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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.44 no.81 São Paulo dez. 2011

 

INTERFACE

 

A "grandeza repulsiva, amiúde detestável" do Inferno de Dante

 

The "repulsive, sometimes hateful magnificence" of Dante's Hell

 

La "repugnante grandeza, a menudo detestable" del Infierno de Dante

 

 

Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho1

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo - SBPSP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo pretende orientar o leitor a respeito da natureza do Inferno de Dante. Inicialmente, a noção de "inferno" é situada na tradição greco-latina. A seguir, procura-se rastrear algumas fontes em que Dante teria se inspirado para compor o seu Inferno que, no dizer de Goethe, possuía uma "grandeza repulsiva amiúde detestável". Por fim, quatro exemplos são apresentados para ilustrar a força de sua criação poética.

Palavras-chave: Inferno, Dante, Existência imutável, Corpos espectrais.


ABSTRACT

This article intends to orient the reader about the nature of Dante's Hell. Firstly, "hell's" conception is outlined in greek-latin tradition. Afterwards, some sources in which Dante possibly inspired himself to build his Hell, are looked for: in Goethe's words, the result held a "repulsive, sometimes hateful magnificence". At last, four examples are shown to illustrate his poetic creativity.

Keywords: Hell, Dante, Unchangeable existence, Spectral bodies.


RESUMEN

En este artículo se guía al lector sobre la naturaleza del infierno de Dante. Inicialmente, el concepto de "infierno" es ubicado en la tradición grecolatina. A continuación, se intenta trazar algunas fuentes en el que Dante se había inspirado para componer su infierno que, en palabras de Goethe, tenía una "repugnante grandeza, a menudo detestable". Por último, cuatro ejemplos se presentan para ilustrar la fuerza de su creación poética.

Palabras clave: Infierno, Dante, Existencia inmutable, Cuerpos espectrales.


 

 

Hades significa o invisível e é, entre os gregos, o Deus dos Mortos. Como a pronúncia do seu nome poderia excitar sua cólera, ele recebeu a alcunha de Plutão (O Rico), um evidente escárnio por evocar que o "Império dos Mortos" seria uma riqueza subterrânea. No entanto, simbolicamente, o subterrâneo, de fato encerra riquezas como os deslizamentos harmônicos, as metamorfoses e as germinações.

Após a vitória do Olimpo sobre os Titãs, o Universo foi dividido entre os três filhos de Cronos e de Réa: a Zeus coube o Céu, o Mar era o território de Poseidon, sendo que o mundo subterrâneo (o Inferno ou o Tártaro) foi conferido a Hades. Em toda sua extensão vamos encontrar elementos invariantes: o de um lugar invisível, o de um destino final, o de estar imerso em trevas, o de alternar incandescência e enregelamento ou de albergar monstros e demônios. Na linguagem de Homero seria uma "morada horripilante, esse local odiado cheio de bolor e podridão" (Ilíada, Canto XX).

Para certos helenistas como Paul Diel, no Inferno encontramos representadas funções psíquicas básicas: o pensamento na figura de Zeus, a harmonia dos desejos representada por Apolo, a inspiração intuitiva por Palas Atenas, o recalcamento por Hades, o élan evolutivo pelos heróis e os conflitos pelos combates entre hostes antagônicas. Nesta concepção, o Inferno figuraria os destinos da luta do psiquismo com seus monstros, seja ao tentar expulsá-los para o inconsciente, seja ao se identificar com eles através de um pacto perverso consciente.

Na escatologia cristã a palavra inferno evoca tanto o estado genérico da morte quanto o estado final dos impenitentes. Os teólogos dividiram o sofrimento do Inferno em duas categorias, a dor da perda e a dor da sensação: no primeiro caso, alude-se à miséria da separação de Deus, enquanto, no segundo, à dissolução da comunhão entre corpo e alma que leva à ruína da personalidade humana. A punição eterna, em sua essência, não deveria ser entendida como um castigo exterior, mas sim como consequência das culpas interiores geradas pela rejeição ao amor de Deus.

Etimologicamente, a palavra latina infernus é uma variação de ínferus, "que se encontra embaixo", por oposição a superus, "que se encontra em cima". Substantivado, o neutro plural inferna, infernorum designa as habitações dos deuses de baixo, ou seja, o Inferno, abstração onde os transgressores seriam castigados.

Na Grécia, ao redor do século VI a.C., o Orfismo rompeu com a tradição de que a culpa não era individual, mas se estendia aos descendentes: para os órficos, então, a culpa seria sempre individual, devendo ser quitada na terra ou, em caso contrário, deveria existir no além um lugar apropriado para as punições, bem como um outro para a premiação dos virtuosos. Este ponto de vista foi corroborado por Platão (Leis, X) que em sua lei da justiça cósmica sugere que, nesta vida e nas subsequentes, cada alma gravita naturalmente na companhia de sua própria espécie, sendo isto que determina sua punição ou premiação: nesse sentido, o Inferno seria menos um lugar e mais um estado de mente.

Em certa época, os gregos colocavam na boca do morto uma moeda destinada a pagar o barqueiro Caronte, para atravessar a alma pelos quatro rios infernais. Toda moeda, além de símbolo intrínseco, em função do seu valor de troca, seria também um símbolo da imagem da alma, porque esta traria impressa a imagem de Deus, do mesmo modo que a moeda traz impressa a imagem do soberano.

No Canto VI da Eneida, Virgílio descreve os suplícios a que eram submetidos os réprobos, os avarentos, os adúlteros, os incestuosos, aqueles que desprezaram os deuses. No entanto, quando relata a descida de Eneias ao Inferno, para visitar seu pai Anquises, a Sibila de Cumas, que acompanhava o herói troiano, diz-lhe que, embora tivesse cem bocas, não daria conta de nomear a multiplicidade de crimes nem de descrever as espécies de castigos.

Dante Alighieri, apesar de possuir uma única boca, tomou para si a tarefa de encetar esta descrição, confiando naturalmente no vigor e na ousadia do falar poético. Na formulação de Carmelo Distante (Alighieri, 1998, p. 15) A divina comédia foi um libelo moral para despertar no homem medieval a consciência de uma redenção salvadora. Para tanto, ele elaborou um monumental arcabouço de imagens simbólicas para expressar os pensamentos filosóficos ou teológicos, as demonstrações científicas, as construções mitológicas, as evocações históricas e, é claro, a complexidade e variedade dos sentimentos humanos.

Sendo a poesia um fato expressivo, Dante não hesitou em destilar sua revolta e indignação em relação à corrupção e à mediocridade, demonstrar-se compreensivo e tolerante com erros e equívocos naturais, defender com unhas e dentes a dignidade e a justiça, exaltar com entusiasmo o harmônico e o sublime. O grande mérito do gênio de Dante foi pensar e expressar-se através de imagens, exercendo com competência aquilo que a psicanálise viria a descrever como pensamento onírico, e a estética como forma apresentativa.

A teorização mais original a este respeito foi conseguida por Erich Auerbach (1987), grande mestre da literatura comparada, ao demonstrar que são as "formas figurais" presentes n'A divina comédia que determinam toda a estrutura do poema. Ele inspirou-se em autores latinos como em Tertuliano (150-230) para quem a figura está sempre embutida num mistério requerendo ser interpretada, em geral, a partir de relações de similaridade (assim, por exemplo, Eva como figura da Igreja). Desde os primórdios, o material pagão e profan o foi interpretado figuralmente: a ressurreição de Lázaro e o resgate de Jonas no ventre da baleia seriam figuras da Ressurreição. Já na tradição cristã, Moisés era concebido como figura de Cristo, enquanto, para Santo Agostinho (354-430) a Arca de Noé seria uma pré-figuração da Igreja, Sara uma pré-figuração da Celestial Jerusalém (a Cidade de Deus), e Esaú e Jacó a figura de dois povos, judeu e cristão.

Na concepção de sua obra, Dante valeu-se de uma cosmologia de inspiração aristotélico-tomista, em que a Terra era representada por um globo imóvel no espaço, contendo mares e terras envoltas por uma atmosfera específica. O Inferno foi concebido como uma imensa cratera cônica escavada nas profundezas do globo terrestre pela queda do corpo de Satanás (o adversário de Deus, em hebraico) quando de sua expulsão do Paraíso. Na base deste cone situa-se o Cocito, a morada gelada de Satanás. Nas paredes da cratera distribuem-se quatro círculos concêntricos que iriam se afunilando, na proporção da gravidade das penas que iam sendo aplicadas às almas penitentes. Segundo a doutrina aristotélica vigente, as quatro modalidades de transgressões em ordem crescente seriam a incontinência, a violência, a fraude e a traição.

Dante buscou inspiração para sua visitação ao Inferno em algumas fontes interessantes, a começar com a já mencionada descida empreendida por Eneias no Canto VI da Eneida aos infernos, a qual, por sua vez, demonstra uma clara influência de Homero. Em sua biografia da Odisseia, Alberto Manguel nos lembra que a feiticeira Circe instruiu Ulisses que, antes de retornar ao seu lar: "É preciso que empreendas, primeiro, outra viagem e que entres / a casa lúgubre de Hades e da pavorosa Perséfone / para que possas consulta fazer ao tebano Tirésias, / cego adivinho" (Manguel, 2008, p. 98). A isto, Ulisses reage aterrorizado: "Ó Circe, quem poderá nesta viagem servir-nos de guia? / a Hades ninguém conseguiu até agora chegar em nau negra" (Manguel, 2008, p. 98).

É interessante acompanhar a semelhança de descrições produzidas por Homero, Virgílio e Dante em relação à sucessão das gerações, ou seja, aos indivíduos que morrem e são substituídos por outros que nascem, do mesmo modo que as folhas outonais se renovam na primavera. No Canto VI, da Ilíada, Diomedes diz:

As gerações dos mortais assemelham-se às folhas das árvores, que, umas os ventos atiram no solo, sem vida; outras, brotam na primavera, de novo, por toda a floresta viçosa.
Desaparecem ou nascem os homens da mesma maneira.

As almas que vão de encontro a Ulisses no Inferno são como um redemoinho de outono. A mesma metáfora das folhas é usada por Virgílio ao descrever as almas tentando cruzar o Aqueronte (Eneida, Canto VI):

Bravos guerreiros de alma de luz privados,
Varões, meninos, mães, inuptas virgens,
Jovens ante seus pais à queima entregues;
Quantos no outono as despegadas folhas
Caem aos primeiros frios...
No transporte rogando a preferência,
Ávidas mãos a oposta riba estendem.

Dante mostra ter introjetado essas imagens quando descreveu sua chegada às margens do Aqueronte, após ter cruzado os Portões do Inferno:

Assim como no outono caem as folhas, uma depois da outra, até que o ramo, despido, devolva à terra o que dela recebera, assim de Adão os descendentes pervertidos, um a um, aproximam-se, acenando-se, como aves respondendo a um chamado. Tão logo cruzam as escuras águas, antes mesmo que do outro lado cheguem, já deste lado nova turba espera. (Alighieri, 2008, Inferno, III, 112-120)

Outro texto que com certeza influenciou Dante foi a tradução feita por Afonso X, o Erudito, Rei de Castela, do Il libro della scala, que lhe foi oferecida por seu mestre Brunetto Latino. Esse poema descreve uma visão onírica na qual Maomé, falando em primeira pessoa, (ego) relata sua visita ao Outro Mundo, guiado pelo Arcanjo Gabriel. Ali, ele observa sodomitas punidos no Inferno e, com eles, professores que não executavam aquilo que ensinavam.

Para ilustrar o simbolismo dantesco, apresentarei resumidamente alguns episódios paradigmáticos dos tormentos infernais, aplicados segundo o princípio do contrapasso, ou seja, uma punição taliônica em que o pecador experimenta do próprio veneno.

No Quarto Ciclo, já acompanhado por Virgílio, Dante depara-se com uma cena insólita. Duas filas de almas com os peitos nus empurram grandes pedras em sentidos opostos até se encontrarem, retomando o caminho em sentido inverso: dir-se-ia que estavam imersas num moto-perpétuo de esterilidade. Ao se cruzarem, os grupos antagônicos se injuriavam mutuamente gritando "Por que guardar?" e, recebendo de volta "Por que gastar?", indicando tratar-se dos avaros e perdulários. Indagado por Dante, Virgílio lhe explica que estas almas

Assim como as vês, continuarão pela eternidade, e, ao ressuscitar, uns terão as mãos fechadas e outros dos cabelos quase nada. Por gastar mal, por mal guardar, viram fechadas as portas do Céu, e neste sítio, padecem tormentos que as melhores palavras não conseguem descrever. Assim ficas sabendo quanto é ilusória e vã a porfia dos homens que na Fortuna situam a finalidade principal da vida. Todo o ouro acaso existente abaixo da Lua não bastaria a dar repouso a uma só destas almas penitentes. (Alighieri, 2008, Inferno, VII, 53-66)

Ao visualizar os extremos de incontinência como uma romaria circular, Dante nos propõe com ironia que os avaros estariam condenados a depositar seus ganhos espúrios nas mãos dos perdulários, selando assim a esterilidade de suas ambições. Empurrar pesos com os peitos nus comporta várias interpretações, inclusive a de liberar as mãos fechadas e abertas para mostrar o quanto, nesse novo cenário, elas são inúteis. De qualquer modo, a retaliação condenada pela pena de ter as mãos eternamente fechadas e os cabelos caídos, guarda a carga simbólica de uma punição exemplar.

Ao adentrarem no Sétimo Círculo infernal, Virgílio explica a Dante que ali são punidos os violentos contra Deus (os heréticos e blasfemos), contra si (os suicidas) e contra o próximo (assaltantes e assassinos). No entanto, já no Círculo anterior, Dante expressara seu desejo de encontrar dentre os condenados agonizando no interior de túmulos ardentes a Farinata degli Uberti, prepotente chefe gibelino de Florença. Podemos conjecturar que Dante, sendo adepto dos guelfos, inimigos figadais dos gibelinos, desejasse conferir em que condições encontraria este seu notório desafeto.

O encontro entre ambos acaba ocorrendo de forma intempestiva, pois Farinata, ouvindo o sotaque toscano de Dante, interpela-o com insolência: "Ó Toscano, que vivo à intensidade do fogo vens, melhor, honestamente, será quedares cá nesta cidade! Por teu acento vejo claramente que da Pátria procedes que foi minha e a qual males, talvez, causei somente" (Alighieri, 1998, Inferno, X, 22-27). Pelo tom arrogante, Dante reconhece tratar-se do antigo rival: "O meu olhar já se cravara no seu e ele estufava o peito e a fronte, como a enfrentar o Inferno com despeito" (Alighieri, 1998, Inferno, X, 34-36. Tradução do autor.).

Estabelece-se então, um dialogo áspero entre os dois, no qual, basicamente, Farinata se gaba de forma jactanciosa que por duas vezes expulsara os guelfos de Florença, com Dante retrucando que eles sempre souberam se reorganizar para retornar ao solo pátrio.

Esse diálogo acirrado é subitamente interrompido por um novo espectro que se alça ao lado de Farinata e que, aflito e choroso, pergunta a Dante porque ele não trouxera consigo seu filho. Trata-se de Cavalcante di Cavalcanti, pai do poeta Guido Cavalcanti, amigo de Dante, que, pela ausência do filho ali, deduz com desespero que ele morrera.

Esse episódio, um dos mais dramáticos de A divina comédia, foi alvo de um magnífico ensaio por parte de Auerbach (1987), no qual ele estabelece um contraponto entre a irrupção violenta de Farinata nos campos espacial, moral, psicológico e estético, e a conversa suave que vinha ocorrendo entre Dante e Virgílio, e depois, com a interpelação angustiada de Cavalcante. Numa penetrante análise estilista e filológica, Auerbach ilustra a "grandeza repulsiva, amiúde detestável" da linguagem de Dante, como o disse Goethe, que consegue conjugar, como nunca antes se fizera, o grotesco e o sublime.

Na sua visão, a unidade geral do poema repousa no tema central do "estado post-mortem das almas" as quais se encontram no Além, numa "existência imutável" (Hegel citado por Auerbach, 1987, p. 166): as almas dos condenados, no entanto, recebem de Dante uma espécie de corpo espectral, ou seja, elas têm uma aparência, liberdade de gestos, de palavra e até um certo movimento. Além do mais, neste estado, pelo fato de ter cessado a vida terrena, as paixões, os vícios e as virtudes que a movimentaram continuam a persistir sem descarregar-se pela ação e, por estarem represadas e concentradas, aparecem com maior pureza e nitidez.

É por isso que

Farinata, no meio do Inferno, é maior, mais poderoso e nobre do que nunca, e, se seus pensamentos e desejos ainda circulam em torno de Florença e dos Gibelinos, dos prêmios e dos erros de sua vida de outrora, esta continuidade de sua essência terrena, na sua grandeza e na sua desesperançada inutilidade, pertence, sem dúvida, à sentença que Deus pronunciou a seu respeito. A mesma desesperada inutilidade na continuação da sua essência terrena é apresentada por Cavalcante que, com certeza, nunca durante a sua vida sentira tão fortemente e exprimira tão arrebatadoramente a sua fé no espírito do homem, e seu amor por seu filho Guido, como agora, quando tudo isto é inútil. (Hegel citado por Auerbach, 1987, p. 166)

Na quarta vala do Círculo Oitavo, Dante e Virgílio se deparam com os adivinhos e embusteiros, que representam a fraude e, por ousarem enxergar além da condição humana, são punidos com a torção das cabeças para trás, obrigando-os assim, a caminharem em retrocesso.

Entre outros, eles encontram Tirésias, o famoso mágico e adivinho grego, cujo poder de mudar o próprio sexo foi tomado, nesta passagem, como evidência de uma fraude contra a natureza. Curiosamente, em outros contextos, Tirésias foi descrito como um sábio clarividente – caso do Mito de Édipo –, ou mesmo como um conselheiro – caso do poema Mênipos de Lucianos (c. 115-200), uma das fontes de inspiração de Dante para conceber o seu Inferno. De fato, neste dialogo satírico baseado na nebiomancia, a adivinhação pelos mortos, Mênipos, filósofo da escola cínica, perplexo com as contradições da filosofia, visita o mundo subterrâneo para consultar Tirésias acerca da melhor maneira de viver: "Faça a tarefa do momento!", teria lhe dito o sábio.

No segundo giro do Nono Círculo, denominado de Antenora, cognato de Antenor, chefe troiano que traiu a própria pátria, os dois poetas ouvem o relato do martírio do conde Ugolino della Gherardesca e seus filhos, talvez o episódio mais pungente de toda a obra. Tendo-se aliado ao Arcebispo Ruggieri para combater Nino Visconti, após a vitória, este falso aliado inventou uma acusação, trancando Ugolino juntamente com dois filhos e dois netos numa torre, deixando-os morrer de fome. Ugolino passa então pelo martírio de presenciar a morte escabrosa de cada um de seus parentes até que, "por fim, já cego, não vi mais nenhum; fiquei chamando-os mortos, todo o dia: depois, mais do que a dor, pode o jejum" (Alighieri, 1976, Inferno, XXXIII, 73-75). O que está sugerido, nesta famosa passagem, é que, desesperado, Ugolino teria sido induzido a comer a carne do seu sangue para tentar sobreviver. Foi por este motivo que, ao encontrarem Ugolino no Inferno, este estava cravando seus dentes de forma alucinada no crânio de Ruggieri, vingando-se assim, na mesma moeda, do sofrimento que este lhe infligira.

Espero assim ter podido ilustrar a "grandeza repulsiva, amiúde detestável" do Inferno de Dante.

 

Referências

Alighieri, D. (1976). A divina comédia. (C. Martins, trad.). São Paulo: EDUSP/Itatiaia.         [ Links ]

Alighieri, D. (1998). A divina comédia. (I. E. Mauro, trad.). São Paulo: Editora 34.         [ Links ]

Alighieri, D. (2009). A divina comédia. (H. Donato, trad.). São Paulo: Nova Cultural.         [ Links ]

Auerbach, E. (1987). Mimesis. São Paulo: Perspectiva.         [ Links ]

Brandão, J. S.(1986). Mitologia grega (VoI. 1). Petrópolis: Vozes.         [ Links ]

Chevalier, J. & Gheerbrant, A. (1982). Dictionnaire des Symboles. Paris: Robert Laffont.         [ Links ]

Holloway, J. B.(1993). Twice – Told Tales: Brunetto Latino and Dante Alighieri. Nova York: Peter Lang.

Manguel, A.(2008). Ilíada e Odisséia de Homero: uma biografia. Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

Virgílio (n.d.). Eneida. Portugal: Publicações Mira-Sintra.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho
Rua Helena, 170 – conj. 123
04552-050 São Paulo, SP
Tel: 11 3842-3060
E-mail: mr.junqueira@uol.com.br

Recebido em: 21/10/2011
Aceito em: 3/11/2011

 

 

1 Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP.

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