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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.44 no.81 São Paulo dic. 2011

 

REFLEXÕES SOBRE O TEMA

 

Os tempos na análise: um ponto de vista psicopatológico

 

Times in psychoanalysis: a psychopathological viewpoint

 

Los tiempos en el análisis: un punto de vista psicopatológico

 

 

Leda Herrmann1

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo - SBPSP
Centro de Estudos da Teoria dos Campos - CETEC

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho é um exercício de relato clínico segundo os tempos na análise, definidos por Fabio Herrmann em longo, médio e curto. Para a Teoria dos Campos, esses tempos, concebidos como os tempos musicais, dãose simultaneamente em todo processo analítico. O tempo longo é o da história do paciente e da análise; o tempo médio, o da relação analítica e do cuidado transferencial; e o tempo curto, o da técnica, dos encontros e desencontros característicos do diálogo analítico. Constituem eles a forma específica da psicopatologia psicanalítica, entendida pela Teoria dos Campos como um pensamento psicopatológico interpretativo, inaugurado por Freud, e não como uma nosografia descritiva e classificatória.

Palavras-chave: Teoria dos Campos, Psicopatologia psicanalítica, Tempos na análise, Fabio Herrmann.


ABSTRACT

This paper puts forward a written clinical exercise, in accordance with Fabio Herrmann's definitions of the times in psychoanalysis: namely long, medium and short times. According to the Multiple Fields Theory, such times, conceived as musical times, occur simultaneously throughout the analytical process. The long time is that of patient's and his analysis' history. The medium time is that of the psychoanalytic relation and of transferential care. The short time is that of psychoanalytic technique, of the understandings and misunderstandings that are characteristic of analytical dialogue. According to the Multiple Fields Theory, these times constitute the specific form of psychoanalytic psychopathology, conceived as an interpretative psychopathologic thought, that was inaugurated by Freud, not a descriptive or classificatory nosography.

Keywords: Multiple Fields Theory, Psychoanalytic psychopathology, Times in psychoanalysis, Fabio Herrmann.


RESUMEN

Se trata de un ejercicio de relato clínico según los tiempos en el psicoanálisis, definidos por Fabio Herrmann como largo, mediano y corto. Para la Teoría de los Campos, esos tiempos, concebidos como tiempos musicales, ocurren simultáneamente a lo largo de todo el proceso psicoanalítico. El tiempo largo es el tiempo de la historia del paciente y de su análisis. El mediano, el de la relación analítica y del cuidado con la transferencia. El tiempo corto es el de la técnica, de los encuentros y desencuentros propios del diálogo analítico. Los tres constituyen la forma específica de la psicopatología psicoanalítica, la cual, comprendida por la Teoría de los Campos, como el pensamiento psicopatológico interpretativo inaugurado por Freud, no como una nosografía descriptiva o clasificatoria.

Palabras clave: Teoría de los Campos, Psicopatología psicoanalítica, Tiempos en el análisis, Fabio Herrmann.


 

 

Introdução ao tema

A psicanálise cuida da doença psíquica e nasceu como um tratamento para as neuroses. Portanto adentra o domínio da psicopatologia, mas não o da nosografia psiquiátrica descritiva e classificatória, e sim o do pensamento psicopatológico.

O pensamento psicopatológico psicanalítico, inaugurado por Freud, rompeu com o campo que separava a vida psíquica normal da patológica. Freud empreendeu o estudo da patologia pela normalidade, quando foi procurar respostas para a doença psíquica em ocorrências da vida de normalidade, como sonhos, atos falhos.

Entendo, com Fabio Herrmann, a psicopatologia como "o pensamento que penetrou o mistério da lógica de concepção das neuroses, rompeu o campo que cuidadosamente distinguia e separava a vida psíquica normal da patologia ... Por isso, ainda hoje, a psicopatologia é nosso instrumento de aproximação ao quotidiano." (Herrmann, 2004a, p. 174). Fabio alarga o sentido de consultório psicanalítico, reservando-lhe o regime especial de possibilidade científica de ver o mundo, onde, portanto, se vê tanto o patológico como o próprio quotidiano.

Pensar a cura analítica implica pensamento psicopatológico e uma psicopatologia interpretativa. Aqui está, para a Teoria dos Campos, a utilidade das grandes categorias nosográficas – neurose, psicose e perversões –, desde que ultrapassemos os limites da descrição dos sintomas em cada uma delas e penetremos as conformações que impõe ao desejo, mais precisamente ao desenho do desejo. As formas de sustentação das representações do desejo, ou as autorrepresentações do paciente, têm conformações características em cada uma dessas categorias e foram exploradas por Fabio nos seus estudos sobre o tema da crença como a função de sustentação das representações, principalmente em "Conclusão: sobre a clínica da crença", a última parte do livro Andaimes do real: Psicanálise da Crença (2006), em "Desejo, representação e clínica da crença", capítulo 8 do livro Clínica psicanalítica: a arte da interpretação (2003) e no capítulo 13, "Da representação à clínica da crença", do livro Introdução à Teoria dos Campos (2004).

No entanto, a cura que a psicanálise implica concede ao diagnóstico não o papel de situar o paciente dentro de uma classificação correta, uma rubrica, mas o da dimensão longitudinal do processo terapêutico. É um diagnóstico histórico e transferencial – do campo transferencial – que possibilita o planejamento do tratamento e a escolha de suas estratégias.

 

Os tempos na análise ou a especificidade da psicopatologia na Teoria dos Campos

Uma primeira observação importante diz respeito ao uso da expressão tempo na análise, que não se confunde com tempo de análise, ou da análise. O termo tempo, compondo a especificidade da psicopatologia para a Teoria dos Campos, diz respeito ao tempo do andamento de um processo analítico.

Diferente de uma peça musical, que pode se iniciar com um allegro con brio, mudar para um movimento em andante e finalizar em um allegro ma non troppo, na análise clínica há uma simultaneidade dos tempos do andamento do tratamento. São três os tempos na análise definidos por Fabio (Herrmann, 2004a). O tempo longo, o da história da vida do paciente projetando-se sobre a história da análise, tempo que permite a elaboração e o acompanhamento do diagnóstico transferencial; médio, o tempo da relação analítica, do vínculo emocional entre analista e analisando, no qual o drama passional que reedita a vida do paciente sofre um cuidado transferencial; e curto, o da atenção por parte do analista à conversa entretida com e pelo paciente e recheada de mal-entendidos, que toda sessão implica. O tempo curto é o tempo da técnica propriamente dita em que o analista desliga-se do sentido fixo e consensual da palavra proferida pelo paciente para prestar atenção aos valores conotativos dessa palavra, por onde penetram os sentidos que se formam, apesar das intenções do paciente não lhes darem lugar.

Esses tempos, que se dão simultaneamente, não dizem respeito, portanto, à duração da sessão, mas às dimensões temporais do tratamento analítico, como em uma peça musical. Ou, dito de outra maneira, à forma do relato de um caso – escrito ou oral – para comunicação entre colegas ou como instrumento para o analista refletir sobre seu trabalho. Isto possibilita que não excluamos da reflexão clínica as dimensões histórico-processual, diagnóstico-transferencial e técnica de nosso trabalho quotidiano. As grandes escolas psicanalíticas privilegiam, na sua forma de comunicação clínica, um desses tempos. Assim o tempo longo é o tempo do relato clínico freudiano, o tempo médio, do kleiniano, e o tempo curto, posse principalmente dos lacanianos. Intraescola, a comunicação clínica funciona. Interescolas instala-se a Babel psicanalítica, pois se um fala do ponto de vista da história de uma análise e o outro responde com argumentos relativos ao campo transferencial, ou do diálogo eivado de trocadilhos de uma sessão particular, chegamos à peculiar situação babélica de uma comunicação intraduzível, passando cada interlocutor a falar sozinho.

 

A prática do pensamento psicopatológico dos tempos na análise

Na tentativa de exercitar o pensamento psicopatológico da Teoria dos Campos, apresento-lhes um exemplo de relato clínico dos primeiros tempos de um atendimento psicanalítico, organizado em torno dos tempos do seu andamento, tal como exposto acima.

 

Relato em tempo longo: como se delineia a história de Veridiana e da análise

"Não sei lutar, não sei o que quero. Tudo comigo dura seis meses. Voltei para a casa de meus pais." Veridiana – um nome antigo, um sorriso de menina num rosto jovem, um corpo de mulher. Veridiana estava com 28 anos quando iniciou a análise. A fala mansa que usou na primeira entrevista tinha a tonalidade da angústia.

Contou-me que abandonara a profissão – fizera curso de letras, trabalhara em pesquisa e dando aulas no secundário. Antes já havia deixado o casamento. Recentemente deixou o emprego em uma loja de objetos de design. No momento queria – mas queria mesmo? – montar uma loja com uma das irmãs para vender peças de arte, nessa linha de design que produziam e de artistas que representavam. É a mais nova de três irmãs.

Nos primeiros tempos da análise falava sem interrupções. Sua forma de se expressar não convidava a uma conversa, fornecia-me informações sobre suas atividades diárias, coloridas pelas opiniões que a mãe e as irmãs lhe transmitiam. A violência de São Paulo apavorava-a. Era constantemente assaltada pela ideia de se tornar uma de suas vítimas. Não era a morte que temia, mas a tortura a que seria submetida pelos bandidos. Eram pensamentos que a tomavam obsessivamente e cuja tentativa de controle levavam-na, por um lado, a estender para a família o perigo da submissão à violência da cidade e, por outro, em direção a um desejo impossível de ir morar no país de origem do pai. Nesse lugar seguro, ela não tinha lugar, pois, além de não falar a língua, se via discriminada pela família paterna. As recordações que guardou das viagens para lá eram de formar junto com as irmãs e a mãe um grupo totalmente à parte da grande família paterna que as qualificava como "as brasileiras".

Veridiana no início da análise mostrava-se como abstração. Entrava e saía sorrindo. Fazia um esforço para encarnar-se e encarnava-se no sorriso. As opiniões expostas, da família ou as próprias, mostravam uma fala de fora, indicativa de uma distância entre ela e a vida. A realidade não tinha densidade suficiente para que Veridiana a sentisse dentro de si. Havia uma restrição de mundo. Tudo branco, cinza claro. Casou com o casamento, não com o marido. Poderia dizer que sofria de uma não existência – fugiam-lhe a qualquer compreensão possível poder fazer algo a alguém ou tornar o outro interessado nela.

Foi no segundo ano de análise que a encarnação de Veridiana em sorriso congelado tem seu sentido explicitado. Queixando-se do incômodo que experimentara pela raiva sentida ante o convite das irmãs para irem passear e com o fato de uma delas ter passado a noite em sua casa por causa da ausência dos pais, encontrou explicação para um outro incômodo, o do reconhecimento do desejo das irmãs de lhe fazerem companhia quando ela mesma queria estar só. Disse-me então: "Como ontem na rua, um homem que me falou – 'a menina do sorriso da avenida x'. Acho que era um elogio, mas me irritou, não gosto que vejam meu sorriso". Essa associação possibilitou que considerássemos esse seu sorriso. Veridiana contou que quando estava preocupada com algo procurava pensar em coisas agradáveis e imaginárias, fantasiosas, aí sorria. Era um sorriso que tinha que passar despercebido, pois, quando reconhecido, era sua presença não presente que se impunha ao outro e a ela no comentário alheio – isto era insuportável.

Em uma das primeiras sessões chegou em cima da hora. Por ter se demorado ao dar comida para seu cãozinho, ficou com medo de perder a sessão. A vivência da impossibilidade de chegar levou-a às rememorações de como não gostava do colégio que era obrigada a frequentar, impondo-lhe a ficar com o que sobrava: as amigas que fazia no colégio também não eram aceitas, como ela, no grupo maior. Tratava-se de uma escola francesa – sendo o francês a língua do pai –, em que as irmãs, ao contrário dela, tiveram bom aproveitamento. Com ela foi tudo diferente, quando foi para lá seus problemas pioraram, não acompanhava os colegas de classe. Era uma tortura. A mãe, seguindo a orientação da escola, chegou a levá-la a um colégio estadual. Era um lugar feio, horrível. Não mudou de escola, ficou sofrendo no colégio francês. Seu sofrimento no colégio era tema constante das sessões. Raramente identificava-o pelo nome, referido sempre como "o colégio", lugar em que estava "sempre devendo", todos os anos em recuperação.

A companhia da análise, quase perdida nesta sessão, mobilizou a autorrepresentação de estar sempre em dívida, e Veridiana pôde perceber-se muito isolada. O que foi surgindo da tentativa de lutar por si no trabalho foi a representação de que se conseguia algo era o que sobrava, o resto. Já no segundo semestre de análise, ao queixar-se do egoísmo do pai que se recusava a lhe prestar um favor e a irritava muito, começou a descrever uma briga entre as irmãs que mutuamente se cobravam por causa das providências da comemoração do aniversário de uma delas. Concluindo que se cobrança era ruim, sem cobrança não funcionava, e ela agora cobrava do pai. Nessas circunstâncias não podia contar com a mãe, que agia impondo o que lhe parecia importante. Depois de uma pequena pausa, disse ter se lembrado de um episódio acontecido no colégio quando tinha por volta de dez anos. Contou que um trabalho com gesso proposto na aula de artes a entusiasmou e ela ficou com um pouco do material para continuar a atividade em casa, mas não pediu à professora. A mãe acusou-a de ter roubado o gesso, obrigando-a a confessar sua falta e a devolvê-lo à professora. No dia seguinte cumpriu a exigência da mãe, passou vergonha em frente aos colegas. A professora, displicentemente, aceitou suas desculpas e jogou no lixo o pedaço de gesso por ela trabalhado. Um recurso seu, representado pelo trabalho no gesso, transformou-se em roubo pela acusação da mãe, sofrendo o destino do lixo no gesto da professora. Veridiana ficou muito magoada, viu seu trabalho no lixo, lugar do resto e da sobra.

A análise, à medida que prosseguia, constituía-se para Veridiana em companheira do seu dia a dia. O relato que fazia das atividades desenvolvidas no seu quotidiano paulatinamente fez surgir o sentido de que o que fazia era feito por ela, podendo aos poucos carimbar em sua vida a marca Veridiana. Ao mesmo tempo em que trabalhava para montar a loja, via-se às voltas com as providências para sua separação legal. Na loja começara empenhada, mas deixara para a irmã a responsabilidade da escolha do local a ser alugado. Às vezes assaltava-lhe a ideia de que a loja era só da irmã, o que a levava a repetir para si mesma sua posição de sócia. Na condução do processo de separação, precisava contornar os adiamentos do marido providenciando ela mesma os documentos, o que em princípio ele poderia fazer mais rapidamente e com mais facilidade.

No corte de minha escuta no tempo longo, podemos acompanhar como Veridiana vai se adonando de sua história pessoal e como vamos construindo a história dessa análise – companhia para escutar-se.

 

Relato em tempo médio: aspectos do diagnóstico do campo transferencial

No início da análise o campo transferencial desenhava-se como um lugar de exposição de opiniões, sobrepondo-se às presenças de paciente e analista. Eu estava no mundo de fantasias da paciente como se não estivesse – uma presença espectral. Procurei, então, estabelecer, na fala que a paciente me propunha, uma dimensão de conversa a dois, na forma de perguntas sobre o que falava e de comentários breves. Era frequente reagir às minhas intervenções murmurando: "É…, é", como se falasse mais para si do que comigo. Saindo do lugar de ouvinte passivo impunha à Veridiana a presença de um interlocutor e uma parada nessa conversa consigo mesma, cuja recuperação geralmente se dava por pequena alteração em sua linha associativa. Assim se tornou mais presente na nossa conversa a figura da mãe, referida pela paciente como alguém que lhe fazia críticas e exigências. As opiniões que emitia também foram tomando esse tom de crítica consigo mesma: "Sou infantil, não sou persistente com o regime."

Como apontei acima, na primeira entrevista Veridiana comunica-me uma constatação: tudo em sua vida dura seis meses. Tal comunicação vai tomando no campo transferencial o sentido de uma pergunta sobre a duração da análise – análise que representava seu último recurso, depois de perder tudo que tentara construir. Transformou-se em inquirição inaugural deste campo transferencial: Quanto vai durar a análise? Na segunda sessão, entremostrou-se um desejo escondido e um lugar seguro – ir morar no país de origem do pai. Subentendi aqui uma pergunta – Onde estava? –, cuja resposta implicava outra pergunta – Esta análise duraria mais que seis meses?

A dimensão de conversa para as sessões impôs uma mudança no campo transferencial. Ele passou a conter as presenças de analista e paciente, abrindo um espaço para que Veridiana pudesse diminuir a distância estabelecida com a vida, trazendo a realidade para dentro de si. Constituindo-se mais encarnadamente, conseguia algumas conquistas que, quando reconhecidas, eram fonte de depressão. Foi a atividade profissional que se investiu dessa encarnação, enquanto ficava de fora sua vida afetivo-sexual.

Tomo duas sessões do segundo ano de análise como exemplificação dessa alteração no campo transferencial. Numa sessão de segunda-feira, Veridiana introduz as queixas sobre seu final de semana pelo êxito: deu conta do trabalho na loja e com as encomendas e até começou um regime no domingo. Mas à noite Anita lhe telefonou para contar do namorado, que conquistara depois de muito empenho, e de sua viagem de férias. A amiga viajaria sozinha. No ano anterior, sem coragem, amolou-a até convencê-la a acompanhá-la. Argumentou que foi nessas circunstâncias, e às suas custas, que Anita aprendeu a viajar, tendo lhe deixado como herança até seu agente de viagens. Com o telefonema, Veridiana, que já estava decidida a interromper o trabalho, ficou furiosa, foi comer, detonando o regime, voltou a trabalhar e ficou até tarde da noite trabalhando. Concluiu que o bom foi ter avançado no seu trabalho. Nossa conversa abordou a transformação que fez da raiva e da inveja experimentadas em relação à amiga em ingestão de comida e como o bom representado pelo rendimento do trabalho tomou o lugar de seu descanso e perdeu aquela qualidade.

Na sessão seguinte, uma matéria sobre carisma que lera na sala de espera, levou-a a pensar no cunhado como um otimista. No trabalho ele passara para a área de marketing. As vendas não iam bem, mas ele acreditava, e Veridiana concluiu que talvez por isso tenha escapado ileso da onda de demissões que assolava a empresa. Comparou o cunhado ao ex-noivo, que lia livros de autoajuda quando se preparava para prestar concursos públicos. Segundo ela, não precisava dos conselhos dos livros, pois se empenhava nos concursos. Ressaltei o apostar em si mesmo surgido em seus comentários sobre cunhado e ex-noivo como a percepção que começava a formar de haver pessoas que se consideravam de uma forma diferente da que usava para se considerar a si própria. Comentou, como resposta, que o cunhado nem vendia tanto, mas não desistia e acreditava, sendo nisso diferente dela que via tudo difícil – desde adolescente fazia regime, sempre o quebrando, para recomeçar um diferente, já sabendo que não iria persistir, experimentando, como no domingo, muita raiva de si mesma. Nesta altura apontei-lhe a dificuldade de se perceber quebrando suas promessas e de entender o que a faz quebrá-las, como aconteceu ao perceber a raiva e inveja que sentiu da amiga que ia viajar, tinha namorado, e ela sem nada, e que para se cuidar – comendo compulsivamente – fazia algo autodestrutivo. Comparou a quebra do regime comendo compulsivamente a comer algo gostoso durante um regime, um doce, um prato diferente de um restaurante. No primeiro caso passa mal, é ruim; no segundo há prazer. Mencionou, então, "não ter um bom", ficar sempre nessa coisa ruim de desistir e começar sem perspectivas de prosseguir. O "bom", em sua fala, escutei como se fosse um eco do que ouvira de mim: "para cuidar-se, destrói-se". Perguntei-lhe qual o sentido que dava para o "ser algo bom". Respondeu-me voltando ao tema do cunhado e do ex-noivo que acreditam neles mesmos, um otimismo que no fim "dá certo", pois lhes permitia enfrentar as dificuldades, enquanto ela não enfrentava nada, diante de qualquer coisa, desistia. Ao mencionar "o bom", Veridiana introduz para si mesma a representação do bom, o que põe em relevo a ruptura do campo do tudo vai dar errado, onde para ela só havia o consolo de ficar com o que sobrava. A percepção do bom foi-lhe propiciada pela compreensão de uma forma para se considerar, para tratar de si mesmo, diferente da que usava. Veridiana começou a elaborar esse confronto com o campo do tudo dá errado e só há restos, reconhecendo as conquistas que fez no empenho com o trabalho; no entanto, a sombra desse campo rompido estava sempre projetada nas suas conquistas.

Certa vez não conseguiu ir à última sessão da semana, pois, de última hora, teve que abrir a loja no lugar da irmã. Na sessão seguinte, descreveu um fim de semana horrível em que tudo se complicou a partir da quinta-feira (o dia de sua ausência na análise). Por insistência da irmã e de uma amiga foi a duas festas em que se sentiu completamente deslocada. Também não conseguiu começar a nova encomenda que aceitaram de um cliente. Relacionei sua angústia por ter falhado no compromisso comigo a essas vivências de se sentir fora de lugar, arrastada no fim de semana sem nem poder se dedicar ao trabalho. No campo transferencial, sua ausência imprevista na quinta-feira levou-a a viver a ameaça de perder o lugar já conquistado, voltando a ficar com o resto. Revisitar a possibilidade da perda, quando já começava a romper o campo do ficar com o que sobra, precipitou o vórtice de representações próprias desse campo e de representações do novo campo que se constituía, onde o que tem é só dela.

 

Relato em tempo curto

O tempo curto, do estranho diálogo analítico cravado de entendidos e desentendidos, possibilitou-me prestar atenção ao surgimento do sexo e dos homens na vida de Veridiana.

Iniciou uma sessão do segundo mês de análise dizendo que estava lendo na Veja, na sala de espera, sobre a vida sexual do brasileiro. Explicou que a dela foi muito ruim. Transou muito pouco e não aproveitou – doía, sangrava. Os homens não ajudavam – transou com dois, o ex-noivo e o marido, e com nenhum foi bom. Eles não faziam nada para ajudá-la, embora devessem perceber sua dificuldade. Seu ginecologista disse-lhe que era porque ficava nervosa, mas para a paciente os homens é que não ajudavam. A primeira vez que transou foi por prescrição de seu médico: ter uma relação sexual com o noivo como forma de ajudar no tratamento de uma ferida no útero. "Foi por obrigação", concluiu. Em supervisão com Sônia Azambuja, pudemos pensar o sentido desse relato como uma ferida narcísica no útero, reveladora da noção aparentemente ausente de que precisava de um olhar masculino, o olhar do pai. Surgiram queixas dos homens, começando pelo pai que nunca fez nada por ela nem pelas irmãs e com quem não conseguia conversar. Descreveu o desinteresse do ex-noivo, apresentado pela irmã, que incentivava o namoro. Ficaram noivos porque ele passara em um dos concursos e fora morar em outra cidade. Durante o noivado não falou mais em casamento. Ela, por sua vez, não queria se mudar de São Paulo. Dois empurrões para o fim do noivado. A história com o marido foi parecida. Ele também lhe foi apresentado pela irmã e nunca a defendeu das interferências da família, principalmente da sogra. "Você se queixa de não ser cuidada pelos homens, de que eles só cumprem rasamente sua obrigação e de nunca ter escolhido seus homens", foi o que escolhi para lhe dizer, dando voz a esses lamentos. Lembrou-se do filme em que a personagem surda-muda era levada à prostituição pela irmã, e de como se sentiu mal ao ver o filme. A irmã não a prostituiu, mas, por ter muitos colegas homens, arranjava namorados para ela e para a irmã mais velha. Por si mesma só conseguia se interessar por quem nunca foi correspondida.

No mesmo tema da aproximação de Veridiana a sua vida afetivo-sexual, tomo as duas primeiras sessões do começo do terceiro ano de análise, depois das férias de verão.

"Nesse tempo me senti perdida", assim se apresentou na segunda-feira, passando a descrever em tom baixo, de forma pausada e sem interrupção como vivera o tempo de nossas férias. Continuou seu caso/namoro com Pedro, o estrangeiro que conhecera em sua loja no fim do ano. Ele morava com a namorada que o acompanhara ao Brasil quando de sua transferência no trabalho. Ocupava um alto cargo em uma multinacional onde conseguira empregar a companheira. Logo no início das minhas férias, saíam quase todas as noites para jantar, pois Dora, a companheira, viajara ao seu país de origem para passar com a família as festas de final de ano. Depois de sua volta não se viam com tanta frequência. Para não perder Veridiana, e como não conseguia se separar de Dora, Pedro propôs que permanecessem amigos, com o que minha paciente não concordou, pois viviam um namoro de fato.

Certo dia Veridiana resolveu terminar com Pedro e imediatamente falou com ele, mas depois de quatro ou cinco dias não aguentou, telefonou e recomeçaram a sair. Estranhou porque nunca foi assim. Das outras vezes em que decidira terminar com namorados e mesmo com o marido, nunca voltara atrás mesmo ainda gostando deles, e usou a sua expressão costumeira: "acabou, acabou". Com Pedro foi ela que forçou a situação de não serem só amigos, insistiu para que a beijasse, para que ficassem. Até transaram, por sua iniciativa, queria saber como reagiria, uma vez que nunca transara sem pedir exame de Aids do parceiro, como a mãe exigia. Em seguida contou que foi, também, fazer um curso de samba com o pessoal da Vai-Vai. Lembrou de seus tempos de faculdade, quando convivia com pessoas de níveis diferentes, gente como ela, gente mais simples, e observou que é preconceituosa com os mais simples. Na loja estava tudo parado, pois janeiro é período de marasmo no seu comércio, mas com o Pedro se sentiu ousada e se espantou com suas reações.

Duas expressões com sentidos opostos chamam minha atenção: acabou/ acabou X vai-vai. Com o intento de tensioná-las, observo-lhe, então, que nesse mês de nossas férias esteve se pondo à prova, como exames de colégio, por ela mesma preparados, sem saber como estabelecer a escala para sua avaliação – onde colocar a nota máxima. Elaborou como questões desse exame suas iniciativas afetivas e sexuais com Pedro, que descumpriam seu habitual acabou/ acabou, e a decisão de ir aprender a sambar na Vai-Vai, maneira que encontrou para permanecer ativa, não ficando apenas com sua imaginação. Acrescentei terem as férias da análise contribuído para o que vivera. Sozinha quis se pôr a prova, mas se assustou. Na retomada da análise pedia para que juntas considerássemos e corrigíssemos essa escala de avaliação de seu exame.

Na sessão seguinte contou que seu medo da violência voltou, tendo tido dificuldade à noite para dormir. Só pensava que seria assaltada e imaginava como morreria. Presentificou-se-lhe imediatamente a vontade de sair do Brasil, ir viver no país do pai, com tão menos violência, mas muito chato, onde perderia tudo o que ganhou aqui, sua criatividade. Falou a seguir de dois projetos que criou a partir de coisas sem importância que viu em lojas do centro da cidade. Mas incomodou-a não poder parar de pensar na violência, ficar tão apavorada, e começou a se perguntar por que se sentia assim se tivera um bom dia, até de vendas na loja. Falei-lhe da forma diferente de se defrontar com seu medo da violência. Permitindo-se considerar no porquê da violência tomar seu pensamento, impunha uma separação entre ela e a violência, possibilitando-lhe considerar que havia criatividade no violento do Brasil e, para ela, vida.

Este relato analítico em tempo curto evidencia que, ao começar a se fixar a autorrepresentação de alguém com iniciativa, com desejos sexuais que podem ser expressos e satisfeitos, há um retorno, no vórtice, às representações de sujeição a ataques do mundo externo violento que terminarão por aniquilá-la. Mas nesse vórtice algo das novas autorrepresentações permanece. Ela se esforça por pensar o que nela provocou os pensamentos incontroláveis de medo da violência. Isto, me parece, dá a medida do efeito terapêutico desse vórtice, ou seja, o acento na questão que começava a formular sobre serem ou não inexoráveis e definitivas as decisões que tomava, passando a lhe ser possível alguma reconsideração. No trânsito entre essas representações não pôde mais fazer uso de sua expressão corriqueira – acabou/acabou –, pois rompeu com Pedro e depois o procurou. Acabou/acabou conjugava-se com Vai-Vai, produzindo um discurso paralelo: vai/vai, mas não volta, e, ao mesmo tempo, se vai/vai, tem que voltar sozinha sob o risco de alguém acabar com ela, matá-la. A fórmula do acabou/ acabou era usada por Veridiana para anular a própria impulsividade, o vai/ vai. Agora, o desejo do trepa/trepa tentava dar conta do acabou/acabou. Mas o que apareceu no material foi uma certa moderação desse princípio, ao invés do acabou/acabou, apareceu: acabou, mas não acabou e vou pensar no caso. Veridiana teve que passar pelo vórtice – a volta do terror de ser aniquilada pela violência do mundo – para não ficar só no vai/vai, de onde a volta é a aniquilação, e assim poder pensar se quer ir, se Pedro serve ou não. Perceber sua violência interna possibilita-lhe poder se representar diferente do destino único da morte decretada pela violência externa.

 

Resumindo…

Tomando o pensamento psicopatológico interpretativo desenvolvido na Teoria dos Campos, procedi a um exercício de relato clínico que, sem dividir a paciente ou sua análise, colocou propositalmente em relevo os três tempos que compreendem o andamento de um tratamento.

Veridiana apresenta-se à análise como alguém que desiste de tudo. Faça o que faça, seu fôlego dura só seis meses. No clã familiar de domínio matriarcal cabe-lhe o lugar de resto, não por ser a última da escala de filhas, mas pela própria condição que habita de ter que acompanhar e não conseguir o desempenho exitoso, sob a batuta da mãe, das irmãs mais velhas, vistas como uma dupla muito unida, sem poder contar com o olhar e o cuidado paternos.

Aos 28 anos, quando chega à análise, depois de abdicar de vários projetos de vida como casamento e profissão, Veridiana é a própria sobra de todas essas desistências, empurrada de volta para a casa dos pais. Paralisada na vida, aposta na análise, mas lhe dá seus costumeiros seis meses e desconfia do lugar que está sendo construído. Nas sessões, ao falar sobre si, é como uma abstração de si que ocupa o campo transferencial, propondo para a analista um lugar de ouvinte passivo. É a força de sua história de ter que se afastar de si que tenta se impor.

No tempo médio, começa a se desenhar uma história cujos rumos marcam uma diferença com a história de Veridiana vivida até ali. Há um rearranjo de lugares pela recusa da analista de permanecer apenas escutando os relatos das atividades de Veridiana e das opiniões das irmãs sobre ela, impondo interpretativamente um caráter de conversa para as sessões. É no tempo curto que o processo interpretativo começa por introduzir perguntas e comentários que quebram o caráter de comunicação em relatório de Veridiana. Impondo-me como uma interlocutora que provoca e precisa da participação do outro para que uma conversa exista, alterações vão ocorrendo no campo transferencial, isto é, na disposição do par analista/analisanda. Por força das alterações impostas ao campo transferencial, Veridiana passa de relatora impessoal a ouvinte da própria história. Este é o primeiro passo para que um caminho novo se abra para a paciente. Então, outra história pessoal passa a ser vivida por Veridiana, e é essa nova história que, desdobrando-se na análise, vai delinear uma peculiar história da análise de Veridiana – companhia para escutar-se.

 

Referências

Herrmann, F. (2003). Desejo, representação e a clínica da crença. In F. Herrmann Clínica psicanalítica: a arte da interpretação (3ª ed.) (pp. 117-138). São Paulo: Casa do Psicólogo. (Trabalho original publicado em 1991)        [ Links ]

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Herrmann, F. (2004b). Da representação à clínica da crença. In Introdução à Teoria dos Campos (2ª ed., pp. 151-159). São Paulo: Casa do Psicólogo. (Trabalho original publicado em 2001)        [ Links ]

Herrmann, F. (2006). Conclusão: sobre a clínica da crença. In Andaimes do real: psicanálise da crença (2ª ed., pp. 173-191). São Paulo: Casa do Psicólogo. (Trabalho original publicado em 1998)        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Leda Herrmann
R. Girassol, 34/102 | Vila Madalena
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Recebido em: 21/10/2011
Aceito em: 21/11/2011

 

 

1 Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo sbpsp. Presidente do CETEC (Centro de Estudos da Teoria dos Campos). Doutora em Psicologia Clínica pela PUC-SP. Colíder do Grupo de Pesquisa CETEC, CNPq/UFU (Universidade Federal de Uberlândia).

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