando, por cinco anos, já membro associado da SBPSP.

Esses anos e essas dimensões citadas permitiram que aparecesse uma relação sólida, muito estimulante e criativa para mim, que se seguiu de amizade, que penso hoje ter sido por nós dois desfrutada.

Feita esta introdução sobre o autor da conferência, e dentro do viés, da relação que com ele tive, irei, influenciado por essa dimensão, abordar "Eu vi um balão no Céu!" (1977). Não será demais, certamente, fazer referência ao clima efervescente em que vivia a SBPSP na década de 1970, com as vindas de W. Bion (1973, 1974 e 1978); tivemos uma revolução afetivo-científica com a sua presença e a exposição de seu modo de ver a psicanálise. Creio que todos fomos afetados profundamente por sua presença.

Ferrão apresenta, certamente, nesta conferência, ecos dessa influência de Bion. Penso que a ideia de observação da experiência psicanalítica através da vivência emocional da dupla e a decisão que o psicanalista toma em publicar ou não seu vértice estão ricamente apontados por Ferrão. Do começo ao fim da conferência.

Essa dimensão será teorizada mais à frente, com a ideia de fazer frente à frustração que o pensamento propõe ou de evadir-se dessa frustração, utilizando áreas de não pensamento.

Laertes Ferrão desenvolve uma metodologia de aproximação do não-sensorial, que está presente em "Eu vi um balão no Céu!". Esta contribuição para a aproximação da experiência emocional, que pudemos apreender com ele nas aulas e conversas, infelizmente foi pouco transformada em trabalho escrito. Lembro-me de enormes pastas que Ferrão guardava dos tempos do IAPC, que, às vezes, ele ia buscar para exemplificar alguma situação mental que aparecia. Que eu saiba, pouca coisa foi apresentada como trabalho escrito. "Eu vi um balão no Céu!" é, pois, uma rara oportunidade que temos para nos aproximar de um texto claro e elaborado.

Há cerca de dez anos, eu e vários colegas, entre eles Luiz Tenório de Oliveira Lima e Cícero José Campos Brasiliano, insistimos com Ferrão para fazermos uma espécie de atualização do texto desta conferência. Tínhamos o desejo de que Ferrão revisitasse o escrito. Chegamos mesmo a nos reunir, num sábado pela manhã, na sede Cardoso de Melo da sbpsp, e lá ficamos conversando sobre a visão de psicanálise. Fiel, no entanto, ao seu método, Ferrão não se aproximou do texto, dizendo sempre que era uma memória de um tempo passado e que podíamos aproveitar o encontro para o presente. O almoço que se seguiu foi muito agradável, mas nada de conseguirmos ao que ele não se dispunha.

Essa foi apenas uma das oportunidades em que nos esforçamos para transformar sua fala em trabalho escrito, e que pudesse ser publicado. Ferrão tinha, no entanto, uma força mental que o mantinha sempre na trilha do que percebia como sendo o seu caminho. Particularmente na observação do campo mental, não fazia concessões; separava claramente sua ciência psicanalítica da amizade que tínhamos.

É da mesma época de "Eu vi um balão no Céu!" uma outra conferência que apresentou na aula inaugural dos cursos do Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro, intitulada "Troca de ideias sobre psicanálise". Aproximando os dois trabalhos percebo que está arraigada em Ferrão a disciplina mental de privilegiar o momento presente e dele deduzir as funções e conjecturar os fatores envolvidos.

Entendo que a conferência que cito escapa do tempo e das circunstâncias em que foi produzida e formula de maneira clara a tarefa de um psicanalista em ação. Serve-nos, penso eu, como modelo com o qual poderemos confrontar nossa própria maneira de conceber nossa ação psicanalítica na clínica. Era de seu feitio nos propor uma contínua atualização de nossas ferramentas de trabalho; e que os seminários clínicos, em particular, constituíam campo propício para isso.

Creio que não é possível, para mim, cindir o homem e a obra – procedimento que me pareceu ao começo da escrita uma facilidade para abordar a tarefa. Resta-me, no entanto, uma percepção de que no caso de Laertes Ferrão homem e obra estão colados intimamente, o que possivelmente cria uma curiosidade sobre o conjunto. Esta conferência é um bom exemplo de seu caminho em busca do desconhecido, através de junções e afastamentos de conceitos, como o faz com os de dedução e indução.

Termino esta introdução à leitura do artigo relatando uma experiência que vivi com Ferrão, numa das visitas que lhe fiz quando já internado no Hospital aonde veio a falecer dias depois. Estávamos conversando os dois quando um médico do grupo que o atendia entrou no quarto e, após alguns minutos, lhe disse cheio de certeza e em caráter definitivo – "científico-prepotente" – o que seria feito a seguir com ele. Não se tratava de nada com muita importância aparente; falava do tipo de alimentação a ser introduzida, fisioterapia por estar deitado, etc.

Ferrão fala comigo, mas de modo a ser ouvido pelo médico, "veja que ele resolveu uma parte importante da minha vida, sem precisar me consultar uma única vez. Não precisou nem do meu acordo, nem do desacordo; sou tratado como se não existisse... Este colega, se psicanalista, faria muito sucesso, com a quantidade de conhecimento que pensa ter do outro." Instala-se um constrangimento, ao menos para mim e o médico presente; isso, no entanto, não impediu que Ferrão fosse fiel ao que vivia e publicasse o que sentia naquele momento; não tinha porque se calar quando percebia algo que valesse a pena dizer, como no exemplo que cito.

Quero chamar a atenção que não me dispus a oferecer alternativas ou questionamentos sobre a Conferência em pauta. Estou convencido de que é um estímulo, curto, coeso e bem concatenado de como podemos nos aproximar da clínica psicanalítica. Serve como pontuação de uma das possíveis abordagens, dentro do universo infinito que constitui o mental, que temos para descrever o mundo mental.

 

 

Endereço para correspondência
Antonio Carlos Eva
Rua Januário Miráglia, 99
04507-020 São Paulo, SP
Tel: 11 3885-8725
E-mail: aceva@ajato.com.br

Recebido em: 21/10/2011
Aceito em: 3/11/2011

 

 

1 Título da conferência realizada por Laertes Moura Ferrão em 1977.
2 Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP. Analista didata do Instituto de Psicanálise "Durval Marcondes" da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP.

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