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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.44 no.81 São Paulo Dec. 2011

 

BREVES ESCRITOS

 

Minha amiga D. Lygia Amaral1

 

My friend Mrs. Lygia Amaral

 

Mi amiga D. Lygia Amaral

 

 

Oswaldo Ferreira Leite Netto2

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo - SBPSP
Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 

Um grande privilégio que tive na vida foi meu encontro com D. Lygia. E a grande amizade que, a partir daí, se constituiu.

"Ler Platão…", dizia D. Lygia, num de seus momentos… E, platonicamente, considerava que "a amizade que une os homens é a base da vida em comunidade". Falava em "conexões" e as promovia e fazia acontecer, nos almoços de sábado na rua Piauí, aos domingos na Granja Viana… Delícias preparadas pela Inês, fiel escudeira, as sobremesas pensando no Hugo, seu neto… "O conhaque para a mousse", que ela pedia, escondidinho no armário… Conheci muita gente interessante que ela achava que iria gostar de mim e eu delas.

Receptividade, acolhimento, respeito e liberdade descrevem a minha experiência vivida com D. Lygia, já idosa. As vezes calada, quase enigmática, mas presente.

Melhor parceria para um processo que se iniciava, o "parto da minha alma" pelas mãos do Persio Nogueira, meu analista por muitos anos e que tinha também essa direção de me fazer analista.

Pai e mãe analíticos, nessa segunda chance que se tem na vida, considerando como a primeira a nossa família original.

Antes de começar minha formação, já conhecia muitos aspectos da história de nossa Sociedade e seus personagens pioneiros, Durval Marcondes, Virgínia Bicudo e Lygia Amaral. Tinha muitos conhecidos e amigos em formação, analisandos e supervisionandos de D. Lygia e sabia, por exemplo, que Dr. Ferrão havia feito análise com ela.

Desenvolvi uma veneração por D. Lygia, antes de conhecê-la pessoalmente, antes de começar minha formação, pela sua importância pioneira e corajosa e por já ter amigos e mestres como Tenório, que fazia supervisão com ela. Também conhecia e admirava colegas, já em formação, que eram seus analisandos.

Mas, felizmente, essa idealização não se converteu em muita reverência e temor.

Fui apresentado à D. Lygia no início nos anos oitenta, numa "balada"!

No Radar Tantã, de Olguinha Almeida Prado, que era casada com o sobrinho de D. Lygia, Rodrigo, e que nos deixou tão precocemente. Dona Lygia estava lá, com aquela sua atitude empertigada, numa noitada cheia de jovens, álcool e outras coisas rolando, para assistir, como eu, a um show que se não me engano era do Gilberto Gil. Parece que a vejo, aqueles olhinhos tão característicos, observando tudo: uma discreta expressão de satisfação, mas não deslumbrada, muito menos crítica e moralista.

Fiz seminários de Freud com ela, e a primeira supervisão. Nessa fase me mudara para a avenida Angélica, no prédio imediatamente colado ao dela. E começamos nossa amizade. Eu, às vezes, não acreditava que a decana da sociedade, que conheceu Melanie Klein, que levou com a Dra. Adelheid Koch a solicitação de tornarmo-nos sociedade componente da IPA e que trouxe a confirmação, há 60 anos, me telefonasse convidando para um chá, para um almoço sábado – em que haveria alguém a quem queria me apresentar – ou apenas querendo papear por que lera um livro assim ou assado. E que aceitava meus convites de vez em quando para participar dos grupos de estudo de Freud e Klein que eu organizava em casa para meus residentes da Psiquiatria do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (IPQ – HCFMUSP)!

O interesse pelas pessoas, a curiosidade nada bisbilhoteira pela minha vida e pela vida de meus amigos me fascinavam, me autorizavam e me faziam grato. E abriam espaços de liberdade e autonomia para mim.

D. Lygia contribuiu imensamente para minha percepção da psicanálise, sua função, seus métodos, sua especificidade. Me acompanhou muito de perto no processo de luto da medicina e da psiquiatria que eu precisava fazer rumo à psicanálise.

Foi a maior estimuladora do trabalho que faço até hoje no âmbito da Faculdade de Medicina da USP e do Hospital das Clínicas. E fiquei muito orgulhoso de levá-la lá para um seminário clínico com os residentes, pois me revelou que era a primeira vez que punha os pés no chamado quarteirão da saúde depois do triste acontecimento que envolveu D. Lygia, D. Virgínia Bicudo e Dr. Durval Marcondes no teatro da Faculdade, quarenta anos antes, quando as duas foram denunciadas como charlatãs, exercendo ilegalmente "a medicina"…

Visitando meu apartamento, antigo, confortável, grande, me sugeriu que fizesse o consultório em casa, que tenho mantido até hoje. "Não dê satisfações se perguntarem; diz que são alunos…" Fiz observação de bebês, por sugestão dela, que me supervisionava. Meu analista nem achava isso tão importante, mas aproveitei e aprendi muito sobre observar, depois escutar.

O edifício Santo André, o baixo relevo do saguão, aquela entrada tão harmoniosa, que sempre me agradou, tudo parecia prenunciar os momentos sempre interessantes que passava com D. Lygia. Aquele seu humor, sua crítica e aquelas colocações que tinham sempre a liberdade de associações. Ela me escutava sempre numa espécie de atenção flutuante… e eu percebi algo que calou fundo para mim, que psicanálise tinha a ver com a vida, era um estilo de existir e eu poderia também desenvolver o meu. Sem minha análise pessoal, nada feito, mas com o convívio de D. Lygia, não desanimei; só me enriqueci e fortaleci. Afinal estamos na contracorrente e tudo conspira contra a manutenção do nosso vértice!

Entrando num começo de noite no edifício, não sei se íamos ouvir música ou ver um vídeo, talvez fôssemos trabalhar um pouco (editamos juntos um condensado de uma entrevista da Frances Tustin, de que ela tinha o vídeo, para ser apresentado numa reunião da Sociedade lá na Sergipe, onde ficava seu consultório, para o qual se dirigia toda manhã bem cedo, a pé, subindo a Angélica), e ali, na porta, encontrei um grupo que saía; um dos colegas me cumprimentou e fez uma brincadeira: o namorado da D. Lygia! Parecia mesmo. Íamos juntos aos concertos do Cultura Artística, a pé como ela gostava, e ia defendendo o uso de bengala para os mais idosos e criticando o descuido da administração pública com as calçadas e os pedestres…

Fomos à Bienal, ao MAM. Era divertida quando procurava os privilégios de idosa e decana da psicanálise. Ela me dizia: "Quer ver como funciona?" Se empertigava mais e dizia "Sou Lygia Amaral", e invariavelmente o segurança respondia: "Pois não, por favor…" E eu, encabulado, ia junto como o acompanhante, me sentindo uma espécie de príncipe consorte, furando as filas…

Ela ficou amiga de meus amigos. Alex Cerveny, o artista plástico, desenvolveu uma amizade com ela independente da minha, e assim com alguns outros. Pessoas de outros mundos e de outros estilos de vida, que ela respeitava, se interessava e passava a admirar e a promover.

Vimos filmes incríveis nas mostras de cinema, às vezes experimentais, chocantes, ousados, e ela valorizava a experiência de estarmos aprendendo, descobrindo novidades todo dia. "Sempre aprendemos alguma coisa…"

Com ela, eu percebia a necessidade de conhecimento para o desenvolvimento e manutenção da vida. Já bem perto do fim, lá no Incor, sua lucidez era incrível… "Não sou avozinha, meu nome é Lygia Amaral."

Após uma madrugada no Pronto Socorro, antes da internação, chego preocupado com seu desconforto. Pergunto como está, como passou. Ela apenas faz esse comentário, sinceramente admirada: "Como esse pessoal trabalha!"

D. Lygia, amiga, mestre da psicanálise, mas sobretudo mestre de viver!

Saudades!

 

 

Endereço para correspondência
Oswaldo Ferreira Leite Netto
Rua Montezuma, 79 | Jardim das Bandeiras
05436-080 São Paulo, SP
E-mail: oswnetto@uol.com.br

Recebido em: 21/11/2011
Aceito em: 1/12/2011

 

 

1 Texto lido na homenagem ao centenário de nascimento de D. Lygia Alcântara do Amaral, evento que ocorreu na SBPSP no dia 29 de outubro de 2011.
2 Médico e psicanalista, membro associado e Diretor de Atendimento à Comunidade da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Diretor do Serviço de Psicoterapia do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

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