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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.44 no.81 São Paulo Dec. 2011

 

RESENHA

 

Cartas a uma jovem psicanalista

 

Book reviews

 

Reseñas

 

 

Maria Laurinda Ribeiro de Souza1

Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae

Endereço para correspondência

 

 

Heitor O'Dwyer de Macedo
(Perspectiva, São Paulo, 2011, 321 páginas)

 

 

Ao iniciar esse livro com uma menção à alegria presente no nome de Freud e à exigência, enquanto analista, de uma "vida viva", Heitor já imprime no leitor uma abertura receptiva para sua escrita. A radicalidade de uma de suas afirmações é a explicitação desse afeto tão presente nos meandros de sua escrita: "todo desejo de pensamento é, na verdade, um desejo de sentir alegria" (p. 141); uma manifestação da vitória sobre os processos de destruição da mente. Reconhece-se nessa ênfase dada à alegria a presença de Spinoza, muitas vezes lembrado ao longo desta correspondência e menção explícita na última de suas cartas: "Aceitar que o pensamento sempre supõe certa intensidade de angústia e que a criação de uma nova representação do mundo se dá na fronteira da loucura é o preço a pagar, em termos freudianos, para que a alegria (spinoziana) possa advir" (p. 287).

Por outro lado, esta forma tão coloquial de apresentar suas ideias remete-nos também ao início da psicanálise, à correspondência de Freud que nos permitiu ter acesso às vicissitudes que marcaram a construção original de um novo campo de conhecimento. Se o livro inaugural da psicanálise, A interpretação dos sonhos, nos revela a autoanálise de Freud, Heitor reproduz o mesmo movimento com essas cartas, ao revelar generosamente seu percurso, suas marcas históricas, suas referências. E é assim que ele hipotetisa que, para cada analista, é o seu percurso, seu mundo interno, sua biografia e suas teorias, tudo que formou seu pensamento e sua sensibilidade que, no encontro com os analisandos, dará origem a um processo de criatividade absoluta, impossível de normatizar e prever.

Esse livro responde também a um compromisso ético com a psicanálise, explicitado logo de início pelo autor: "Dois eixos de reflexão percorrem estas cartas: a imbricação entre teoria e prática na clínica de um psicanalista e minha concepção do sentido e da responsabilidade dessa profissão, sua ética – o que é um modo de prestar homenagem àqueles que me formaram, ao que recebi como herança, formação e herança que me cabe transmitir" (p. XX). Entre os que participaram de sua formação e a quem explicita seu reconhecimento, há lugares especiais para Françoise Dolto, Gisela Pankow, Piera Aulagnier, Joyce McDougall, Victor Smirnoff, Winnicott, Ferenczi e interlocuções privilegiadas com Michel Neyraut, Michel Artières, Philippe Réfabert, Loup Verlet, Françoise Davoine, Jean-Max Gaudillière, Claude Lanzmann.

Na primeira carta, uma referência imediata ao seu lugar; ele será "o acompanhador", aquele que acompanha, que pensa com, que caminha ao lado daquele que inicia sua vida como analista e a quem vai apresentando o que constitui o campo transferencial: o inconsciente do analista, do analisando, a repetição, a transferência. Um acompanhante especial, já que é também um amigo, pois, diz ele, a amizade é o operador do pensamento por excelência, não havendo diferença entre a ética da psicanálise e a ética da amizade.

As questões que angustiam os aprendizes desse ofício são abordadas considerando-se sempre a sua própria experiência e com um alerta constante para o risco do caráter ritualístico, obsessivo, de certas práticas – assim é com as dúvidas referentes ao uso do divã, à frequência dos encontros e ao pagamento das sessões. Heitor apresenta sua clínica e as soluções que foi encontrando em função do que essa prática lhe suscitava. Prática fortemente marcada pelo atendimento às crianças e aos loucos que o instigaram a não negligenciar a acolhida necessária para o acaso e para o inesperado, condições básicas para o trabalho analítico.

As cartas são densas e breves. Constroem no dia a dia dos encontros uma nova costura dos fragmentos clínicos, das dúvidas teóricas, dos achados conceituais, das referências herdadas. Seu relato é também uma forma de nos situar dentro do campo psicanalítico – a importância dos primeiros analistas, os movimentos institucionais, as aberturas e dissidências, a tendência à normatização e as rupturas que se fizeram em defesa da necessária preservação da ética.

É no contexto da crítica aos regimes ditatoriais, do golpe militar vivido no Brasil e da cumplicidade de alguns analistas com o terror da tortura2 que Heitor faz uma homenagem a Hélio Pellegrino. Ela se inicia com o relato do afeto doloroso da notícia de sua morte:

"Durante várias semanas fiquei profundamente deprimido. Até o dia em que me ocorreu a ideia de que uma vida não era suficiente para transmitir tudo o que o Hélio tinha me dado, para honrar minha dívida. E esse pensamento me encheu de alegria e me devolveu o desejo... Hélio foi o intérprete psicanalista incansável do mundo em que viveu, do tempo que atravessou, da cidade em que morara… A todos nós ele ensinou o método de combate contra a ditadura com as únicas armas de que dispúnhamos perante a brutalidade: o pensamento e a indignação" (p. 84-85). É com esse legado que Heitor pode afirmar sem hesitação que "quem tenta o compromisso impossível entre um pensamento ético e a violência institucional nunca teve realmente um pensamento para defender" (p. 86).

Essa proximidade com Hélio Pellegrino desdobra-se, ao longo do livro, em temas e referências que ganham destaque, mesmo quando não estão explicitamente abordados: o horror dos sistemas totalitários, o lugar da loucura, suas possibilidades de expressão como tentativas de encontro com o outro, as experiências traumáticas e a necessidade de seu reconhecimento em um espaço onde possam ser escutadas. Foram essas preocupações que o mobilizaram para a realização de um encontro em Paris, em 1986, para dar voz aos psicanalistas latino-americanos que sofreram ou acompanharam o sofrimento daqueles que foram atingidos em seu corpo e em seu psiquismo pelo terrorismo desses Estados. Esse encontro deu origem ao livro Le Psychanalyste sous la terreur, publicado na França, em 1988.

Das diversas proposições teóricas desenvolvidas em sua correspondência, vou assinalar dois momentos que me pareceram inovadores. O primeiro refere-se à leitura singular do texto freudiano "Mais além do princípio do prazer", tema presente na carta onze. Heitor chama a atenção para o movimento compulsivo de Eros e para uma energia própria do Eu ligada à função de paraexcitação, insistindo na ideia de que a compulsão à repetição, assinalada por Freud como um mecanismo inerente às pulsões de morte, exige necessariamente "a admissão de um caráter igualmente compulsivo e repetitivo das pulsões de vida, cujo exemplo mais eloquente é a tensão que acompanha o imenso trabalho psíquico exigido por um encontro amoroso ou pela criação de uma obra" (p. 75). Essa pressão compulsiva por parte de Eros seria tão insuportável para o Eu consciente quanto a que se repete a partir de Thanatos. Tal insuportabilidade adviria de um investimento do desprazer, de uma busca de tensão que abriria o caminho para a realização do desejo. Ou seja, a tensão inquietante e perturbadora de uma nova tarefa não seria sinal de uma impossibilidade ou de uma resistência, mas antes condição necessária para sua realização.

O segundo refere-se à problematização a respeito do ódio. Sua experiência com a loucura e, especialmente, com a paranoia permite-lhe elaborar o lugar metapsicológico do ódio a partir da relação transferencial. Heitor nos apresenta, na carta catorze, as hipóteses de Phillippe Réfabert, para quem a paranoia se constitui como efeito do desconhecimento do ódio que foi expulso para dentro da criança pelos próprios pais. E prossegue, ampliando essa enunciação na carta trinta e quatro: "O ódio de si, consequência da interiorização do ódio vindo dos pais, está integrado a uma imensa culpa. É a culpa que a criança tomou para si, no lugar dos pais, nos quais ela está ausente." (p. 258). Na relação transferencial essa culpa e o ódio originário reaparecerão nas atuações do analista e poderão, por meio de seu reconhecimento e elaboração, encontrar outro destino. Mas o ódio é também o operador da separação necessária dos primeiros objetos de amor; a via que garante a existência da alteridade. É o ódio na mãe que lhe permite reconhecer seu bebê como um outro separado dela, e com o qual ele também se identifica. Neste caso, o ódio aparece como um fator constituinte e não como um afeto intrusivo; efeito do sadismo negado por parte dos pais.

O autor termina suas cartas retomando a importância da alegria e do humor e ressaltando a função protetora, consoladora e amorosa do superego em contraste com a ênfase que se tem colocado, na história do movimento psicanalítico, no caráter tirânico e destrutivo dessa instância; um superego "obsceno e feroz", como Lacan, por exemplo, o apresenta. Nessa direção, explicita o diálogo interno mantido pelos dois interlocutores privilegiados em sua formação: Freud e Spinoza.

Ao discorrer sobre o reconhecimento e interesse de Freud por Spinoza, Heitor recoloca, ao final de seu livro, o fio que liga as diferentes cartas e o tom em que elas nos são apresentadas: são relatos que fazem do analista a testemunha que só um amigo pode ser. Amigo que se dispõe a transmitir às novas gerações a forma pela qual exerce o seu ofício. E que ao fazê-lo, conversa, também, com seus próprios pares, já que, nessa arte, somos sempre aprendizes. Em termos mais gerais, diz ele, "a amizade vai funcionar como um operador de pensamento quando o encontro entre os dois protagonistas se ocupar da invenção da vida a partir do reconhecimento das produções do inconsciente – configuração que concerne à análise propriamente dita" (p. 319).

 

 

Endereço para correspondência
Maria Laurinda Ribeiro de Souza
R. dos Otonis, 120 | Vila Mariana
04025-000 São Paulo SP
Tel: 11 5572-3589
E-mail: mlrsouza@uol.com.br

Recebido em: 26/9/2011
Aceito em: 27/10/2011

 

 

1 Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
2 Uma análise detalhada do que ocorreu nesse momento histórico e que revela a relação entre as instituições psicanalíticas e a repressão política do regime estabelecido em 1964, encontra-se no livro de Helena Besserman Vianna, Não conte a ninguém, publicado pela Imago, em 1994.

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