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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.44 no.81 São Paulo dez. 2011

 

ARTIGOS NÃO TEMÁTICOS

 

Para além do seio:1 uma proposta de intervenção psicanalítica pais-bebê a partir de dificuldades na amamentação

 

Beyond the breast: a parent-infant psychoanalytical therapy motivated by breast-feeding difficulties

 

Más allá del pecho: una propuesta de terapia psicoanalítica padres-bebé en casos de dificultad de amamantamiento

 

 

Denise de Sousa Feliciano2, I, II, III, IV ; Audrey Setton Lopes de Souza3, I,V, VI

I Departamento de Psicanálise da Criança – Sedes Sapientiae
II Instituto de Psicanálise "Durval Marcondes" da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP
III Sociedade Brasileira de Pediatria SBP
IV Depto. de Saúde Mental da Sociedade de Pediatria de São Paulo
V Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo IPUSP-SP
VI Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste trabalho apresentamos os resultados de um atendimento realizado a partir da queixa de dificuldade na amamentação de um bebê de dois meses. Este se fundamentou em um modelo de intervenção com base psicanalítica, que chamamos de intervenção psicanalítica pais-bebê. Parte-se do pressuposto de que a amamentação seja um possível canal de comunicação de angústias inconscientes e conflitos latentes na dinâmica familiar, simbolicamente servindo de acesso a esses conflitos, ao mesmo tempo em que se espera que a partir de sua nomeação se encontrem novos caminhos afetivos que possibilitem que ela transcorra como um canal de encontro mútuo da mãe com seu bebê. Em determinados casos a efetiva permanência da amamentação como fonte de alimento nutricional demonstra ser também beneficiada.

Palavras-chave: Amamentação, Vínculo, Relação pais-bebê, Intervenção psicanalítica pais-bebê, Intervenção precoce.


ABSTRACT

Through this work, the authors wish to present the results of a psychoanalytical work performed in the case of a breast-feeding complaint for a 2 months old baby. This work relies on the author's parent-infant psychoanalytical model. Such a model assumes that breast-feeding is a communication channel for unconscious anxiety and underlying conflicts existing in the family's behavior. Also, this model assumes that their nomination can help the parents in finding new affective ways, allowing a re-encounter between mother and baby. In some cases, the extended breast-feeding process that results also benefits from this approach.

Keywords: Breast-feeding, Link, Mother-infant relationship, Parent-infant psychoanalytical therapy, Early therapy.


RESUMEN

En este artículo las autoras muestran los resultados de un trabajo psicoanalítico realizado en un caso de dificultad de amamantamiento de un bebé de 2 meses. Este trabajo es fundamentado en el modelo psicoanalítico "padresbebé" de las autoras. Este modelo presupone que el amamantamiento es un canal de comunicación de angustias inconscientes y conflictos subyacentes de la dinámica familiar. También, este modelo presupone que la designación de los mismos pueda ayudar a los padres a encontrar nuevos caminos afectivos que permitan un re-encuentro entre la madre y el bebé. En algunos casos, la extensión del periodo de amamantamiento es otro de los beneficios inducidos por este trabajo.

Palabras clave: Amamantamiento, Relación madre-bebé, Terapia psicoanalítica padres-bebé, Intervención precoz.


 

 

Quando uma mulher espera um bebê, dois dos sinais apresentados por seu corpo para comunicar a chegada da nova vida se destacam: o ventre cresce para abrigar o infante e os seios se avolumam para lhe garantir a futura nutrição. O perfil da gestação refletido no espelho ou delineado por sombra na parede mostra as duas curvas que se harmonizam e se completam na expressão da nova vida que está por vir. O seio, assim, desde o começo, ocupa o lugar de um dos ícones na maternidade e condensa os mais variados aspectos presentes na complexa relação entre uma mãe e seu bebê.

Além da promessa de nutrir e saciar a fome, algumas culturas associam-no a apaziguamento e aconchego. Relacionar a amamentação à ternura e à expressão de relação amorosa entre mãe-bebê já inspirou diversas manifestações artísticas, particularmente na sociedade ocidental. Nelas, as belas imagens que o seio pode suscitar em seu desempenho mais genuíno, tomado como nobre e virtuoso, não revelam a realidade que boa parte das vezes ocupa a cena: de angústias motivadas pela perda de peso do bebê, por mastite e fissuras no mamilo da mãe, diminuição do leite, fatores que turvam a prometida limpidez dos momentos de amamentação, transformando-os em experiências de dor, conflitos e desprazer.

Esses episódios e a continuidade deles nos primeiros tempos de relacionamento do bebê com sua mãe acabam transtornando toda a dinâmica familiar, resultando em estados de stress que podem impedir que haja trocas de prazer, entrega mãe-bebê e construção de vínculos de intimidade. É frequente a queixa de mulheres que não têm êxito na amamentação de se sentirem depreciadas e incapazes para realizar os demais cuidados com o filho. Ao lado disso, as políticas de saúde pública e privada se dedicam para encontrar formas de incentivo à amamentação e aumento dos índices de aleitamento por um tempo mais prolongado. A despeito de todos os esforços dos profissionais de saúde, os índices se mantêm em patamares insuficientes para as expectativas consideradas satisfatórias em termos nutricionais.

Da mesma maneira os profissionais de saúde mental reconhecem a riqueza que o encontro propiciado pela amamentação pode oferecer para o desenvolvimento psíquico da criança, assim como a facilitação para um vínculo de intimidade e satisfação mútua. Por outro lado, os episódios de desencontro e sofrimento que algumas dinâmicas estabelecem podem complicar sobremaneira a relação mãe-bebê, instalando um clima de tensão familiar com grande sofrimento para todos. Middlemore, psicanalista inglesa que realizou pesquisas com a dupla amamentar, afirma:

É reconhecido ser o curso da amamentação ao seio especialmente importante para a pequena criança, pois de suas boas ou más experiências ao seio elas desenvolvem várias atitudes emocionais para com a mãe, bem como atitudes para com a maneira de receber alimentos ... a amamentação ao seio que decorre com sucesso exerce influência favorável no desenvolvimento emocional futuro da criança. (Middlemore, 1941/1974 p. 29)

Contrariando a ideia de que a amamentação tenha sido uma tarefa de fácil realização, a história da vida privada relata a recorrente atitude de recusa e/ou de impossibilidade de amamentar pelas quais têm passado mães das mais remotas épocas e culturas.

Do ponto de vista do bebê, a experiência de sentir fome e ser saciado é uma das mais intensas em sua vida inicial, portanto, o encontro com a mãe e um seio que alimenta e conforta pode significar os primeiros sinais de qualidade dessa relação primordial. Considerando que as relações iniciais com os pais são constitutivas do desenvolvimento psíquico do indivíduo, tais episódios contribuem para transtornos emocionais ao longo da vida.

Mamar no seio de uma mãe que pode oferecê-lo é uma experiência de grande riqueza para ambos. Entretanto, a possibilidade de amamentar, assim como a condição emocional de que o pai acolha tal vivência e dê suporte à dupla, está relacionada às representações psíquicas construídas ao longo da história e pré-história de cada um dos pais, com seus próprios objetos primordiais, cujos traços inconscientes podem contribuir ou atrapalhar essa dinâmica.

Por outro lado as características do bebê influenciam na disponibilidade e atitude parental na construção de um processo de amamentação de acordo com suas capacidades para lidar com eventuais frustrações. Mesmo quando a mãe está disponível e bem equipada para oferecer o seio ao bebê, a recusa de sugar de um bebê que se mostre fraco e inerte pode fazer com que diminua a produção de seu leite e causar perda de peso da criança, provocando na mãe uma sensação de impotência e desânimo que complica ainda mais o encontro amamentar. Em contrapartida, o bebê excessivamente agitado pode perturbar a mãe, pois se mostra difícil de ser manejado e acaba sendo alimentado tão escassamente quanto os bebês lentos. Nos casos de bebês mais "difíceis", as condições psíquicas da mãe estarão ainda mais em evidência para o sucesso da dupla, pois ela terá que se adaptar com muito mais paciência e disponibilidade às características de seu filho e encontrar maneiras de aproximar-se e minimizar esses estados emocionais do bebê. A dupla amamentar é, portanto, uma unidade e precisa ser pensada como tal e respeitada em suas características e possibilidades.

Os transtornos e o desmame precoce em geral decorrem de um conjunto de fatores que vão desde a inexperiência dos pais com o manejo4 e das próprias características do bebê a fatores psíquicos inconscientes, tornando necessária uma ação multidisciplinar. São demandas para a qual a interface psicanálise-pediatria pode oferecer suporte profissional, tendo em vista que o saber e o fazer psicanalítico, ao lado do instrumental médico, contribuem para a construção de um vínculo prazeroso que pode ou não facilitar a efetivação do aleitamento.

 

Intervenção psicanalítica pais-bebê

O interesse que os psicanalistas foram desenvolvendo pelas fases mais precoces da vida se deve ao reconhecimento de que as experiências originais na vida de uma pessoa podem ser motivo de grande sofrimento ou de uma vida mental saudável, de acordo com a qualidade dessas primeiras relações, que servirão de protótipo para as relações ulteriores. Muitas dificuldades relacionais e mesmo patologias graves estariam dando sinais neste início, numa trama na qual o infans pode apresentar transtornos psicofuncionais que representam a primeira comunicação desses distúrbios. Se um analista puder intervir a partir desse "grito", poderá contribuir para que não se cristalizem nem se transformem em transtornos mais graves.

Com essa noção foram sendo desenvolvidos estudos e trabalhos dirigidos a essa etapa de vida, como uma maneira de escutar mais cedo os pedidos de ajuda de quem ainda nem aprendeu a falar. Por ser uma intervenção a partir de um sinal de transtorno nessa dinâmica, não se pode configurar um trabalho preventivo em sentido estrito, mas um campo propício à elaboração desses conteúdos, que atravessam o vínculo em função de fatores transgeracionais e intergeracionais da família, não elaborados pelos pais, somados aos elementos constitucionais do bebê.

Fraiberg foi pioneira ao desenvolver centros universitários de psiquiatria do bebê na década de 1980, com diversos trabalhos de intervenção precoce. Foi quem primeiro observou e relatou estudos sobre as modificações terapêuticas decorridas das intervenções mãe-bebê, criando a metáfora de um fantasma que ronda o quarto do bebê, referindo-se à dimensão transgeracional e aos objetos internos dos pais como responsáveis pelas patologias relacionais no início de vida (Cramer & Palacio-Espasa, 1993).

Lebovici (1998) contribuiu para o desenvolvimento das abordagens terapêuticas com pais e bebê, inicialmente, chamando a atenção dos psicanalistas sobre a importância da interação na constituição psíquica precoce, estimulando-os ao estudo das interações à luz da psicanálise, propondo uma dialética entre o intrapsíquico e o interpessoal (Cramer & Palacio-Espasa, 1993). Ele desenvolveu a técnica de Consultas Terapêuticas Pais-Bebê como um instrumento que considerou eficaz no tratamento das patologias precoces, a partir da elucidação dos conflitos internos dos pais que estariam ocupando o universo mental do bebê, por identificação projetiva, e observou a relevância dos conteúdos transgeracionais nessas patologias, que seriam decorrentes de uma comunicação velada de conteúdos e de representações não elaborados anteriormente por seus ancestrais, que apareceriam na dinâmica familiar atual como um mandato transgeracional. Sua hipótese é de que as dificuldades atuais não seriam referentes apenas às características específicas da família que ora se configura, mas de representações e de conflitos que os pais carregam em seu imaginário, relativos a conteúdos não elaborados de seus antepassados, impossibilitando a apropriação e a elaboração dessas fantasias veladas, por sua característica de ser algo não dito, uma mensagem latente (Lebovici, 1998).

De acordo com Cramer e Palacio-Espasa (1993), o infans, ou a criança com menos de 24 meses, ainda não possui um psiquismo completamente desvinculado do psiquismo parental, pela própria condição de comunicação inconsciente que se estabelece entre mãe e filho, colocando o bebê como uma espécie de extensão do psiquismo materno, muitas vezes cumprindo papéis que ficam preestabelecidos pelo inconsciente parental, que por sua vez está a serviço de ocupar o lugar de uma engrenagem que pertence ao universo dos pais. Por vezes essas engrenagens e papéis se tornam patológicos ao impedirem que o bebê se desenvolva o mais livre possível e ganhe sua própria individualidade. Os trabalhos direcionados a essa etapa de vida têm se mostrado eficazes para a nomeação desses conteúdos latentes na dinâmica, oferecendo a possibilidade de reestruturação de papéis e de uma dinâmica mais saudável e livre para todos.

Mas é preciso esclarecer que a herança de características parentais e histórias familiares são necessárias ao bebê, que precisa se inscrever nela para construir uma fundação a sua existência. Por outro lado, se os traços dessas heranças se constituírem em uma história sem conexões e com mensagens veladas e não elaboradas, o bebê pode ficar sufocado em uma trama familiar, impedindo o seu desenvolvimento emocional saudável. Nessas configurações a intervenção precoce deveria ser pensada como um instrumento necessário e importante, quando essas heranças e histórias sobrepujam de maneira avassaladora a possibilidade de que haja certo espaço de movimento para o bebê poder criar algo próprio, ou seja, quando a herança "engessa" o psiquismo do bebê e impede que apareça o bebê real, ficando apenas o bebê fantasmático idealizado pelos pais (Lebovici, 1998). De certa forma o bebê reage contra isso ao apresentar algum tipo de entrave em seu desenvolvimento normal, como problemas que se colocam em suas funções vitais, interrompendo o curso normal de seu cotidiano e muitas vezes interferindo em seu desenvolvimento somático.

A maneira como cada um dos pais vivenciou e introjetou as relações reais e fantasiadas com suas figuras parentais – objetos internos – vai interferir na relação com o bebê, facilitando ou dificultando que o vínculo se estabeleça de maneira saudável e prazerosa. Por outro lado, as próprias características do bebê vão sendo colocadas em cena, e embora o bebê esteja submetido de maneira intensa ao psiquismo parental, suas capacidades individuais poderão amenizar ou intensificar uma dinâmica atravessada pelas patologias parentais. De qualquer forma, qual seja a sua capacidade para enfrentar esses transtornos no vínculo com os pais, o bebê fica exposto a uma sobrecarga afetiva para a qual não dispõe de aparato psíquico que possa sustentá-la, o que dificulta a fluidez de seu desenvolvimento.

O pós-parto, como já foi abordado por diversos autores (Maldonado, 1976; Soifer, 1980; Winnicott, 1956/2000), constitui-se um importante período para toda a família, em especial para a mãe e o bebê, pelo estado de sintonia bastante afinada em que se encontram. Fraiberg (1980, citado por Cramer & Palacio-Espasa, 1993) sublinhou que este seria um período de extraordinário potencial terapêutico para a mãe, em especial se estiver na presença do bebê. Assim, alguns conflitos que apareceriam nessa dinâmica podem ser a expressão de algo mais profundo no seio da família, que ganha força e recurso de comunicação em virtude do momento emocional propício em que se encontram os pais, em especial a mãe. O bebê, por sua extrema sensibilidade e comunicação inconsciente com ela, pode expressar esses conflitos intrapsíquicos que permaneceram latentes por muito tempo, e o faz a partir de distúrbios apresentados em sua rotina, quer seja em seu sono, sua alimentação ou em seu comportamento global.

 

Sobre o enquadre em psicanálise

Durante muito tempo a noção de psicanálise foi atribuída ao setting desenhado por Freud em "Artigos sobre técnica" (1914/1996), nos quais ele descreveu com detalhes os instrumentais que deveriam compor a prática do analista, pois favoreceriam o exercício da psicanálise. A proposta de se manter a máxima neutralidade dentro do campo analítico transcendia o mundo mental do analista para fatores do ambiente, como a mobília e a alocação do analisando e do analista na sala, o tempo cronológico da sessão e sua frequência. Esses componentes ambientais constituíam o campo psicanalítico ao lado da regra fundamental de que o analisando deveria comunicar livremente ao analista tudo o que lhe viesse à mente, sem censura ou restrições, por mais absurdo que lhe pudesse parecer.

Todos os elementos propostos por Freud para o exercício da psicanálise tinham por objetivo a criação de um ambiente, tanto externo quanto mental, que pudesse favorecer ao analista o máximo de condições possíveis para a compreensão dos dinamismos utilizados pelo analisando em seu mundo mental, em níveis inconscientes e conscientes. Ao longo de sua obra, Freud procurou aprimorar esse trabalho de maneira a torná-lo um método capaz de permitir um profundo e sofisticado trabalho de intervenção nos mecanismos mentais do ser humano.

Bleger (1966/1988) propõe o termo situação psicanalítica para todos os fenômenos que se passam entre analista-analisando. Tal situação compreende o processo como sendo a análise propriamente dita e o enquadre como o conjunto de fatores estáveis no qual se desenvolve o processo. Para ele a manutenção de um enquadre psicanalítico específico e estável forneceria condições de análise ao uso que o analisando faz desse conjunto de fatores estabelecidos, evidenciando aspectos de sua estruturação egoica.

Por ser um trabalho de amplas extensões, a psicanálise ficou associada à proposta clássica de investigação da mente em nível profundo, que implica inevitavelmente um setting específico e de longa duração. Com isso as demais práticas periféricas que vieram inspiradas nos preceitos psicanalíticos foram por muito tempo consideradas não psicanalíticas. Winnicott (1965/1994b), ao apresentar a proposta de Consultas Terapêuticas, fez questão de frisar o fato de não se tratar de psicanálise e sim do uso da psicanálise para fins sociais mais breves e específicos, em razão do contexto de sua época. Essas questões têm sido objeto de discussões no meio psicanalítico e algumas considerações mais recentes incluem a psicanálise em enquadres não apenas determinados pelo desenho clássico de alta frequência e de longa duração, como apresentado por Freud.

Green (2002/2008) apresenta uma ideia que ilustra um pouco melhor essas questões, ao apresentar uma discriminação do enquadre psicanalítico:

Mais recentemente, propus distinguir duas partes no enquadre: a "matriz ativa", composta pela associação livre do paciente, da atenção e da escuta flutuantes, marcadas pela neutralidade benevolente do analista, formando um par "dialógico" onde se enraíza a análise e, parte dois, o "estojo", constituído pelo número e duração das sessões, a periodicidade dos encontros, as modalidades de pagamento etc. A matriz ativa é a joia que o estojo contém. Um dos fenômenos mais notáveis do diálogo analítico é o funcionamento da associação livre do paciente que, correlacionada com a escuta do analista, igualmente em suspenso, constitui o par dialógico que caracteriza a psicanálise. (Green, 2002/2008, p. 54)

Pela metáfora de Green, podemos considerar que a psicanálise pode contar com variadas possibilidades de estojo, desde que mantenha a sua joia, ou seja, a matriz ativa que a caracteriza. Consequentemente há uma ampliação considerável de seu âmbito, uma vez que pode ser criada uma gama variada de estojos para se adequar às demandas diferenciadas, que assim se beneficiam do sofisticado instrumental psicanalítico, sem que se perca a especificidade do estojo clássico, que atende ao aprofundamento do autoconhecimento e de modificações internas em esferas mais estruturadas da mente.

Se por um lado a maleabilidade de enquadres diversificados amplia a abrangência da psicanálise, é de fundamental importância que a matriz ativa que caracteriza a joia na metáfora de Green se mantenha, o que está essencialmente relacionado ao enquadre interno que o analista adquire pela sua formação, conforme o autor argumenta ao comparar psicanálise com psicoterapia psicanalítica:

Minha tese é que a psicanálise (tratamento clássico) e a psicoterapia psicanalítica partilham muitos traços da matriz ativa e diferem, sobretudo, no estojo que as contém. ... Trata-se, nos dois casos, de levar o paciente ao reconhecimento daquilo que seu inconsciente lhe endereça e que ele ignora enquanto tal e que deseja continuar a ignorar por meio da resistência. Esse percurso se apoia na transferência e na interpretação. É evidente que a resistência, a transferência e a interpretação diferem grandemente nas duas situações. ... Na psicoterapia, a falta de um enquadre, análogo a esses da psicanálise, obriga o analista a se referir a um enquadre interno. Ou seja, ao enquadre que ele internalizou no decorrer de sua própria análise e que, mesmo fora do trabalho analítico em psicoterapia, não está menos presente no espírito do analista, regendo o limite das variações que ele autoriza, o levando a salvaguardar as condições necessárias na busca de mudanças etc. Essa noção de enquadre interno é uma aquisição essencial da análise de formação que deve, portanto, zelar por um grande rigor, a fim de que o processo de internalização seja realizado. (Green, 2002/2008, p. 58-59)

Winnicott (1962/1990) faz referência a adaptações do setting clássico da psicanálise para situações nas quais seja mais adequada outra prática que possa ser mais bem aproveitada para a ocasião. A formação analítica clássica e rigorosa nesse caso é de extrema valia para o devido manejo do instrumental psicanalítico:

análise é para aqueles que a querem, necessitam e podem tolerá-la. ... Quando me defronto com o tipo errado de caso, me modifico no sentido de ser um psicanalista que satisfaz, ou tenta satisfazer, as necessidades de um caso especial. (Winnicott, 1962/1990, p. 154)

A clínica psicanalítica contemporânea tem sido chamada a atuar nos mais variados modos de sofrimento humano, conforme considera Vaisberg (2004), o que demanda a adaptação de seu enquadre clássico a situações em que se possa usar seu referencial em enquadres mais adequados a essas especificidades. Em consonância com as ideias de Green (2002/2008) apresentadas anteriormente, Vaisberg (2004) diz que o fato de se dizer analista já implica numa apropriação da teoria de forma ética e epistemológica, que permite a liberdade de reinventá-la de acordo com cada necessidade.

Quando um conhecimento se torna próprio, no sentido forte da palavra, o fazer clínico pode dar-se de modo flexível e inventivo, de sorte que os novos desafios podem receber respostas criativas e ao mesmo tempo fundamentadas de modo rigoroso, dos pontos de vista teórico e metodológico. ... o ponto de partida para o estabelecimento de um bom vínculo com o conhecimento psicanalítico seja a correta compreensão do "espírito de seu método", um método clínico de caráter eminentemente interpretativo. ... Por outro lado, em sua especificidade, que o distingue de outras abordagens igualmente clínicas, o método psicanalítico é a expressão acabada de um pressuposto fundamental sobre o acontecer humano: o pressuposto de acordo com o qual toda manifestação humana tem sentido. (Vaisberg, 2004, p. 26-27)

O reconhecimento da importância das etapas precoces na vida ulterior do indivíduo e os benefícios que uma escuta e interpretação psicanalítica podem promover, ao intervir sobre patologias que representam a interrupção do desenvolvimento normal de um bebê, desdobraram-se consequentemente em práticas clínicas diferenciadas, que por sua vez se distinguem entre si de acordo com as escolas psicanalíticas que as fundamentam. Por conta de todas essas considerações anteriores, escolhemos chamar o atendimento proposto neste trabalho como intervenção psicanalítica pais-bebê, no qual a psicanálise é a estrutura pela qual conduzimos nossa escuta e interpretação. Apesar disso, tal proposição de prática psicanalítica tem âmbitos restritos e adequados aos fins a que se propõe, ou seja, a escuta do sintoma do bebê – no caso deste trabalho as dificuldades na amamentação – como representante simbólico e dos conteúdos latentes na dinâmica familiar. A partir da continência e nomeação das fantasias inconscientes, se favorece a circulação dos afetos e elaboração dos conflitos subjacentes, permitindo que a criança seja liberta de entraves parentais e com isso possa seguir seu percurso de desenvolvimento de maneira sadia.

Os dados aqui apresentados fazem parte de uma pesquisa de doutorado que ofereceu atendimentos dessa natureza a oito famílias com a queixa mencionada. Os atendimentos consistiram em visitas domiciliares, com frequência semanal pelo período de quatro a seis semanas, por indicação do pediatra que os acompanhava.

Os resultados desse estudo revelaram que essa intervenção contribuiu para a circulação dos afetos e permitiu maior fluidez emocional observável no casal parental e que se acredita repercutir no bebê. Em alguns casos mostrou facilitar a amamentação concretamente, ao lado das possibilidades afetivas que podem acompanhá-la.

 

Caso clínico

João, aos dois meses, me foi encaminhado por uma pediatra especialista em amamentação como último recurso após um árduo período de dificuldades, quando ele estava quase desmamado.

Em geral no primeiro encontro é possível captar elementos sinalizadores do núcleo da questão, que são expressos no clima emocional que se estabelece entre a família e o analista, além do próprio discurso.

Logo que cheguei à casa de João percebi que, embora me recebessem sorridentes e tentassem demonstrar tranquilidade, havia uma tensão premente que se revelou em seguida a minha apresentação, quando a mãe abruptamente me pergunta: "Você tem filhos? Amamentou? Sem dificuldades?" Não escuta minhas respostas, faz um "interrogatório desafiador" em tom hostil que me comunica o quanto estava sufocada. Digo-lhe: "Não é mesmo fácil amamentar", procurando ser continente à sua dor. Em seguida é o pai que fala com certa ironia, como um desabafo: "Você também quer ouvir o pai, ou o pai não interessa?" E em poucos minutos me torno uma espécie de alvo das angústias que irrompem em busca de um continente e um sentido. O pai continua...

P: Já falei pra ela que ele já mamou o suficiente. Tá com dois meses e quase o tempo todo com leite do peito. Eu não mamei nem isso e nem ela, e estamos aqui, inteiros, fortes. Ele já teve mais que nós dois juntos.

O tom elevado na voz do pai me soou como expressão do ponto nevrálgico do que estavam vivendo e mostrou o desespero e a desesperança de que pudessem ter êxito. Amamentação era um tema em ebulição, mas as dores e angústias que ganhavam o nome de amamentação provavelmente não estavam relacionadas diretamente ao ato de nutrir o bebê.

Pergunto sobre a história de João e, num momento nostálgico que substitui a tensão, falam se complementando:

P: O parto foi uma maravilha! ...; M: Toda a gestação foi muito boa ...; P: E o engraçado é que as 40 semanas venciam numa data e marcamos a cesárea para essa data às 10hs, mas ele nasceu às 9hs desse mesmo dia, de parto normal. Então foi perfeito! A médica falou que ela é um parideira!; M: Eu cheguei tirando foto, toda animada, eu estava bem. Foi muita tranquila a gestação e o parto maravilhoso. Foi tudo perfeito e ele nasceu muito bem.

Em meio ao "devaneio" mencionam a necessidade do banho de luz que os deixou muito apreensivos e julgam ter sido o disparador das dificuldades. O bebê não poderia sair da luz para mamar ao seio – o que levaria muito tempo –, assim, foi alimentado com fórmula de leite no copinho, no próprio berço de luz.

M: Saí da maternidade com a orientação de dar o peito e complementar com fórmula. Após dois dias fomos à primeira consulta com uma pediatra que não entendia nada de amamentação e disse para tirar o complemento e ficar só no leite materno. Ele ficou choroso o tempo todo, barriguinha roncava e ela recomendou um anti-gases, mas na semana seguinte tinha engordado 20g apenas. Eu fiquei arrasada, me senti a pior mãe do mundo ao perceber que meu filho estava passando fome enquanto eu achava que ele tinha cólica e lhe dava remédio para gases. Imagine.
P: Daí eu me lembrei de um remédio que aumentava o leite e que um amigo havia comentado que era milagroso.

O relato mostra o momento em que a experiência real de serem pais se contrapõe ao cenário paradisíaco de construções imaginárias que haviam sido fortalecidas por uma gestação e parto saudáveis. Os momentos prazerosos são amplificados e expressos semanticamente por: perfeição, 100%, maravilhoso. Nesse panorama onipotente, tudo que destoe desses padrões é vivido como ameaçador e desestruturante: ora ela é a mãe perfeita parideira, ora é a pior mãe do mundo que deixa o filho passar fome.

P: Queríamos muito que ele tomasse o leite materno e então fomos em busca de conselhos, amigos, pediatras, homeopatas, até encontrar a pediatra de agora.
M: Estou tomando vários medicamentos para aumentar o leite e bastante água para chegar a 100% no seio.
P: Mas agora já estamos começando... quer dizer, eu estou começando a relaxar porque já tomou dois meses de leite materno e tá ótimo. O filho da minha prima não mamou nada, eu não mamei nada, ela não mamou nada.

O pragmatismo do pai contrasta com o desejo materno de amamentar 100%, representação simbólica de ser uma mãe por inteiro e sustentar seu filho com leite legítimo.

M: A luta é grande. Muitas madrugadas tirando leite, lavando relactador... Mas com ele você vê a quantidade de leite que ele ingere e isso dá um grande alívio. Quando é só meu peito eu fico angustiada sem saber se ele está satisfeito.

Sua angústia fala sobre sua dúvida na capacidade de ser mãe e ter leite bom e suficiente para o filho. O episódio de o bebê ter supostamente passado fome provavelmente reacende conflitos primitivos inconscientes.

A mãe entrega o bebê para a avó que havia chegado e o bebê fica fora da cena. O que fica são aparelhagens, métodos de aleitamento, angústias e uma grande exaustão. Sinto a ausência de João conosco e me pergunto onde estava ele em meio a toda essa epopeia. Digo-lhes que com tanta gente tentando ajudar e os equipamentos que garantiam sua nutrição, João havia ficado escondido e eles não podiam enxergá-lo e saber como se sentia e o que queria. É quando o pai imediatamente declara:

P: Ah, mas o que ele quer mesmo é o peito dela! Se puder fica o dia inteiro no peito, o dia inteiro. Ele adora!
M: Ah, isso é verdade. Independente de ter leite ou não, se ele está inquieto e eu o coloco no peito, ele vira até o olhinho! Ele a-do-ra o peito! Pode estar irritado como for que ele acalma.
P: O que não é muito gostoso é que ela fica o dia inteiro ocupada. Tem que ficar o dia inteiro com ele, o dia inteiro.

A espontaneidade e rapidez na reação do pai revelaram um conflito que me parecia ser nuclear na experiência familiar. Penso que talvez o pai se sentisse excluído da vivência fusional e dual mãe-bebê. Contudo, a expressão de satisfação da mãe me sugere que, quando o pai dá voz ao desejo do bebê, isto representa para ela o endosso para sua vivência dual com o filho e permite que ela reconheça o prazer do bebê deslocado do aspecto nutricional. Com isso a mãe evoca seu próprio desejo e prazer, assim como a suposta culpa por deixar o marido fora desse mundo dual, o que era vivido como uma ameaça ao casal.

A trama triangular e de exclusão me parecia tão evidente que dirijo ao pai uma pergunta com muita naturalidade, engajada no clima de sintonia e espontaneidade em que estávamos: "E então você fica meio de lado nessa hora? Deve ser difícil para você não estar grudado também, não?".

O pai reage à minha pergunta com olhar de ódio. Levo um susto com sua reação, que me pareceu ser um misto de surpresa, raiva e dor. Porém é um momento fugaz que logo se desfaz, e ele busca se recompor de seu desconforto. Digo-lhe:

D: Minha pergunta te assustou?
P: Um pouco. Quando você me perguntou eu pensei que acho que a gente não é tão grudado um no outro assim. Além disso, parte da minha ocupação nessa história é cuidar das "coisas de fora", como Banco, Supermercado etc. Mas estou assumindo essa obrigação numa boa. Eu tenho plena consciência de que é ela é a mãe. Eu sou o pai, eu entendo isso.

A modulação de sua voz ao descrever os lugares de mãe e pai parece conter um tom de ressentimento e resignação pelo suposto papel privilegiado da mãe junto ao bebê que desqualifica o lugar do pai. Falar que sua função é cuidar das "coisas de fora" mostra essa exclusão. À medida que ele foi se acalmando, pôde evocar questões latentes do casal. Disse que o problema da amamentação os unia, pois em geral fazem tudo individualmente e agora estavam juntos com as questões de João. Nesse sentido o transtorno referente à amamentação adquire paradoxalmente uma função satisfatória e aplaca fantasias de ameaças que ocupam seu psiquismo.

D: Vocês falaram que nenhum dos dois mamou?
M: Só mamei quinze dias. Minha mãe disse que vazava muito e era uma coisa aguada que depois secou e fui direto para o leite de vaca. O que me conforta é o fato de eu sempre ter tido muita saúde.
D: Tem dúvidas sobre a qualidade do leite materno?
M: Não sei se dúvidas, mas isso me conforta um pouco. O engraçado é que toda vez que ponho no relactador o meu leite dá uma satisfação maior que quando eu ponho fórmula.

Parece que no imaginário materno o leite de fórmula seria o terceiro elemento que ameaçaria sua relação exclusiva com o filho. Pergunto ao pai sobre sua amamentação.

P: Não sei com detalhes, mas acho que não mamei nada. Não tinha leite nenhum. O que o meu pai falou foi que o médico pediu que eles alugassem uma balança para controlar o quanto eu mamava. Pesavam-me antes e depois de mamar.
D: Mas então teve o peito?
M: Se eu tivesse um negócio desse eu ia adorar!
P: Você ia ficar louca.
M: Seria bom ter a segurança de uma balança para controlar o peso.
P: Ah, não dá. Se já é 24h por dia, ia ter que ter um dia de 36h para ficar na balança. O nenê está bem, tem uma médica excelente. Relaxa!
M: Mas me preocupo com o fato de ele passar fome.
P: Mas se ele tem fome ele chora.

Embora fosse uma conversa amena e com certo tom engraçado pelas conjecturas que supostamente pudessem aplacar a angústia, expressa também as incertezas tanto ao que teriam recebido enquanto bebês como ao que teriam condições de oferecer enquanto pais. Para a mãe, ter uma balança parece ser uma projeção de seu desejo de adquirir segurança interna na relação com o filho.

O pai mostra-se mais fortalecido recolocando limites que tanto legitimam que o bebê está bem e saudável, quanto o reconhece como capaz de reivindicar o leite e o saciar da fome através do choro. Mostrava assim que sua própria força e o lugar masculino na família haviam sido restaurados.

No final de nosso encontro havia um clima de bem-estar no casal. O bebê dormia no quarto.

M: Apesar de toda essa luta, gosto de fazer massagem nele e brincar no banho.
P: Ele gosta de música, a gente dança com ele e ele gosta muito.
D: Quer dizer que, se tiramos os equipamentos de amamentação e a preocupação com peso e fome, até dá pra dançar, rir, brincar, relaxar?

Ambos riem de minha observação e o pai diz que vai fazer um café.

Ao longo do encontro observa-se uma mudança gradativa no clima emocional que se estabelece, representado por meio da experiência de cada um de nós, que vai sendo expressa tanto em palavras como em comunicação não verbal, podendo ser compreendida e interpretada por minha escuta psicanalítica.

Nos encontros subsequentes, observei na dinâmica da família uma espécie de consolidação do que havíamos trabalhado. No segundo encontro João estava dormindo e conversamos sobre o casal e histórias familiares, como as dificuldades do pai com seu próprio pai. Eles me contavam histórias, tranquilos e em certo tom de devaneio e nostalgia, lembrando episódios, rindo de alguns, lamentando outros. Era notório que haviam conseguido sair daquele estado de tensão e círculo vicioso que eles chamavam de "problemas de amamentação" e podiam agora "passear" por outros assuntos.

O tom nostálgico certamente decorria da mudança de identidade que experimentavam com o nascimento do primeiro filho, cujas emoções não nomeadas e vividas em si mesmas haviam ficado condensadas e escondidas nas dificuldades de amamentação.

Ao final de nosso encontro a mãe conta:

M: Hoje achei que ele ainda estava com fome e não tive dúvida, preparei uma mamadeira e ele ficou tão satisfeito que está dormindo até agora. Eu jamais faria isso antes sem autorização da pediatra, mas sou eu quem está com ele e pode saber se está com fome ou não.

Seu comentário demonstrava como se sentia muito mais segura e sensível para poder avaliar as necessidades de seu bebê.

No terceiro encontro a mãe me recebe sozinha. João estava dormindo e conversamos sobre como ela estava menos preocupada se tem leite ou não, e que naquele dia só havia dado o peito e ele estava bem. Apesar da segurança e tranquilidade adquirida, confessa seu desejo de que o seio tivesse um mostrador para ver o quanto ele mamava. Mas ri de sua própria fala, talvez por não acreditar verdadeiramente que ainda precisava dessa comprovação.

O bebê acorda e chora, ela vai buscá-lo e diz que é hora de mamar. Coloca-o no peito e ele mama tranquilamente enquanto ela o admira, serena e silenciosa. É a primeira vez que assisto uma mamada. A beleza da cena me emociona, ao mesmo tempo em que percebo em mim certa estranheza em "invadir" a intimidade da dupla.

No quarto encontro me contam que haviam se esquecido de mim, do horário que havíamos marcado, e ficaram surpresos quando o interfone tocou. Apesar disso pareciam satisfeitos em me ver e foram receptivos. Esquecerem de mim soou como terem se desligado um pouco do "problema" da amamentação.

Após seis meses retorno para ver como eles haviam passado esse período. João estava com nove meses. A mãe tinha voltado a trabalhar quando o bebê estava com seis meses, mas continuava amamentando de manhã e à noite, além de tirar leite no trabalho para que João tomasse no final da tarde pela mamadeira.

M: Tenho bastante leite, tiro mais de 150ml por dia, além de amamentá-lo. O freezer está abarrotado de leite materno congelado, não tenho mais onde guardar e ele não dá conta de beber. Hoje liguei para o Banco de Leite para doar, mas não consegui falar ainda, mas também reconheço que fiquei um pouco em dúvida e envergonhada de oferecer só 150 ml.

O pai também revela resquícios de seus conflitos: "Agora ele está comendo sopinha e come tudo, não deixa nada. Eu fico com vontade de comer e esperando que ele um dia não queira tudo e sobre um pouco para mim".

Deixei-os com a certeza de que nossos encontros tinham aberto possibilidades de reflexões e circulação de afetos que ganhavam novos lugares. Embora não tivessem registro psíquico de terem sido amamentados, João podia receber leite abundante e usufruir de vínculos parentais prazerosos. O fato de tirarem bom proveito de nossos encontros indica uma constituição psíquica bem estruturada, que havia sido abalada circunstancialmente pelas novas configurações e identidades que nasciam com o filho.

 

Considerações finais

A qualidade dos resultados que as famílias obtêm dessas intervenções, incluindo a viabilidade de uma amamentação bem-sucedida, depende das capacidades adquiridas ao longo do desenvolvimento psíquico dos pais. Quando as dificuldades estão relacionadas a falhas constitutivas muito primitivas, a amamentação pode adquirir a representação de uma ameaça de desamparo que demandaria um trabalho psicanalítico longo com a mãe e/ou pai. Mesmo quando o desmame ou a amamentação mista se impõem, o trabalho de intervenção proposto oferece à família a possibilidade de encontrar novas formas prazerosas de vinculação.

Essas considerações demonstram que a possibilidade de amamentar vai muito além da informação e conscientização sobre o valor da amamentação que as campanhas desenvolvidas pelas políticas públicas divulgam, mostrando-se insuficientes para o aumento dos índices de aleitamento.

 

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Endereço para correspondência
Denise de Sousa Feliciano
Rua Joaquim Antunes, 490, cj. 54 | Pinheiros
05415-001 São Paulo, SP
E-mail: denisefeliciano@uol.com.br

Audrey Setton Lopes de Souza
Rua Fradique Coutinho, 1945 | Pinheiros
05416-012 São Paulo, SP
E-mail: asetton@uol.com.br

Recebido em: 21/10/2011
Aceito em: 3/11/2011

 

 

1 O presente artigo foi extraído da tese de doutorado: Feliciano, D. S. (2009). "Para além do seio: uma proposta de intervenção psicanalítica pais-bebê, a partir da escuta dos sentidos ocultos nas dificuldades de amamentação, como auxiliar no desenvolvimento". Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.
2 Psicóloga e psicanalista. Doutora em Psicologia (IPUSP-SP); membro efetivo do Departamento de Psicanálise da Criança – Sedes Sapientiae; e docente nos cursos: "Introdução à intervenção precoce na relação pais bebê" e "Amamentação e psiquismo: reflexões" – Sedes Sapientiae; membro filiado do Instituto de Psicanálise "Durval Marcondes" da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP; membro da Sociedade Brasileira de Pediatria SBP e membro do Depto. de Saúde Mental da Sociedade de Pediatria de São Paulo.
3 Psicóloga e psicanalista. Doutora em Psicologia (IPUSP-SP), docente da graduação e pósgraduação do IPUSP-SP; membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP.; membro efetivo do Departamento de Psicanálise da Criança – Sedes Sapientiae; docente no curso "Introdução à intervenção precoce na relação pais-bebê" e "Psicanálise da criança" – Sedes Sapientiae.
4 Técnicas de aleitamento que incluem a pega do bebê no mamilo, facilitações para a produção láctea e o reflexo de descida do leite.

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