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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.44 no.81 São Paulo dic. 2011

 

INTERFACE

 

O inferno na obra de Graciliano Ramos: uma obsessão semiótica

 

Hell in the work of Graciliano Ramos: a semiotic obsession

 

El infierno en la obra de Graciliano Ramos: una obsesión semiótica

 

 

Izidoro Blikstein1

Universidade de São Paulo
Fundação Getulio Vargas de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste artigo é demonstrar como a busca do significado do termo inferno é uma obsessão semiótica que perpassa pela obra inteira de Graciliano Ramos. Tudo começa na dúvida que assalta o menino mais velho, personagem de Vidas Secas, quando este, ao ouvir uma "palavra esquisita" – inferno –, procura saber o significado; pergunta à mãe (sinhá Vitória), ao pai (Fabiano) e até à cachorra Baleia, mas não consegue descobrir o que é inferno. Ao fazer a pergunta "O que é inferno?", o menino instaura de pronto um problema semiótico, na medida em que, conforme a clássica lição de Ferdinand de Saussure, ele detém o significante, mas não conhece o significado. Ao pedir explicações à mãe, o menino fica sabendo que o inferno é "um lugar ruim". Para compreender esse significado, ele indaga de sinhá Vitória se ela já tinha ido ao inferno para saber se era um lugar ruim. Tal indagação lhe vale uma repreensão e uma pancada na cabeça. Mas a pergunta do menino era da mais legítima prática semiótica, pois como sinhá Vitória poderia saber que o inferno é um lugar ruim, se nunca tinha ido lá? Estamos diante de uma ampla questão semiótica que envolve a relação entre os signos, o conhecimento e a realidade. Para explicar o conhecimento de sinhá Vitória a respeito do inferno, temos de recorrer às teorias de Mikhail Bakhtin e, mais especificamente, a seus conceitos de intertextualidade e polifonia. No artigo, demonstraremos como inferno é uma "realidade" construída por toda uma rede de discursos intertextuais e polifônicos, produzidos em diferentes épocas e culturas. É justamente contra essa construção semiótica realizada pelo discurso do mundo adulto que se insurge Graciliano, em Infância, na medida em que questiona "as certezas" das instituições (família, escola, religião). E não é por acaso que uma dessas "certezas" questionadas é a existência do inferno. Em Infância, ao negar o inferno, desafiando a própria mãe e a Igreja, Graciliano é, na verdade, o menino mais velho de Vidas Secas na busca obstinada pela significação do mundo.

Palavras-chave: Semiótica, Signo, Referente, Intertextualidade, Polifonia.


ABSTRACT

The aim of this article is to demonstrate how the search for the meaning of the word hell is a semiotic obsession that pervades through the entire work of Graciliano Ramos. All starts with the doubt that assails the oldest boy, character of Vidas Secas, when he, upon hearing a "strange word" – hell –, tries to find out its meaning, asks his mother (sinhá Vitória), father (Fabiano) and even the dog Baleia, but cannot figure out what hell is. In asking the question "What is hell?" the boy at once establishes a semiotic problem, in the extent that, according to the classic lesson of Ferdinand de Saussure, he holds the significant, but does not know the meaning. When asking for explanations to his mother, the boy learns that hell is "a bad place". To understand this meaning, he asks sinhá Vitória if she had ever gone to hell to know if it was a bad place. This inquiry earns him a rebuke and a blow to the head. But the question of the boy was the most legitimate semiotic practice, because how would sinhá Vitória know that hell is a bad place, if she had never been there? We are before a broad semiotic issue involving the relationship between the signs, the knowledge and the reality. To explain the knowledge of sinhá Vitória about hell, we must resort to the theories of Mikhail Bakhtin and, more specifically, to his concepts of intertextuality and polyphony. In the article, we will demonstrate how hell is a "reality" built by a whole network of intertextual and polyphonic discourses, produced in different times and cultures. It is precisely against this semiotic construction performed by the discourse of the adult world that Graciliano rebels in Infância (Childhood), in the extent that he questions "the certainties" of institutions (family, school, religion). And it is not a coincidence that one of these "certainties" questioned is the existence of hell. In Infância (Childhood), by denying hell, defying his own mother and the Church, Graciliano is actually the oldest boy of Vidas Secas in obstinate search for the meaning of the world.

Keywords: Semiotics, Sign, Referent, Intertextuality, Polyphony.


RESUMEN

El objetivo del presente artículo es demostrar como la búsqueda del significado del término infiernogira en torno a una observación semiótica a lo largo de toda la obra de Graciliano Ramos. Todo comienza con la duda que sorprende al niño mayor, personaje de Vidas Secas, cuando al escuchar una "palabra extraña" – infierno – intenta saber el significado; pregunta a su madre (señora Victoria), al padre (Fabiano) y hasta a la perra Ballena, pero no puede descubrir qué significa infierno. Al formular la pregunta "¿Qué es infierno?", el niño inmediatamente instaura un problema semiótico, en la medida en que – de acuerdo a la clásica lección de Saussure – él también obtiene el significante pero no conoce el significado. Al solicitar explicaciones a su madre, el niño pasa a saber que el infierno es un "lugar malo". Para comprender ese significado, él indaga de la señora Victoria si ya había ido al infierno como para saber que era un lugar malo. Tal indagación le cuesta una reprensión y un golpe en la cabeza. Pero la pregunta del niño era de la más legítima práctica semiótica porque ¿cómo la señora Victoria podría saber que el infierno era un lugar malo sin nunca haber ido hasta allá? Estamos frente a una amplia cuestión semiótica que envuelve la relación entre los signos, el conocimiento y la realidad. Para explicar el conocimiento de la señora Victoria al respecto del infierno, tenemos que recurrir a las teorías de Mikhail Bakhtin y, más específicamente, a sus conceptos de intertextualidad y polifonía. En este artículo demostraremos como infierno es una "realidad" construida por toda una red de discursos intertextuales y polifónicos, producidos en diferentes épocas y culturas. Es justamente contra esa construcción semiótica realizada por el discurso del mundo adulto que se alza Graciliano, en Infancia, en la medida en que cuestiona "las certezas" de las instituciones (familia, escuela, religión). No es por acaso que una de esas "certezas" cuestionadas se trate de la existencia del infierno. En Infancia, al negar el infierno, desafiando a la propia madre y a la Iglesia, Graciliano verdaderamente es el niño mayor de Vidas Secas en la obstinada búsqueda por el significado del mundo.

Palabras clave: Semiótica, Signo, Referente, Intersexualidad, Polifonía.


 

 

– Mãe, o que é inferno?2

Em Vidas Secas (Ramos, 1968), essa pergunta, feita pelo menino mais velho à sinhá Vitória, sua mãe, instaura de pronto uma questão semiótica fundamental que perpassa pela obra inteira de Graciliano Ramos: o significado dos signos que representam o mundo à nossa volta. Com efeito, a pergunta do menino é própria da investigação semiótica. Conforme a clássica lição de Ferdinand de Saussure (1974), o signo, unidade básica da comunicação, compõese de um significante e de um significado; e é justamente o conhecimento dessas duas faces do signo (significante/significado) que possibilita o entendimento das mensagens. Assim, para citar um exemplo trivial de signo, no caso da sinalização rodoviária, o triângulo de cor vermelha colocado na via pública é um significante, cujo significado é: carro parado na via. É evidente que o desconhecimento desse significado pode gerar graves ruídos de comunicação.

Basta, portanto, que se desconheça uma das faces do signo para que surja uma dúvida semiótica. Ora, no caso do menino mais velho, a dúvida se deve ao fato de que ele ouvira um significante "esquisito" que o incomodou, pois o significado lhe era desconhecido. Tal "incômodo" foi causado por uma palavra usada por sinhá Terta nas benzeduras que fazia para aliviar as dores de Fabiano (pai do menino):

A culpada era sinhá Terta, que na véspera, depois de curar com reza a espinhela de Fabiano, soltara uma palavra esquisita… (Ramos, 1968, p. 71)

Para desfazer-se do incômodo, o menino opera, então, uma autêntica prática semiótica, indo em busca do significado da palavra "esquisita"; procura sinhá Vitória e lhe pergunta "o que é inferno":

Deu-se aquilo porque Sinhá Vitória não conversou um instante com o menino mais velho. Ele nunca tinha ouvido falar em inferno. Estranhando a linguagem de sinhá Terta, pediu informações. Sinhá Vitória, distraída, aludiu vagamente a certo lugar ruim demais, e como o filho exigisse uma descrição, encolheu os ombros. (Ramos, 1968, p. 69)

O incômodo do menino poderia terminar nesse momento, uma vez que, pela informação de sinhá Vitória, o signo já estaria completo: significante – inferno / significado – "lugar ruim demais". Mas esse significado não parece ser suficiente para o menino saber realmente o que é o inferno. Aqui já começa a esboçar-se o germe da obsessão semiótica: insatisfeito, o filho pede uma descrição do inferno, mas sinhá Vitória não leva em conta a curiosidade da criança, limitando-se a "encolher os ombros". Surgem, então, ruídos de ordem semiótica em decorrência do não entendimento do significado dos signos.

A atitude de sinhá Vitória ilustra bem os ruídos semióticos que interferem na comunicação entre o adulto e a criança. Vale retomar o fundamental conceito de repertório para esclarecer a origem de tais ruídos. Como sabemos, todos nós construímos um repertório ao longo de nossa experiência de vida. O repertório pode ser definido como a rede de valores, crenças, códigos, experiências e, sobretudo, ideologias. Forma o pano de fundo ou background que envolve o caráter, a personalidade e o temperamento dos indivíduos, condicionando nossa percepção e visão de mundo.

Não é difícil avaliarmos a distância entre o repertório de sinhá Vitória e o do filho. O repertório de sinhá Vitória envolve toda uma história de vida, experiências, vida familiar, religião, crenças, estereótipos etc. Já o repertório do menino é claramente mais restrito que o da mãe, pois "ele nunca tinha ouvido falar em inferno". Podemos dizer, portanto, que os ruídos semióticos provêm, em geral, da diferença de repertórios. No repertório adulto, os conceitos já se encontram tão estratificados, ordenados, estereotipados e "naturalizados" que não é necessário explicitar os pressupostos e os subentendidos. Quando a mulher diz "vai chover" ao marido que está saindo de casa, há certamente, nessa frase, o pressuposto de que ele deve levar um guarda-chuva. No repertório da criança, entretanto, os conceitos existentes ainda não estão cristalizados e nada é tão "natural" quanto no mundo adulto. Seria necessário explicitar o que está subentendido. Para o repertório de sinhá Vitória, "lugar ruim demais" é suficientemente claro, mas não para o repertório do filho.

A diferença de repertórios se agrava, quando o menino tenta comunicarse com o pai:

O menino foi à sala interrogar o pai… O pequeno … timidamente arriscou a pergunta. Não obteve resposta… (Ramos, 1968, p. 69)

De repertório bem restrito, se comparado ao de sinhá Vitória, Fabiano não se empenhou em responder à pergunta atrevida. A falta de comunicação de Fabiano e a comunicação insuficiente de sinhá Vitória atiçam o germe da obsessão semiótica do menino:

voltou à cozinha, foi pendurar-se na saia da mãe:
– Como é?
Sinhá Vitória falou em espetos quentes e fogueiras.
– A senhora viu?
Aí sinhá Vitória se zangou, achou-o insolente e aplicou-lhe um cocorote.
(Ramos, 1968, p. 69)

O castigo é aplicado não só pela insolência da pergunta, mas também porque o filho pôs em dúvida o conhecimento de sinhá Vitória. As definições do adulto devem ser consideradas verdadeiras, lógicas, "naturais" e não podem ser questionadas. Com razão, afirmou Roland Barthes, em sua aula inaugural no Collège de France, em 1977: "a língua… é simplesmente fascista" (Barthes, 1996).

Apesar do castigo, o menino nos propiciou um momento precioso para as ciências da linguagem: com a simples pergunta "A senhora viu?", ele nos permitiu descortinar um novo horizonte para a semiótica, na medida em que saímos dos estreitos limites do signo/significante/significado para resgatar a dimensão da "realidade" extralinguística. Na verdade, a indagação do menino é simplória: como sinhá Vitória pode saber que o inferno é "lugar ruim demais, com espetos quentes e fogueiras", se ela nunca viu e nem esteve lá? Cabe outra pergunta simplória: se ela nunca viu o inferno, como ficou sabendo que se trata de "um lugar ruim demais"? Onde aprendeu que é "um lugar com espetos quentes e fogueiras"? Outra pergunta não tão simplória: o signo inferno – como pretende o menino – nos conduz ao inferno real ou ao inferno "conceitual"?

Estamos em presença de uma questão fundamental para a semiótica e as ciências humanas de um modo geral: a relação entre os signos, a percepção, o conhecimento e a realidade. Teriam os signos uma relação convencional ou natural com a realidade? Essa questão não é nova, pois foi formulada há dois mil e quinhentos anos por Platão, no Diálogo Crátilo (1950). Nessa obra, Sócrates é procurado por dois discípulos, Crátilo e Hermógenes, que lhe perguntam se a relação entre as palavras e as coisas é natural ou convencional. Na discussão que se trava entre eles, Sócrates lança uma definição de palavra que nos parece muito sugestiva para a semiótica:

Ónoma ára… tí estin órganon kaì diakritikòn tês ousías, ósper kerkìs yphásmatos.

O nome é, assim, um instrumento para discernir a realidade, como a lançadeira faz com o tecido.
(Platão, 1950, 388b, p. 57)

Há, por assim dizer, uma teoria semiótica inteira embutida no termo diakritikón. Com efeito, Platão considera que o nome (a palavra ou o signo) não nos leva a conhecer a realidade propriamente dita; o nome é um órganon diakritikòn, isto é, um instrumento que nos leva a discriminar ou a discernir a ousía, "aquilo que existe, a realidade". O termo ousía, em grego, não significa "realidade", mas a "substancialidade", ou, melhor dizendo "a realidade conceitualizada", "a realidade filtrada pela experiência e pela cognição". Essa função discriminatória do signo, recortando uma "realidade conceitualizada", foi assinalada com justeza por Saussure, ao observar que "é o ponto de vista que cria o objeto…"; em outras palavras, os objetos, as coisas, o "real" passam a existir para nós, desde que "substancializados" ou "conceitualizados" (Saussure, 1974, p. 15)

Pelo exposto, o signo não nos leva à realidade: sinhá Vitória não conhece o inferno real, mas "conceitualizado". Como, então, o conceito ou significado de inferno chegou ao repertório de sinhá Vitória?

Os significados dos signos são tributários da realidade filtrada ou conceitualizada por nossa experiência. É preciso pois alargar a dualidade saussuriana (significante/significado) para a relação triádica, proposta por Ogden e Richards (1956), segundo a qual, o signo tem três dimensões: símbolo (significante), referência (significado) e referente (a "coisa" ou "realidade" conceitualizada por nossas práticas sociais). No caso de Kaspar Hauser (Blikstein, 2009), por exemplo, podemos dizer que, apesar de aprender os signos que a comunidade lhe ensinava, sua compreensão era prejudicada pelo desconhecimento do referente. Kaspar Hauser deveria conhecer as práticas sociais da sociedade que o acolheu para entender que o referente chama da vela queima.

O mesmo ocorre com o menino mais velho: falta-lhe o referente inferno, que existe no repertório de sinhá Vitória. Para entendermos como esse referente chegou a sinhá Vitória, temos de recorrer à teoria do semioticista russo, Mikhail Bakhtin. Segundo Bakhtin (1993), a língua não é um sistema monobloco, totalmente previsível e controlável. A língua é um sistema sujeito a heterogeneidade que se envolve com dimensões históricas, geográficas, sociológicas, antropológicas, psicológicas, estéticas, filosóficas etc. Consequentemente, os signos, os enunciados, os discursos não são autônomos, mas estão envolvidos por toda uma rede de vozes e textos, produzidos em diferentes momentos e culturas, a tal ponto que é necessário desenvolver uma verdadeira escavação arqueológica para detectarmos a origem de determinado pensamento ou teoria. Daí surgem os conceitos de polifonia e intertextualidade. Atrás de qualquer texto, discurso ou signo há muitas vozes e textos que lhes dão suporte. Assim, quando um político diz que "não se venderá por 30 dinheiros", é evidente a alusão ao episódio de Judas na Bíblia. Ocorre que a intertextualidade nem sempre é percebida ou conhecida, de modo que frequentemente produzimos um discurso que julgamos original, quando, na verdade, ele decorre de toda uma intertextualidade já dita por outras vozes. Tal falta de percepção nos leva a reproduzir automaticamente pensamentos, observações, informações que são aceitas sem contestação, porque a força da intertextualidade nos leva a considerá-las lógicas, indiscutíveis e "naturais".

Tal é o caso do inferno. Um rastreamento da intertextualidade sobre inferno vai nos mostrar que, desde a antiguidade judaico-cristã, houve uma produção de textos que possibilitaram a construção do referente inferno, como "um lugar ruim demais, com espetos quentes e fogueiras". Tal construção já começa pela etimologia de inferno. Ligado ao latim inferior, "que está abaixo", inferno designa "lugar embaixo [da terra]", para onde vão os mortos condenados. Há uma oposição com céu, região superior para onde vão as almas puras. Na intertextualidade de inferno, um texto fundamental é, sem dúvida alguma, a Divina Comédia (1307-1321), em que Virgílio conduz Dante pelos nove círculos do Inferno, em meio a monstros, almas condenadas e Lúcifer.

Na literatura portuguesa, uma descrição marcante do inferno encontrase na obra do Padre Manuel Bernardes, Pão partido em pequeninos para os pequeninos da casa de Deus, publicada em 1694. A obra de Bernardes foi, em linha gerais, uma resposta ao enciclopedismo de Voltaire e Montesquieu; nela, ele procurou divulgar e defender a fé católica. Nesse contexto, Bernardes elaborou Pão Partido em pequeninos…, com um objetivo claramente didático: sua intenção era demonstrar os perigos a que se expunham os fiéis caso se deixassem levar pelas ideias revolucionárias e materialistas. Com esse intuito, Bernardes faz uma descrição aterradora do inferno; o cenário apresentado parece ser o produto de toda uma intertextualidade e uma polifonia produzidas ao longo dos séculos:

vejo no centro da terra uma masmorra ou calabouço profundíssimo, escuríssimo, tristíssimo, cheio de labaredas de fogo de enxofre, e de nuvens de espesso fumo; e ali abrasando-se inumerável multidão de condenados, atados em feixes uns com os outros, em companhia dos demônios, e todos em confusa vozearia estão bramindo, e uivando como cães danados, e vomitando contra Deus blasfêmias horrendas. (Bernardes, n.d., pp. 185-186)

Vi aos desonestos … que estavam em cadeiras de fogo, e que nelas os atormentavam os demônios terrivelmente, despedaçando suas carnes com garfos e unha de ferro; e… com tenazes em brasa … arrancam aquelas partes onde foram culpados… (Bernardes, n.d., pp. 192-193)

O referente inferno foi incorporado ao repertório de sinhá Vitória por várias "agências" (religião, família, sociedade). Não era preciso, então, ir ao inferno. Mas o menino, tomado pela obsessão semiótica, continua perseguindo a palavra "esquisita". Magoado com o cocorote da mãe, busca consolo e apoio em Baleia. Agarrado a ela, começa a repetir "inferno", procurando fruir sua sonoridade. Nessa altura, Graciliano faz uma observação que vale uma tese de semiótica:

Ele tinha querido que a palavra virasse coisa e ficara desapontado quando a mãe se referira a um lugar ruim, com espetos e fogueiras… – Inferno, inferno…
(Ramos, 1968, pp. 71-73)

É notável a visão semiótica de Graciliano. Ao querer que "a palavra virasse coisa", o menino tenta realizar uma mágica semiótica: como não conseguia saber exatamente o que é o inferno, o menino procura transformar o signo em realidade. Esse desejo era plenamente justificável porque:

Não acreditava que um nome tão bonito servisse para designar coisa ruim.
(Ramos, 1968, p. 73)

No repertório do menino "todos os lugares conhecidos eram bons" (Ramos, 1968, p. 72). Como haveria ele de incluir um "lugar ruim demais" em seu repertório? Por isso, "resolvera discutir com sinhá Vitória" (p. 72). Prevalece aqui o autoritarismo do adulto que, como quer Roland Barthes, coage a criança, pela violência, a aceitar o significado imposto:

Se ela houvesse dito que tinha ido ao inferno, bem. Sinhá Vitória impunha-se, autoridade visível e poderosa. Se houvesse feito menção de qualquer autoridade invisível e mais poderosa, muito bem. Mas tentara convencê-lo dando-lhe um cocorote, e isto lhe parecia absurdo. (Ramos, 1968, p. 73)

Não deixa de ser irônico o fato de que todo esse drama semiótico se desenrolou em torno de um referente e não de uma realidade palpável.

A obsessão semiótica não acontece apenas com o menino mais velho de Vidas Secas. Trata-se de uma obsessão que persegue o próprio Graciliano, desde sua infância. Em Infância (Ramos, 2008), seu livro de memórias escrito sete anos depois de Vidas Secas, Graciliano nos relata como, desde aproximadamente os três anos de idade, ele manifesta uma constante estranheza e questiona as "certezas" do mundo adulto:

A primeira coisa que guardei na memória foi um vaso de louça vidrada, cheio de pitombas… (Ramos, 2008, p. 9)

Inculcaram-me nesse tempo a noção de pitombas – e as pitombas me serviram para designar todos os objetos esféricos. Depois me ensinaram que a generalização era um erro, e isto me perturbou. (Ramos, 2008, p. 9)

Como podemos perceber, Graciliano põe em questão os códigos e o repertório dos adultos: o signo pitomba não serve para todo objeto esférico. Outras imposições ocorrerão, gerando sempre uma reação adversa:

Alguém mudou pitombas em laranjas. Não gostei da correção.
(Ramos, 2008, p. 10)

Mas, aos seis anos de idade, surgirá (como no caso do menino mais velho) o grande conflito semiótico exatamente com a palavra inferno:

Súbito ouvi uma palavra doméstica e veio-me a ideia de procurar a significação exata dela. Tratava-se de inferno. Minha mãe estranhou a curiosidade…
(Ramos, 2008, p. 79)

Não me conformei. Pedi esclarecimentos, apelei para a ciência dela. Por que não contava o negócio direitinho? Instada, condescendeu. Afirmou que aquela terra era diferente das outras. Não havia lá plantas, nem currais, nem lojas, e os moradores, péssimos, torturados por demônios de rabo e chifres, viviam depois de mortos em fogueiras maiores que as de S. João e em tachas de breu derretido. (Ramos, 2008, p. 80)

Verifica-se que a mãe tem a mesma relutância de sinhá Vitória em "contar o negócio direitinho", pois inferno é um signo cristalizado no repertório adulto, dispensando grandes explicações. Graciliano, no entanto, procura aproximar a descrição a elementos de seu próprio repertório, lembrando que já conhecia fogueiras de S. João e breu derretido. Com o breu derretido sofrera uma queimadura, o que o leva a rejeitar a descrição da mãe:

Quando minha mãe falou em breu derretido, examinei a cicatriz do dedo e balancei a cabeça, em dúvida. Se o pequeno torrão, esmagado com o peso de meio quilo, originara aquele desastre, como admitir que pessoas resistissem muitos anos a barricas cheias derramadas em tachas fundas, sobre fogueiras de São João? (Ramos, 2008, p. 81)

A inconsistência e a insuficiência da descrição incitam Graciliano (a exemplo do menino mais velho) a fazer a pergunta perturbadora:

– Eu queria saber se a senhora tinha estado lá. (Ramos, 2008, p. 81)
Não tinha estado, mas as coisas se passavam daquela forma e não podiam passarse de forma diversa. Os padres ensinavam que era assim. (Ramos, 2008, p. 81)

Como o menino mais velho, Graciliano também quer saber se a mãe conheceu o inferno "real". A resposta da mãe evidencia a força das "certezas" estereotipadas, na medida em que as coisas "não podiam passar-se de forma diversa". Por outra lado, fica nítida a ação da intertextualidade, a partir do discurso dos padres, segundo os quais o inferno "era assim".

E Graciliano desafia o discurso da Igreja, ao inquirir:

– Os padres estiveram lá? (Ramos, 2008, p. 81)

Ele questiona a narrativa estereotipada, afirmando:

Não me satisfaziam as fogueiras, as tachas de breu, vítimas e demônios.
(Ramos, 2008, p. 81)

E, para demonstrar como o signo inferno estava imerso numa intertextualidade cheia de incoerências, Graciliano questiona a narrativa da mãe:

Minha mãe estragara a narração com uma incongruência. Assegurara que os diabos se davam bem na chama e na brasa. Desconhecia porém a resistência das almas supliciadas. Dissera que elas suportariam padecimentos eternos. Logo insinuara que, depois de estágios mais ou menos longos, se transformariam em diabos. (Ramos, 2008, p. 82)

Irritada com as perguntas do filho, a mãe afirma que, embora os padres não tivessem estado no inferno, eles conheciam muito bem o lugar, pois "aprendiam tudo no seminário, nos livros" (p. 82). Como se vê, o inferno é um produto da intertextualidade (seminário, livros).

A insuficiência e as incoerências do discurso materno e da Igreja levam Graciliano a negar as "certezas" do mundo adulto:

– Não há nada disso. (Ramos, 2008, p. 82)
– Não há não. É conversa. (Ramos, 2008, p. 83)

Com tal negação categórica, Graciliano acaba por demolir a construção semiótica do inferno, tão bem sedimentada e estereotipada no repertório dos adultos. Essa transgressão será punida pela mãe, não com cocorotes, mas com chineladas:

Minha mãe curvou-se, descalçou-se e aplicou-me várias chineladas.
(Ramos, 2008, p. 83)

A obsessão semiótica se deve portanto ao fato de Graciliano, desde a infância, sempre questionar as "verdades" e "certezas" do senso comum, próprias do universo ordenado e estereotipado do mundo adulto. Esse questionamento é permanente, o que lhe valerá mais tarde uma dolorosa prisão, sob a acusação de um comportamento subversivo. Talvez ele se refira a esse acontecimento no final do capítulo O Inferno:

Não me convenci. Conservei-me dócil, tentando acomodar-me às esquisitices alheias. Mas algumas vezes fui sincero, idiotamente. E vieram chineladas e outros castigos oportunos. (Ramos, 2008, p, 83)

Para concluir, poderíamos dizer que Graciliano Ramos e o menino mais velho nos ensinam a desconfiar das "certezas" e "verdades" indiscutíveis do repertório ordenado e estereotipado. Os signos estão comprometidos com toda uma intertextualidade; é preciso questionar essa construção intertextual que, apoiada em pressupostos ideológicos, modula nossa percepção e visão de mundo. Embora nenhum discurso ou texto seja inocente, devemos questionálos sempre. Essa consciência semiótica é a garantia de nossa liberdade… de pensamento, pelo menos.

 

Referências

Alighieri, D. (1976). A divina comédia. (C. Martins, trad.). São Paulo: EDUSP/Itatiaia.         [ Links ]

Bakhtin, M. (1993). Toward a Philosophy of the Act. Austin, TX: University of Texas Press.         [ Links ]

Barthes, R. (1996). Aula. São Paulo: Cultrix.         [ Links ]

Bernardes, M. (n.d.). Pão partido em pequeninos para os pequeninos da casa de Deus. Porto, Portugal: Lello.         [ Links ]

Blikstein, I. (2009). Kaspar Hauser ou A fabricação da realidade. São Paulo: Cultrix.         [ Links ]

Ogden, C. K. e Richards, I. (1956). A. The meaning of meaning. New York: Hartcourt.         [ Links ]

Platão (1950). Cratyle (p. 57). Paris: Les Belles Lettre.         [ Links ]

Ramos, G. (1968). Vidas secas. São Paulo: Martins.         [ Links ]

Ramos, G. (2008). Infância. São Paulo: Record.         [ Links ]

Saussure, F. (1974). Curso de linguística geral. São Paulo: Cultrix.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Izidoro Blikstein
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Tel: 11 9154-1067
E-mail: izidoro@blikstein.com

Recebido em: 2/12/2011
Aceito em: 17/12/2011

 

 

1 Professor titular de Linguística e Semiótica na Universidade de São Paulo. Professor de Comunicação na Fundação Getulio Vargas de São Paulo.
2 A pergunta é feita explicitamente pelo menino no filme Vidas Secas (1962), de Nelson Pereira dos Santos. No texto de Graciliano, a pergunta está implícita no trecho "Estranhando a linguagem de sinhá Terta, pediu informações" (Ramos, 1968, p. 69).

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