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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.44 no.81 São Paulo dez. 2011

 

ARTIGOS NÃO TEMÁTICOS

 

Perversão de transferência e enactment: um caso clínico1

 

Transference perversion and enactment: a clinical case

 

Perversión de transferencia y enactment: un caso clínico

 

 

Raquel Tawil Klein2

Associação Psicanalítica Mexicana

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Nesta comunicação clínica, procede-se a uma revisão teórica de aspectos medulares sobre a perversão, perversão de transferência e o enactment, fazendo uma aplicação teórico-clínica ao caso de um rapaz homossexual com estrutura perversa. Este paciente manifestava atuações perversas que colocavam em risco sua vida. Recriou aspectos de sua perversão na configuração transferencialcontratransferencial, evidente em sua tentativa de sexualizar o tratamento e em sua forma de comunicação que empregava silêncios e palavras para deslocar o analista de sua função analítica. O impacto contratransferencial era excessivo ante o relato continuado de suas atuações perversas. O paciente tentou colocar a analista no papel de voyeur dentro de seu cenário perverso. A pressão deste paciente em envolver a analista em enactments contratransferenciais perversos criou um perigo ao tratamento, um impasse que pôde ser resolvido com uma análise cuidadosa da contratransferência.

Palavras-chave: Enactment, Perversão, Perversão de transferência, Contratransferência, Atuação.


ABSTRACT

This clinical communication is a theoretical review of core aspects of perversion, transference perversion and enactment, by doing a theoretic-clinical effort in the case of a homosexual man with a perverse structure. This patient manifested perverse acting out's, putting his life at risk. He recreated some aspects of his perversion in the transference-countertransference configuration in attempt to sexualize treatment, and trough his way of communicate, which employed silences and words directed to misplace the analyst of its analytical function. In face of his continued narratives of perverse acting's, the countertransference impact was excessive, as the patient tried to put the analyst in a voyeur role within his perverse scenario. This patient's strain to cover the analyst with perverse countertransference enactments created a risk to the treatment itself, an impasse that had been solved through the countertransference careful analysis.

Keywords: Enactment, Perversion, Transference perversion, Countertransference, Acting out.


RESUMEN

En esta comunicación clínica, se hace una revisión teórica de aspectos medulares sobre la perversión, la perversión de transferencia y el enactment, haciendo una aplicación teórico clínica al caso de un muchacho homosexual con estructura perversa. Este paciente, manifestaba actuaciones perversas que ponían en riesgo su vida. Recreó aspectos de su perversión en la configuración transferencia- contratransferencia, evidente en sus intentos de sexualizar el tratamiento y en su forma de comunicación, en la cual empleaba silencios y palabras para descolocar al analista de su función analítica. El impacto contratransferencial era excesivo ante el relato continuado de sus actuaciones perversas. El paciente, intentó colocar a la analista en el papel de voyeur dentro de su escenario perverso. La presión de este paciente en involucrar a la analista en enactments contratransferenciais perversos, creó un peligro al tratamiento, un impasse que pudo ser resuelto con un análisis cuidadoso de la contratransferencia.

Palabras clave: Enactment, Perversión, Perversión de transferencia, Contratransferencia, Actuación.


 

 

Introdução

Proveniente de novos enfoques psicanalíticos que questionam a postura clássica freudiana do analista como tela em branco, cada vez mais se considera a interação paciente-analista como um fenômeno dinâmico em que os participantes da dupla se imbricam e se influenciam mutuamente. Existem momentos particulares dentro do processo analítico no enquadre da relação transferência–contratransferência em que essa dinâmica se torna mais evidente.

Neste trabalho apresentarei algumas vicissitudes no tratamento de um paciente homossexual com estrutura perversa, fazendo referência particular aos enactments transferenciais-contratransferenciais que surgiram no setting de uma perversão de transferência.

Tal como menciona Freud em "Recordar, repetir, elaborar" (1914/1976), no processo analítico o paciente reproduz sua patologia (original). O paciente que apresento recriou sua perversão tanto no setting como na relação transferência-contratransferência.

 

Considerações teóricas sobre a perversão e perversão de transferência

No texto sobre "O fetichismo" (1927/1976a) Freud fala sobre a cisão do ego do perverso como produto da denegação. Esse autor assinala que devido ao horror que o menino sente frente à visão da castração materna ele reprime o afeto e denega a representação. Essa denegação resulta em uma cisão do ego, levando-o a perceber a realidade de uma forma dupla, afirmando a castração por um lado e denegando tal percepção pelo outro.

Nesse sentido, Glover (1933, citado por Etchegoyen, 1978) afirma que a perversão é o negativo da psicose. O ato perverso é uma tentativa de sanar os vazios decorrentes de um desenvolvimento deficitário na conquista do senso de realidade. Ou seja, a perversão surge como uma defesa para fugir da loucura (Etchegoyen, 1978).

Posteriormente, foram postuladas diversas teorias pós-freudianas em relação à etiologia das perversões.

McDougall (1972), Stoller (1975) e Mancia (1993), entre outros, assinalaram a importância da estimulação do ambiente precoce na geração da perversão. Como importantes fatores etiológicos, mencionam os distúrbios contínuos na relação precoce mãe-filho (Kahn, 2007; Kernberg, 2007) e as teorizações sobre a incapacidade da mãe simbiótica de transmitir ao filho a figura de um terceiro que resgata a dupla (Mancia, 1993).

Existem autores que consideram a perversão como uma forma de criar um sentido de si mesmo. Assim Kahn (1979) refere-se às mães que tratam seus filhos como coisa, de tal modo que produzem no filho um sentimento de não estar vivo como ser humano. O ato perverso seria uma tentativa compulsiva de criar experiência e evitar o sentimento de vazio ontológico. Kohut (1990), por sua parte, assinala que o ato perverso é uma tentativa desesperada de restabelecer a integridade do self, posição compartilhada por McDougall (1994) e Socárides (1994). Na mesma linha, consideram que o paciente perverso tem uma necessidade de gerar neossexualidades, na tentativa de construir um sentido de si mesmo.

Outros autores consideram a perversão como uma forma de defesa contra a psicose (Etchegoyen, 1978), contra a ansiedade de separação (Mancia, 1993) e, através da denegação, contra a consciência de dar conta das diferenças de gênero e gerações (Chasseguet Smirgel, 1981).

Compartilho as teorizações de Stoller (1975) e Kernberg (2007) que se adequam ao caso que estou apresentando. Ambos consideram a humilhação e os maus-tratos na infância como um fator etiológico significativo. Stoller (1975) considera que a perversão é uma forma de luta contra experiências traumáticas infantis e contra ameaças à identidade egoica e de gênero. O ato perverso se dá com a finalidade de vingar e triunfar sobre os traumas e o objeto traumatizante. Assim, para Stoller, a essência da perversão é a conversão de um trauma infantil num triunfo adulto. Por sua parte, Kernberg (2007) sugere que a perversão surge do ódio, produto da relação com uma mãe frustradora, relação derivada da fixação ao trauma.

Quanto ao processo analítico, observou-se (Bush, 2006; Etchegoyen, 1978; Frayn, 1993; Jacobs, 1986; Ogden, 1996) que os pacientes perversos desenvolvem, durante o tratamento, uma modalidade transferencial diferente daquela da neurose ou da psicose de transferência; desenvolvem uma perversão de transferência, termo cunhado por Etchegoyen (1978), baseado no estudo de Betty Joseph, que se referiu à tendência do paciente perverso a erotizar a transferência e a utilizar as palavras e os silêncios para excitar o analista, assim como sua passividade para provocar sua impaciência e levá-lo ao acting-out (Purcell, 2006). Etchegoyen (1978) refere-se à perversão de transferência como:

A erotização da transferência é um tipo especial de relação de objeto narcisista que continuamente trata de constituir uma unidade ilusória entre o sujeito e objeto e aparece com regularidade a utilização tanto da palavra e o silêncio para provocar excitação e impaciência no analista. Também se pode encontrar uma atitude polêmica desafiante, a maior parte do tempo, latente, que deve ser detectada e rastreada até a cisão do ego, confusão sujeito-objeto e transformação do impulso em ideologia. (p. 51)

Geralmente esse tipo de paciente exerce pressão sobre o analista para deslocá-lo de seu lugar e comprometê-lo em enactments contratransferenciais perversos. Isto é evidente, por exemplo, no que McDougall (1982) refere sobre os pacientes que tentam converter o analista num sócio perverso e cúmplice.

Como assinala Ogden (1996), a modalidade transferência-contratransferência está determinada pela estrutura perversa do mundo objetal interno inconsciente do paciente, mas o analista, de maneira inconsciente, também se compromete.

 

Considerações teóricas sobre o enactment

O termo enactment designa um fenômeno clínico em que ocorrem esforços inconscientes do paciente para forçar o analista a sentir e atuar as configurações internalizadas do paciente; ou seja, produz-se quando o paciente tenta levar o analista a se comportar de tal forma que seu ato confirme uma fantasia transferencial (Ivey, 2009). Pode-se dizer que é a união do inconsciente do paciente com o do analista que tem lugar durante a análise de situações clínicas regressivas.

É uma manifestação da conduta do retorno do reprimido, de repetir e atuar os conflitos, mais do que recordá-los e verbalizá-los, mas também pode ser considerado uma forma de comunicação (Rangel, 1997).

Supõe um componente dual, tanto paciente como analista participam, e qualquer dos participantes pode iniciar essas situações. McLaughlin (1991) citado por Frayn (1993), emprega o termo "enactment analítico" para incluir todos os eventos que ocorrem na díada, sendo que ambas as partes sentem que sua conduta é consequência da conduta do outro.

Sandler, (1976, citado por Jacobs, 1986) já tinha falado que o paciente, numa tentativa inconsciente de gratificar uma relação infantil, tenta impor a seu analista um determinado papel. O analista responde com um papel responsivo contratransferencial correspondente (Jacobs, 1986).

Nesse sentido, Bush (2006) refere um tipo de estratégia defensiva, o enactment de defesa, que descreve a defesa que desenvolve o paciente quando tem consciência dos sentimentos transferenciais dolorosos. Estes são capturados pelo analista através de sua contratransferência e atuados de forma compensatória, dando forma ao enactment de acordo com seus próprios conflitos e fantasias inconscientes.

A análise da contratransferência é um aspecto medular do tratamento, e, para muitos autores (Frayn, 1993), a confissão contratransferencial do analista, na forma de uma revelação de alguns pensamentos e sentimentos a respeito da situação provocativa, pode ser benéfica para o tratamento.

 

Material clínico

Apresentarei o caso de um paciente cujas modalidades perversas na relação transferencial, a meu ver, corroboram as teorias expostas aqui.

O seguinte material clínico tem um espectro amplo de análise, algumas vertentes já foram assinaladas num trabalho prévio (Tawil, 2008), mas, nesta apresentação, desejo mostrar dois momentos importantes no tratamento deste paciente, caracterizados por enactments transferenciais e contratransferenciais no marco de uma perversão de transferência.

Daniel é um paciente adulto jovem. Durante seu desenvolvimento, a mãe promoveu uma identificação narcísica de tipo simbiótico, fazendo-o dependente e intolerante às separações, não conseguindo atingir uma identidade diferenciada. O pai nunca irrompeu como um terceiro resgatador da dupla simbiótica, sempre denegrido pela mãe, não proporcionou ao paciente um narcisismo de gênero que o levasse a desejar uma identificação masculina.

Foi um menino machucado e humilhado, a mãe era muito depreciativa para com ele. Fazia-o sentir-se feio, com pernas ocas e que empestava o ar, motivo pelo qual acabou odiando seu corpo. No final do primeiro grau e do ensino fundamental, apresentou encoprese. Sujava as calças e soltava um desagradável odor, motivo pelo qual era rejeitado socialmente. Essa rejeição foi favorecida, desde os oito anos até a idade adulta, pelo aumento considerável de peso, com um excesso de vinte quilos, o que aumentou ainda mais suas feridas narcísicas.

A mãe, de maneira sádica e persecutória, ameaçava constantemente abandoná-lo ou retirar-lhe seu amor, por não ser ele um "bom menino" – abandono que aumentava quando a mãe, em certas ocasiões, preferia o pai a ele. Tinha uma representação psíquica da mãe como objeto terrífico, mas necessário para continuar existindo. Para evitar o abandono, o paciente se submetia aos desejos da mãe, convertendo-se em objeto fetiche dela.

Frente a isso, protegia-se gerando fantasias grandiosas de onipotência e poder, e de resgate de seu narcisismo ferido. Então, identificava-se com personagens da televisão, vivenciando-se como herói e santo, e, mais ainda, como um malvado demoníaco que tinha o controle e o poder sobre os demais. O emprego de mecanismos de cisão era proeminente.

De menino, a mãe exibia-o como uma posse narcísica, e quando vinha visita em casa pedia-lhe que fizesse "macaquices", como cantar, bailar ou relatar alguma coisa. Tinha um viés exibicionista que se manifestava na adolescência em atuações nas reuniões, ocasião em que interpretava o show de alguma cantora, ou no terreno da sexualidade, onde tanto gostava de se exibir ou então se comportava como voyeur nas suas práticas homossexuais.

Desde a precoce adolescência exerceu a homossexualidade, acompanhada de práticas perversas: relações homossexuais caóticas e promíscuas com pessoas desconhecidas, atuações sadomasoquistas, em que pedia que urinassem na sua boca como se fosse uma latrina, ou provocava uma forte dor em seus parceiros através de penetrações agressivas e dolorosas, frequentemente com o punho da mão, e também através da permanência nos "quartos escuros", onde pedia que lhe jogassem cera quente e se relacionava sexualmente de maneira indiscriminada e sem proteção, pondo sua vida em risco.

Há cinco anos começou o tratamento com uma frequência de três vezes por semana. Seu discurso na primeira fase do tratamento girava em torno da problemática com sua mãe e a reconstrução de um passado que lhe parecia extremamente doloroso.

Inicialmente desenvolveu uma transferência de tipo sociopático, tentava me roubar dinheiro das consultas e manipulava o material das sessões. A análise era tediosa, eu racionalizava muito e sentia que me colocava em armadilhas, arremessava um anzol com alguma informação e depois frustrava-me. Minha contratransferência era de cansaço, enfado, de desespero, porque sentia que o tratamento não avançava e, por momentos, via-me obrigada a ter atitudes diretivas. Apesar de que essa transferência continuou, começou-se a vislumbrar um tipo de transferência persecutória. Via-me como a mãe crítica que poderia deixá-lo de lado, retirando-lhe o tratamento, porque sentia que ele me decepcionava, ou porque não pagava meus honorários completos, já que fiz concessões ao seu tratamento com a finalidade de que pudesse comparecer três vezes por semana.

Numa etapa da análise em que estávamos trabalhando momentos traumáticos de abandono na sua infância, seguido de uma sessão que cancelei na última hora, sua atividade sexual perversa nos "quartos escuros" se exacerbou compulsivamente. Relacionava-se com vários casais num encontro só, sem nenhuma proteção. Entrava na web e contatava pessoas desconhecidas. Chegou a se entrevistar com homens doentes de Aids.

Minha principal reação emocional ao ouvi-lo em relação aos encontros era uma espécie de irritação, repulsa quando relatava detalhes e certa preocupação pela sua segurança.

Depois de uma sessão em que trabalhamos sobre outro encontro por Internet, e que, apesar de meus assinalamentos e interpretações, ele decidiu aceitar tais encontros, comecei a me sentir muito preocupada. Durante dia e noite continuaram meus sentimentos de aflição, de uma maneira muito mais intensa do que o normal. De modo geral, essas atuações do paciente não provocavam em mim reações tão excessivas, sentia-me realmente temerosa de sua segurança.

Na sessão seguinte levei para ele uma revista em que na página principal havia uma reportagem que falava de três assassinatos de homossexuais na colônia onde ele morava.

Avançado o tratamento, na véspera do ano novo, época em que reajusto meus honorários, e num clima enfadonho e de racionalização em que sucediam as sessões, a qualidade e o conteúdo de seu discurso deram um giro importante: começou a abrir a sua vida sexual perversa com todo detalhe, coisa que antes mantinha oculta. Inicialmente eu sentia rejeição frente a seu discurso, mas depois – e disso dei-me conta mais tarde –, comecei a me sentir curiosa e interessada, o que ele me relatava era algo novo para mim. As sessões seguintes, mais do que letárgica, como era de praxe, eu estava numa atitude receptiva e expectante, poder-se-ia dizer que, diferente de antes, quase esperava sua chegada. Num momento de auto-observação, dei-me conta da minha contratransferência, de meu excepcional interesse. Tratei de analisar o que estava acontecendo. Ao longo da semana me veio uma recordação vaga sobre minha infância, de uma tarde em que estava com meus irmãos e a babá em casa. A babá falava para meu irmão que estava na hora do banho e ela dizia para minhas irmãs e para mim que fôssemos brincar; eu desejava permanecer, tinha curiosidade de ver o órgão genital de meu irmão. Fiquei frustrada, tecendo uma fantasia de algum dia me esconder no closet e espiá-lo através de uma fresta.

Ao trabalhar isso com o paciente, interpretei para ele a sua necessidade de me colocar num papel passivo, assim como ele tinha estado nas situações traumáticas de abandono durante sua infância, e de como ele estava tratando de me comunicar sua necessidade de sentir-se independente de mim por um lado e, por outro, de estar muito unido a mim, evitando a qualquer custo meu abandono, tendo que me manter interessada. Abri meus pensamentos e sentimentos em relação à dinâmica que estávamos vivendo, lhe assinalei que, de modo inconsciente, ele tinha captado em mim uma tendência curiosa e desejosa de saber, que estava enraizada em alguns aspectos de minha história na infância e, deste modo, ele tinha me enganchado nisso que ele colocou no cenário.

Nas associações, ele trouxe novamente à tona um sonho recorrente de quando era criança, que já tinha contado no início do tratamento, o sonho da casa da árvore.

Chego à minha casa e pergunto onde está minha mãe, dizem que já não está porque subiu na casa da árvore e eu começo a ver rios de sangue escorrer da árvore, quero subir para ver o que sucede; para mim, o fato dela ter ido significava que meu pai a tinha levado.

 

Discussão

Durante seu crescimento, Daniel se viu sujeito a uma mãe que obstaculizou o acesso ao pai, desvalorizado, e que, pela indiferenciação narcisista, impediu a separação mãe-filho. O paciente, como forma de fuga à situação incestuosa e à castração, protegeu-se na homossexualidade.

Ele era o objeto-coisa da mãe, tinha que se submeter a seus desejos para evitar o abandono. Para defender-se da dor, deixava-se levar, em fantasia, pelo desejo de vingar os traumas infantis de submissão e humilhação, causados pelos pais, empregando a revanche como método perverso para desobjetalizar (Green, 1990) e humilhar. Também em suas relações de objeto sua perversão servia como manobra vingativa, para denegar as ameaças da mãe contra sua identidade egoica e de gênero.

No "quarto escuro" sentia-se poderoso, através de sua perversão se desfazia de seus sentimentos dolorosos e de raiva, derivados da relação traumática com a mãe. De fato, referia que quando infringia algum dano sádico ao parceiro sexual, ante estas manifestações de fortaleza e poder, Daniel sentia-se grandioso, e considerava que este afeto era equivalente ao que, com certeza, sua mãe experimentava quando o submetia e o humilhava. Mas também, quando ele se submetia à dor que outros lhe provocavam, era como repetir a mesma sensação de ser submetido e humilhado pela mãe. A ação sexual o provia de domínio e poder e lhe permitia afirmar sua autonomia e independência.

Em relação ao tratamento, as manifestações transferenciais e contratransferenciais ilustram as características principais da perversão de transferência: o discurso obsessivo, silencioso e as omissões provocavam minha resposta contratransferencial de enfado e desesperança, sua passividade me levou a atuar através de atitudes diretivas.

Quando o paciente começou a atuar sua perversão compulsivamente, na forma de enactment transferencial, pondo sua vida em risco, levou-me a responder de uma maneira complementária, levando-lhe a revista sobre o assassinato de rapazes homossexuais.

Daniel apresentava uma transferência cindida. Por um lado vivenciava a mim como a mãe que engolfa, da qual tinha que se proteger para não perder sua identidade – de onde se depreende a falta de entrega ao tratamento –, mas, por outro lado, e num nível mais profundo, como a mãe distante que poderia abandoná-lo sem o apoio terapêutico, o que seria o mesmo que deixá-lo num estado de desvalimento, reedição de uma sensação infantil de desamparo. O temor ao abandono na infância tinha sido terrorífico e desestruturante.

De acordo com Bush (2006), a função do enactment não somente satisfaz o desejo inconsciente, senão também tem uma função defensiva. No caso de Daniel, o exercício compulsivo de sua perversão pode ser considerado um enactment de defesa (Bush, 2006) frente à dor que sentiria ao fazer contato com a transferência de abandono que depositava em mim, atuava sua perversão, e me induziu a atuar num papel correspondente (Sandler, 1976), de cuidado e preocupação. Daniel, inconscientemente, necessitava corroborar que eu estava ali, que me preocupava com ele.

Em relação a seu exibicionismo, posto em cena de sua perversão quando relatava detalhadamente seus atos perversos, poderia ter diversos significados: dentro de sua cisão, na relação comigo temia perder sua identidade, como remanescente da sensação de ter sido objeto coisa de sua mãe. O enactment perverso seria uma forma de mostrar à mãe analista sua autonomia e independência. Em um nível mais profundo, e a partir de uma fantasia ilusória de união com o objeto (Etchegoyen, 1978), pode-se ver como uma estratégia inconsciente igual à da infância, de se exibir, mostrar-me as "macaquices" e me manter interessada para que não o abandone.

Existia também outro elemento importante: partindo do suposto de que o enactment pudesse ser a reedição, dentro da segurança que dá a situação analítica, de uma transferência temerosa, como tentativa simbólica de reproduzir o trauma infantil (Frayn, 1993), a exibição frente a mim desses atos poderiam ter o significado de uma elaboração da exclusão triangular. Alguns autores têm se referido à tendência do paciente perverso à exclusão do analista (Steiner, 2009) e a colocá-lo num papel de voyeur excluído (McDougall, 1982). O paciente, como no sonho da casa da árvore, se perguntava, quando era criança, sobre as relações sexuais de seus pais, sentindo-se o terceiro excluído no vínculo parental. Desejava saber, observar o que sucedia dentro do quarto marital, como um observador ativo. Nos quartos escuros ou nos banhos públicos dava rédeas soltas à suas pulsões voyeurísticas.

Khan (1979) refere que a função do acting out perverso é transformar os estados intrapsíquicos traumáticos passivos em ativos, e, neste caso, o paciente, através do relato das cenas perversas e da atuação como forma de enactment, impôs a mim o papel de voyeur. Agora eu era a terceira excluída da cena primária perversa, enquanto ele abria-me o cenário de sua sexualidade perversa.

Assim, o enactment exibicionista do paciente, desenvolvido inconscientemente para despertar meu interesse, estava provocando em mim um hiperinteresse e uma hipercuriosidade que se vinculavam com meus aspectos inconscientes relacionados com uma curiosidade escotofílica, voyeur, reeditada de minha infância. Estávamos enganchados e enredados.

Com tudo isso pôde-se ver que Daniel, sob o influxo de sua transferência, levou-me a atuar, e essas ações mobilizaram respostas contratransferenciais que podem ser interpretadas como expressões de condutas interpessoais do mundo interno do paciente. Então, enquanto minha resposta emocional inconsciente foi crucial no enactment, esta foi ativada e manejada pela transferência do paciente.

Considero que, ao abrir minha contratransferência ao paciente, fortaleceu-se a aliança terapêutica, beneficiando o tratamento, porque, ao dar-me conta do papel que eu estava desempenhando, pôde vir à luz seu sistema defensivo e seu estilo habitual de relações objetais. Sempre acreditei na assimetria analítica, e meu trabalho concentra-se em compreender o paciente, mas, neste caso, considerei que, do ponto de vista intersubjetivo, ambos estávamos enganchados num terreno comum.

Considero também que o reconhecimento da transferência e contratransferência perversa foi crucial para o tratamento. Neste caso, a partir do registro de meus próprios pensamentos e sentimentos, pude compreender minha contratransferência, e deste ponto pude "sobreviver" (Bake, 1994), e evitar ser "diluída" na transferência do paciente, o que, ao final, poderia conduzir a um fracasso terapêutico.

 

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Endereço para correspondência
Dra. Raquel Tawil Klein
Paseo de los Laureles # 458-402
Col Bosques de las Lomas
05120 México, D. F.
Tel. 52 (55) 13-27-87-10
E-mail: rtaw@yahoo.com

Recebido em: 23/8/2011
Aceito em: 27/10/2011

 

 

Tradução de Marta Úrsula Lambrecht
1 Trabalho apresentado no 47º Congresso Internacional da Psychoanalytic Association. México, D.F. Agosto 2011-10-23.
2 Doutora em Psicoterapia Psicanalítica. Membro titular da Associação Psicanalítica Mexicana.

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