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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.44 no.81 São Paulo dic. 2011

 

ARTIGOS NÃO TEMÁTICOS

 

Ambiguidade e bissexualidade: desdobramentos da recusa no campo transferencial e do pensamento1

 

Ambiguity and bisexuality: disavowal's consequences on thinking and transference's field

 

Ambigüedad y bisexualidad: desdoblamientos de la "recusa" en el campo transferencial y del pensamiento

 

 

Marcella Monteiro de Souza e Silva2

Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise São Paulo - SBPSP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste trabalho discuto o modo como a ambiguidade vivida no contato transferencial encontra-se ancorada em um modo particular de organização psíquica – enraizada na ilusão bissexual – que, embora no registro da neurose, tem como mecanismo significativo a recusa. Discuto também em que medida a recusa, por incidir no processo perceptivo, pode ser relacionada com os distúrbios de pensamento de Bion, mais especialmente o ataque ao vínculo.

Palavras-chave: Ambiguidade, Bissexualidade, Recusa, Ataque ao vínculo.


ABSTRACT

This paper discusses how ambiguity, experienced in the transference field, is anchored in a particular configuration of psychic organization (rooted in a bisexuality fantasy or illusion). Disavowal is the principle operating psychic mechanism which characterizes his mode of being with himself and others. Since disavowal is negation of perception (Freud), I venture to relate it to Bion's studied on thinking disturbances, especially attacks on linking.

Keywords: Ambiguity, Bisexuality, Disavowal, Attack on linking.


RESUMEN

En este trabajo la autora discute como la ambigüedad vivida en el contacto transferencial se encuentra anclada en un modo particular de la organización psíquica (enraizada en la ilusión bisexual) que, a pesar de pertenecer al registro de la neurosis, tiene como mecanismo significativo la "recusa". Discuto también en qué medida la "recusa", por incidir en el proceso perceptivo, puede estar relacionada con los disturbios del pensamiento de Bion, más específicamente, el ataque al vínculo.

Palabras clave: Ambigüedad, Bisexualidad, Recusa, Ataque al vínculo.


 

 

A maior riqueza do homem é a sua incompletude.
Nesse ponto sou abastado.
Manoel de Barros

 

Introdução

O título concedido a Freud de "autor clássico" reside, a meu ver, em dois pontos principais. Um deles é o fato de seu texto dar ensejo a uma diversidade de leituras que comportam o aprofundamento, a expansão, a formalização, e até a criação de conceitos que ganham legitimidade e se consagram úteis na área a que se referem; o texto freudiano, portanto, é prenhe: abre-se a diversas interpretações e desenvolvimentos. O segundo ponto refere-se ao fato de a obra de Freud provocar a quebra de paradigmas de sua época.

Até Freud, a crença de que a sexualidade iniciava na puberdade era vigente; é ele quem rompe com essa ideia ao declarar a existência da sexualidade infantil, demonstrando ainda que ela abarca várias dimensões da vida humana. Companheira desde o início, no mais precoce contato com a mãe, a sexualidade estará presente na satisfação do bebê em mamar, nas sensações advindas e produzidas pelas carícias e toques maternos. A partir daí, se expandirá apontando para a enorme variedade daquilo que será, então, capaz de propiciar prazer de natureza erótica para a criança. Serão as vivências de prazer e desprazer que colocarão em movimento a vida psíquica da criança, pois é nesse encontro primordial com o outro que um campo de sentidos vai sendo criado: formas e palavras vão sendo geradas com o intuito de organizar o caos de sensações e afetos. O psiquismo nasce, assim, ancorado nesse corpo erógeno, fruto do encontro com o corpo materno.

A sexualidade, após Freud, passa a ser vista como um fenômeno híbrido, composto tanto de um corpo vivo e pulsante quanto de um campo de sentidos (Cintra, 2007, p. 38) originários das vivências desse corpo consigo mesmo e com os outros significativos. Em sua expressão infantil, será perversa polimorfa, dado seu caráter plástico e anárquico, não tendo como finalidade o prazer erógeno genital (Freud, 1905/1972, p. 196). Será tarefa da travessia edípica conferir certa organização a essa intensidade pulsional a que a criança estará sujeita desde sempre. Um percurso, então, será necessário para que ela construa sua identidade sexual adulta, através das sucessivas identificações. As condições feminina e masculina passam a ser concebidas como uma conquista árdua, fruto de um complexo processo identificatório.

O psiquismo estará desde sempre, portanto, ancorado na história desse corpo infantil. O sentir e o pensar estarão aí enraizados, e a análise será um ambiente privilegiado através do qual as experiências transferenciais poderão jogar alguma luz sobre a complexa e sofisticadíssima organização psíquica do sujeito.

O estímulo para as reflexões que apresento aqui surgiu do meu desconforto no atendimento de um paciente que vivia, entre outros conflitos, um intenso e profundo sofrimento quanto a sua identidade sexual. A ambiguidade era um traço marcante da sua relação comigo, consigo próprio e com o mundo. No nosso contato, paradoxalmente à certa entrega sua, eu sentia, em muitos momentos, um constante esvaziamento da minha presença, da alteridade que eu representava para ele. Parecia não se deixar penetrar por minhas intervenções; embora as ouvisse atentamente, frequentemente concordando com elas, estas pareciam nele apenas resvalar.

Pretendo discutir aqui como tal manifestação fenomenológica – a ambiguidade no contato transferencial – encontra-se ancorada em um modo particular de organização psíquica (enraizada na ilusão bissexual) que, embora no registro da neurose, tem como mecanismo significativo a recusa. Discuto também em que medida a recusa, por incidir no processo perceptivo, pode ser relacionada com os distúrbios de pensamento de Bion, mais especialmente o ataque à ligação.

 

Caso clínico

Chegada: primeiros encontros

Quando de sua chegada, já algum prenúncio de certa ambiguidade no modo de Lúcio estar no mundo se faz presente. Ao convidá-lo a entrar na sala ele se põe em movimento, mas em seguida recua: "posso ir ao banheiro?". Quando retorna, conta-me que seu trabalho na área de criação como free lancer o sobrecarrega devido à instabilidade financeira e à grande dificuldade em criar manifestada ultimamente. Suas produções não o satisfazem mais e ele também não se reconhece em seus recursos expressivos anteriores. Tal inibição, além de tudo, compromete o seu sustento. De maneira casual, me comunica: "se não fosse o problema da grana acho que não viria procurar ajuda." Sua queixa é de sentir-se perdido, muito insatisfeito com tudo, inclusive consigo mesmo, mas diz que não quer retomar o rumo, "quero apenas viver, compreender". Percebo que Lúcio apresenta um pedido de ajuda bastante peculiar: parece que, ao fazê-lo, precisa enfraquecê-lo, atenuá-lo, quase o anulando.

Em seguida conta-me algo que lhe traz grande sofrimento: "eu, uma vez, acho que amei alguém, um homem, mas não deu. Eu o encontrei, gostei muito, mas logo em seguida conheci minha atual namorada e fiquei com ela." Ao conhecê-la, ela lhe pareceu bissexual, o que o levou a imaginar que poderiam ter um relacionamento mais livre, que lhe permitisse ter experiências sexuais também com homens. Continua com a namorada, mas assaltado por desejos e dúvidas quanto à sua opção sexual. Ultimamente, diz, "resolveu" a questão abstendo-se de ter qualquer relação sexual, pois, com a namorada, de quem gosta, "não dá", e, com homens, "só dá para ser transa" (sem nenhuma relação afetiva que a acompanhe). Parece perceber que tal decisão, se por um lado aparentemente "resolve" um conflito, impõe outros: sente que a relação com a namorada está "esquisita" desde então, anseia por uma relação mais profunda, e sua atração por homens permanece.

Embora tenha vivido casamentos, filhos e, atualmente, a relação com a namorada, teve também experiências homossexuais passageiras. A primeira delas, quando ainda adolescente, foi assustadoramente prazerosa e o lançou em uma avassaladora dúvida quanto à sua escolha sexual.

Referindo-se ao trabalho, noto um clima de hesitação no seu modo de experimentar-se profissionalmente. Como se estivesse a se perguntar: é meu trabalho (que antigamente lhe trazia muita satisfação) de fato um trabalho ou um apenas um hobby, uma atividade de prazer?

Ainda em nossos primeiros encontros, Lúcio, inesperadamente, senta-se, tira o sapato e volta a deitar-se. Impressiono-me com suas meias: são listadas de rosa, amarelo, marrom e verde claro, como meias de uma menina pequena. Deitado, ele coça os pés, se mexe bastante, às vezes flexionando as pernas, colocando a sola dos pés em contato uma com a outra tal como um bebê que se diverte com os próprios pezinhos. Sinto-me desorientada: homem? menina? bebê?

Penso que Lúcio me apresentava o terreno ambíguo no qual se encontrava: Homem ou mulher? Adulto ou criança? Profissão ou hobby?

 

Ambiguidade: única possibilidade de estar no mundo?

Era frequente nele a queixa de que não se sentia inteiramente presente nas suas atividades cotidianas, tampouco na sua relação com os filhos, namoradas e amigos, o que o levava a um afrouxamento dessas relações. Logo no primeiro ano de trabalho, um impasse de natureza semelhante desenhou-se entre nós.

Lúcio encontra-se no umbral da porta de saída da análise: não consegue permanecer, tampouco consegue partir. São vários os anúncios de sua retirada iminente, desacompanhados, no entanto, do ato confirmatório da partida. Eu me sentia permanentemente prestes a ser abandonada, iniciando, repetidamente, um processo interno de despedida, para, então, ser surpreendida pela sua permanência na análise. "Não foi desta vez", pensava, e me rearranjava para recebê-lo novamente, num movimento em que me via permanentemente enredada.

L – Eu não sei explicar, tento formular em uma frase, mas não consigo… mas estou cheio de ter que ficar decidindo: vir, não vir; vir, não vir; por que vir, por que não vir.

Dias depois me liga, deixando um recado na secretária: "Ah! Marcella, não vou mais, não está dando"; no dia seguinte, entretanto, aparece no horário habitual:

L – Precisei falar aquilo [que não viria mais], mas depois quase liguei de novo para falar: não encana.
M – É, você achou que eu fosse encanar. E, de fato, você não vem, mas ao me anunciar no telefone que não virá mais você se faz presente. Mesmo sem vir e eu fico com você, "encanada".
L – É, eu não vou mais falar pelo telefone.
M – Não estou me queixando. Nós estamos podendo olhar para isso: parece que você não quer o rompimento, mas a entrega, também não.

Essa é uma pequena amostra de como, junto com Lúcio, eu tentava compreender seus movimentos. Psíquicos e físicos… pois Lúcio raramente permanecia a sessão inteira deitado: sentava-se, tornava a deitar, sentava-se novamente. Na tentativa de descobrir o que tornava insuportável sua permanência no divã, arrisquei até algumas interpretações pontuais, mas essas nunca tiveram ressonância nele. Até este momento, eu continuava a colocar o guardanapo de papel sobre a almofada do divã com o qual, algumas vezes, ele brincou de aviãozinho.

Com o avanço do nosso contato, Lúcio encontra um modo bastante peculiar de colocar-se na sala: senta-se no divã, de perfil para mim. Elege, então, esse modo de estar comigo e, a partir daí, poucas vezes volta à poltrona ou a deitar-se. É possível indagarmos se essa posição não revela um compromisso entre estar e não estar comigo, consoante com seus movimentos psíquicos. De perfil só me dá a conhecer um lado seu, o outro, não.

 

Ainda o caso, com reflexões

Pretendo, à medida que relato fragmentariamente o que vivi com Lúcio, lançar algumas hipóteses de como ele se organiza psiquicamente, pois o que ele faz e vive comigo está costurado à sua própria história.

Vimos que a ambiguidade – tanto sexual como entre presença e ausência – é um traço marcante do modo de Lúcio situar-se frente ao outro e a si mesmo. A ambiguidade sexual que vive intimamente encontra uma correspondência fenomenológica nesse modo de relação com o outro. Parece que assim cria-se uma zona de segurança na qual é possível a ele sobreviver. É somente dentro dos limites dessa área, salvaguardada por uma intensa defesa narcísica, que ele dá ao outro uma mínima entrada. Quando essa zona ameaça ser rompida, ele se detém.

Relatarei a seguir uma vinheta clínica com o intuito de discutir dois aspectos que julgo relevantes: o modo como a ambiguidade revela-se associada às moções pulsionais bissexuais do paciente e o modo pelo qual o mecanismo da recusa pode fazer-se presente no registro do pensamento na relação analista – analisando.

 

Vinheta

Após uma intervenção em que falo algo que pareceu significativo para ele, diz:

L – É. Eu escrevo ali: "onipotência / impotência", como eu faço quando eu tenho uma boa idéia, para depois voltar naquilo; mas eu não volto.
M – Interessante você dizer isso… Às vezes noto que digo algo, você ouve, não é que você não ouve, mas não se detém naquilo para ver o que tem ali, considerar o que eu disse…

(Nesse momento me passa pela cabeça a cena dele entrando em um dark room,3 relatada tempos atrás. Como não percebo a ligação desta cena com o que conversamos, opto por calar-me).

L: É, é como quando eu vou na sauna gay, como se eu fosse lá para dizer: "sou gay", e aí saio.

(Sua associação, então, esclarece minha lembrança)

M – Eu também pensava nisso, mas não tinha conseguido ver como isso se ligava ao que estávamos falando. Agora acho que sei: na sauna gay, como no dark room, você vai lá, mas logo sai, não pode ficar. Me lembrei também daquele moço que te interessou, mas que quando te escreveu um email querendo te conhecer melhor, você sumiu. Você quer, vai, mas não pode se deter, ver como é, ficar um pouco ali… Algo te assusta, você se aproxima e se afasta. Como aqui, comigo, você resvala.4

 

Ambiguidade e bissexualidade

Penso que essa vinheta ilustra o modo peculiar como se configura o imbricamento das moções bissexuais de Lúcio com a ambiguidade que se revela no seu modo de estar e não estar comigo e com as outras pessoas significativas de sua vida. Está sempre com um pé dentro e um pé fora, não define sua posição frente ao próprio desejo, pois defini-lo implicaria o reconhecimento de que algo lhe falta, algo que presentifica-se em um outro, externo e diferente dele mesmo.

Freud, inicialmente apoiado em dados de anatomia e embriologia, e, posteriormente, na clínica, afirmou a disposição bissexual do homem. Podemos inferir de sua obra que a bissexualidade situa-se no cerne da dialética narcisismo – complexo de Édipo, insinuando seu caráter de defesa contra a castração. Embora mencione a problemática da castração ao longo de sua obra, Freud a formaliza, conferindo-lhe estatuto estrutural, em "A organização genital infantil" (1923/1976d), fazendo-a ocupar, a partir de então, um espaço privilegiado em sua teoria. Nessa mesma época, o vemos concedendo cada vez mais importância ao período pré-edípico, às primeiras relações com a mãe. Alguns textos acenam para isso de modo privilegiado. Em "Inibições, sintomas e ansiedade", articula a angústia de castração com a angústia da separação materna:

O alto grau de valor narcísico que o pênis possui pode valer-se do fato de que o órgão é uma garantia para seu possuidor de que este pode ficar mais uma vez unido à mãe, isto é, a um substituto dela no ato de copulação. O ficar privado disto equivale a uma renovada separação dela, e isto por sua vez significa ficar desamparadamente exposto a uma tensão desagradável, a uma necessidade pulsional, como foi no caso do nascimento. (Freud, 1926/1976c, p. 163)

Nesse texto, vemos Freud relacionar o excesso do trauma ao desamparo, e este, por sua vez, à castração, trazendo à luz a essência do narcisismo pulsional em que vigora a ilusão de completude materna. Também em "A perda da realidade na neurose e na psicose" ele afirma a importância da introjeção das primeiras relações com a mãe. Quando diz:

a transformação da realidade é executada sobre os precipitados psíquicos de antigas relações com ela – isto é, sobre os traços de memória, as idéias e os julgamentos anteriormente derivados da realidade e através dos quais a realidade foi representada na mente. (Freud, 1924/1976e, p. 232)

Está sugerindo algo fundamental, a saber, que a realidade surge desse núcleo narcísico fusional mãe/bebê. E, sabemos, será a partir dessa célula narcísica que se dará a discriminação do eu, e o modo como essa separação do objeto for vivida marcará o bebê, fornecendo um contexto no qual vivenciará as perdas posteriores, inclusive a castração. A castração edípica ocorre tendo como pano de fundo a história do rompimento da relação fusional com a mãe. É nesse sentido que Joyce McDougall, debruçando-se sobre o conceito de bissexualidade, o eleva, explicitamente, ao estatuto de um ideal narcísico de completude. Diz ela:

construída sobre a muralha da diferença dos sexos [a bissexualidade] está embasada, porém, na relação primordial, no desejo sempre atual de anular a distância que separa o sujeito do outro, de negar a impossível alteridade. (McDougall, 1983, p. 55)

Assim, o ideal bissexual representaria um recuo não apenas frente à castração imaginária da diferença sexual, mas também frente à castração narcísica diante da separação da mãe.

Mas é em 1923, em "O ego e o id" – no qual Freud apresenta o complexo de Édipo positivo e o invertido, conferindo-lhe, portanto, o estatuto de um complexo estrutural – que a questão da bissexualidade reaparece com toda sua força. Ao tratar da intrincada trama identificatória do complexo de Édipo, ele afirma que a elaboração deste consiste, justamente, na elaboração da bissexualidade; ou seja, da ambiguidade e da indiferenciação: "A dificuldade do problema se deve a dois fatores: o caráter triangular da situação edipiana e a bissexualidade constitucional de cada indivíduo." (Freud, 1923/1976c, p. 46). O complexo de Édipo passa, então, a ser visto como um trajeto dentro do qual as pulsões sexuais, desde sempre bissexuais, exigirão uma elaboração interna. Já havíamos visto rastros do papel e da necessidade de elaboração da bissexualidade em "Dora", "Schreber", "Homem dos Ratos" e na jovem homossexual.

Penso que o ideal bissexual em Lúcio está fundado no ideal fusional; sua tentativa parece ser a de anular a falta, a percepção de que o seio foi perdido, que finda a unidade primordial. Sustentando a ambiguidade, não reconhece uma identidade própria, pois esta passa, necessariamente, pelo reconhecimento de uma diferença. Quando surge alguma assimetria entre nós, Lúcio se vê lançado imediatamente à lógica de um superior e um inferior. A diferença, quando se esboça, ao invés de estimulá-lo, lança-o em um profundo sofrimento. Para proteger-se dessa dor, busca, muitas vezes, refúgio na autossuficiência narcísica, sua zona de segurança.

L - Quinta feira não vim, achei bom, me senti bem dizendo "não". São poucas as coisas para as quais posso dizer "não". Para a análise eu posso. E me deu até um prazer em falar: "não, obrigado, não quero", mesmo eu não tendo nada para fazer.
M – Parece um prazer em não precisar do outro, de mim. Não será uma dificuldade em fazer par? Aqui você está sempre de saída, está com um pé dentro outro fora, com a sua namorada também…

E ainda:

L – É como se fosse uma droga: quando ligo para cá dizendo que não venho é como uma picada, aí relaxo.
M – Parece que o seu "barato" é se opor, negar a análise; se não tem análise para você não vir, não tem barato.

 

Recusa e pensamento

É em torno da castração que Freud vai descrever a verleugnung, recusa. Desde "O homem dos lobos", de 1914, encontramos o esboço dessa concepção, quando Freud a menciona como um dos modos de lidar com a castração. Em 1925, no texto "Algumas consequências da diferença anatômica dos sexos", Freud admite a presença da recusa na criança (dada a sua natureza bissexual), mas é após 1927, a partir da problemática do fetichismo, que elabora e formaliza o conceito como a coexistência de duas posições inconciliáveis: a recusa e o reconhecimento da percepção da castração feminina. Podemos ler essa passagem referendada à castração primordial: recusa e reconhecimento da percepção da incompletude materna, sendo a função do fetiche restaurar a completude.5 Completude essa que pode estar na fusão com o objeto. Em Lúcio, o dark room, assim como a droga, podem ser vistos como busca de situações de fusão com o objeto, onde não há discriminação, separação, diferença.

Figueiredo propõe que entendamos a recusa como desautorização da percepção, e destaca o principal aspecto desse mecanismo:

O que se passa, contudo, é que [a percepção] é desfalcada de autoridade para ensejar outras percepções e outros processos psíquicos, vale dizer, é mantida isolada do processo perceptivo, e de suas conexões naturais com os processos mnêmicos e de simbolização. (Figueiredo, 2003, p. 60)

O autor chama a atenção para o fato de que não se trata da recusa de uma percepção e sim da recusa do que viria em seguida, como desdobramento dela, ou seja, de sua "capacidade de remeter-se ou levar, em uma dada sequência perceptiva, a certas conclusões, ou ainda, reativar certas lembranças" (Figueiredo, 2003, p. 61). Daí o termo desautorização, dado que esta interrompe, põe fim, às consequências desse saber, ao trânsito para outras percepções ou lembranças.

Indicando a relação íntima do processo perceptivo ao juízo de realidade (de existência), ele sustenta que uma percepção propriamente dita implica dois momentos de síntese entremeados por um momento de desfazer a síntese. O primeiro momento tem uma dimensão gestáltica: trata-se de uma síntese que dá sentido, figurabilidade, à dispersão sensorial. Porém, essa síntese deve ser seguida de uma abertura, ou seja, deve ser de alguma forma desfeita para dar origem a novas sínteses. A esse segundo momento, ele dá o nome de antigestáltico. Em um terceiro momento, essas figuras devem se articular em uma nova síntese, dando origem ao resultado do processo perceptivo: a fluência da realidade e continuidade do processo de pensamento.

Foi Bion, que, referendando as premissas principais de Freud, dedicou especial atenção à gênese e evolução dos processos de pensamento. Em sintonia com Freud, sua teoria do pensamento tem como ponto de partida a frustração das necessidades básicas do bebê. A capacidade deste em tolerar o ódio advindo delas é que vai determinar, em grande medida, sua capacidade de desenvolver um aparelho para pensar, através da função alfa – função responsável por integrar as sensações originadas dos órgãos dos sentidos com as respectivas emoções. O pensar, para Bion, é uma função criativa de estabelecer correlações em um mundo de significados no qual emoção e conhecimento encontram-se indissociados. Dentro dos distúrbios do pensamento descritos por Bion, temos o ataque ao vínculo, que se:

processa tanto no plano da realidade exterior como também na formação do pensamento verbal; na forma de comunicação com o analista; contra os vínculos que interligam as percepções e as emoções; e principalmente contra os obstáculos das verdades (K, -K) assim impedindo as correlações afetivas e ideativas que dariam lugar à – depressiva – noção de responsabilidade. (Zimerman, 1995, p. 188)

Vemos, então, que o ataque se dá, inclusive, aos elos de ligação necessários para a função do pensamento. O ódio à realidade é entendido como ódio à integração e fluência dos processos psíquicos na sua capacidade de fazer as ligações que criam as redes de pensamentos. Retomando Figueiredo (2003), a recusa, se entendida como desautorização da percepção, na medida em que impede a transitividade da percepção, gera, como desdobramento, um distúrbio no campo do pensamento.

Quando Lúcio diz que, ao ter uma idéia criativa ou ouvir algo significativo, o deixa de lado "para depois voltar àquilo", mas não o faz, não estaria ele comunicando que elementos percebidos e armazenados são recusados, ficam isolados, sem possibilidade de ligação, impedindo assim que deságuem em conclusões e tomadas de posição que trariam angústia? Se assim for, não poderíamos inferir um elo, nesse caso, entre a recusa, como mecanismo de defesa, o ataque à ligação e o ódio à realidade?

A recusa, como mecanismo de defesa frente à castração, tal como descrita por Freud, encontraria, então, nesse caso, desdobramentos tanto no campo transferencial, configurando-se como ambiguidade, como no campo do pensamento, configurando-se como uma modalidade de ataque à ligação.

 

Considerações finais

É comum ouvirmos dizer que a diferença fundamental entre Freud e Bion é que o primeiro baseou-se, fundamentalmente, na teoria pulsional enquanto o segundo deu ênfase à teoria do pensamento. Na perspectiva desenvolvida aqui, enfocando os desdobramentos da recusa no campo transferencial e no campo do pensamento, não negamos a afirmativa anterior, mas ressaltamos a complementaridade delas no humano, dado que o pensar, sabemos, ocorre em um corpo erógeno, sexual, pulsante, desde o mais inaugural encontro com o outro.

 

Agradecimento
Agradeço a profunda e atenta leitura de Daniel Delouya.

 

Referências

Bion, W. R. (2000). Cogitações. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1992)        [ Links ]

Cintra, M. E. U. (2007). O despertar da sexualidade: o olhar adolescente – mente e cérebro. São Paulo: Duetto.

Figueiredo, L. C. (2003). Psicanálise: elementos para uma clínica contemporânea. São Paulo: Escuta.         [ Links ]

Freud. S. (1972). Três ensaios sobre a sexualidade. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 7, p. 196). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1905)        [ Links ]

Freud, S. (1974). O fetichismo. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 20, p. 181). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1927)        [ Links ]

Freud, S. (1976a). Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 19, p. 313). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1925)        [ Links ]

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Freud, S. (1976d). A organização genital infantil: uma interpolação na teoria da sexualidade. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. O. A. Abreu, trad., Vol. 19, p. 182). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1923)        [ Links ]

Freud, S. (1976e). A perda da realidade na neurose na e na psicose. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 19, p. 232). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1924)        [ Links ]

McDougall, J. (1983). Em defesa de uma certa anormalidade: teoria e clínica psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas.         [ Links ]

Zimerman, D. E. (1995). Bion: da teoria à prática – uma leitura didática. Porto Alegre: Artes Médicas.

 

 

Endereço para correspondência
Marcella Monteiro de Souza e Silva
Rua Capote Valente 439, 84 | Pinheiros
05409-001 São Paulo, SP
Tel: 11 3061-5649
E-mail: cellas@uol.com.br

Recebido em: 9/10/2011
Aceito em: 27/10/2011

 

 

1 Este trabalho foi apresentado na sessão Temas Livres do XXIII Congresso Brasileiro de Psicanálise, Ribeirão Preto, 2011.
2 Membro filiado do Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise São Paulo SBPSP.
3 Sala escura comum em boates GLS onde as pessoas, na maioria homossexuais, se tocam, beijam, sem verem nem serem vistas.
4 Podemos detectar, nesta antecipação que ocorre a mim (dark room) no campo transferecial, o "trabalho onírico alfa" como o descreve Bion (2000), particularmente, no que tange à característica primordial do elemento alfa de se adequar ao emprego no pensamento onírico e no pensamento inconsciente de vigília, sendo adequado para ser utilizado como símbolo ou ideograma.
5 Na lógica narcísica, o atributo fálico é conferido àquilo que falta, àquilo que, se presente, tamponaria a falta.

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