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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.45 no.82 São Paulo June 2012

 

DEBATE

 

Autoria

 

Authorship

 

Autoría

 

 

No dia 30 de maio de 2012, o Jornal de Psicanálise1 realizou um Debate sobre o tema do nosso número, Autoria, tendo sido nossos convidados, Marcella Monteiro de Souza e Silva, membro filiado do Instituto de Psicanálise, Maria Thereza de Barros França, membro efetivo e analista de crianças e adolescentes, e Milton Della Nina, membro efetivo e analista didata, todos da SBPSP. Enviamos previamente algumas perguntas para aquecer o debate, que se encontram no final do texto, pois elas foram assimiladas no decorrer de uma conversa descontraída e estimulante.

 

Jornal – Começando a conversa sobre o tema de forma mais ampla, o que vocês entendem por autoria, e qual importância dão a ela?

Maria Thereza de Barros França – Eu pensei na correspondência entre autoria e o processo de individuação do ser humano. Passamos por etapas semelhantes no processo de desenvolvimento da individuação e da identidade profissional. E daí também lembrei de Meltzer; gosto muito da proposta dele de considerar o espaço e o tempo, no tipo de identificação estabelecido com o objeto. Ele propõe a uni, a bi, a tri e a tetradimensionalidade. Na bidimensionalidade ele fala uma coisa interessante: o tipo de identificação seria a adesiva, que é como se você estivesse grudado ao objeto. Faz parte dessa etapa do desenvolvimento a questão da imitação que poderíamos pensar como o contrário de autoria, mas dentro da proposta dele é uma etapa, então pode ser uma fase inicial da identificação. Pensei na questão dos covers, dos plágios, como não necessariamente você encararia isso como falta de criatividade, mas sim como um potencial de alguma coisa que pode ou não vir a se desenvolver porque a questão da autoria é isso, é você ter uma possibilidade criativa. Desse ponto de vista o plágio pode ou não ser considerado simples imitação, pois pode haver um potencial que venha ou não a se desenvolver. Até lembrei de um filme que gostei muito, não sei se vocês viram, que chama "Encontrando Forrester", é muito bonito. Um rapaz negro, pobre, de uma escola americana, daqueles a quem só restaria ser jogador de basquete. Acontece toda uma situação em que ele acaba se encontrando com um escritor – o Forrester – e ele é escolhido na escola para ir frequentar um curso de literatura, participa de um concurso e ganha. Só que aí, ele é questionado porque teria plagiado esse escritor, mas o próprio Forrester vai lá defendê-lo. Qual foi o processo dele para escrever? Ele realmente pegou um texto do Forrester e a partir disso ele desenvolveu o dele. Quer dizer, não tinha nada de plágio, era uma coisa de autoria, este foi o estímulo para ele conseguir escrever. E assim se dá com a gente, com os modelos que temos dos nossos mestres, supervisores, analistas e tudo mais que utilizamos para compor a nossa autoria.

Marcella Monteiro de Souza e Silva – Eu pensei que autoria tem uma raiz etimológica, o "auto", que significa realizar algo por si próprio. Remete à questão de se permitir ter uma luz própria, tanto frente ao outro, quanto frente a si mesmo com todos os desafios que isso implica. E a autoria sempre supõe um interlocutor; pensei na importância desse interlocutor internalizado e o que me chama atenção é essa função elaborativa da escrita. Lembrei-me que mesmo alguns autores como Clarice Lispector, por exemplo, falam muito da necessidade da escrita, que não seria exatamente uma escolha … Pensando na autoria em psicanálise, temos o Freud que era um escritor compulsivo. Além das Obras Completas, parece que suas cartas chegam a 5 mil e ainda existiram outros textos que provavelmente foram destruídos por ele. Penso que Freud tinha o objetivo de divulgar a psicanálise; mas ele tinha, acima de tudo, a necessidade de compreender o que ele pensava e sentia a partir do convívio, do que era despertado nele, no contato com os próprios pacientes. Alguns textos de Freud mostram claramente esse resto contratransferencial que ele precisava elaborar; acho que o caso Dora talvez seja o mais emblemático. Enfim, acho importante essa questão da escrita psicanalítica ser movida, não somente pela necessidade de trabalhar os conceitos da psicanálise, mas principalmente pela necessidade do analista se debruçar sobre questões que clamam por elaboração. Catherine Cyssau (1999)2, uma analista ligada ao grupo do Fédida, faz uma distinção muito interessante entre o atendimento psicanalítico e o caso clínico. Para ela, nem todo atendimento psicanalítico é um caso clínico, ele se torna um caso clínico à medida que mobiliza aspectos internos do analista e solicita uma tradução para o registro da escrita, solicitando elaboração. Podemos pensar na supervisão: não é todo caso que você leva para o supervisor, são alguns casos, depois você se dá conta que tem caso que você nunca levou de fato. Essa necessidade de transpor para o registro escrito algo que requer um trabalho psíquico, acho que não acontece só na escrita psicanalítica, mas na autoria em geral.

Maria Thereza – Bion compara os dados sensoriais que precisam ser trabalhados pela função alfa, aos pensamentos que precisam ser trabalhados para serem publicados. Os pensamentos sofrem um processamento para passarem do privado para o público, para serem comunicados. Ele diz (p. 108):3 "gostaria de reservar o termo publicação às operações necessárias para tornar público o conhecimento privado."

Milton Della Nina – Eu acho difícil expressar alguma coisa que possa ter pensado se não me envolvo direta e pessoalmente na experiência. A experiência de participação como a de hoje, neste debate, começou com o convite da Eunice, – nessa possibilidade de pensarmos conjuntamente. A principio me mostrei muito resistente, pois, estava pensando: de que forma realmente eu contribuirei? Eu me coloquei resistente e renitente, dizendo à Eunice: "não sou um autor, eu acho que você precisa de pessoas que tenham uma prática, uma experiência na autoria". Ela disse: "não, acho que a sua vivência e possibilidade de contato com muitas coisas dentro e fora da sociedade, é isso que, num certo sentido, também importa". E assim, ela me convenceu que a experiência era válida. Quero dizer, então, eu não cheguei ainda a pensar muitas coisas a respeito, apesar de as perguntas dos editores serem muito estimulantes e ao mesmo tempo nos permitir algumas áreas de pensamento, de elaboração, mas eu acabei me dispondo a vir e entrar em contato com aquilo que pudesse estar ocorrendo e ver o que surge daí. De alguma maneira, o que imediatamente concordei com a Eunice foi o seguinte: eu disse a ela e ela falou quase simultaneamente a mesma coisa para mim, que de fato mesmo não me considerando um autor, eu era um leitor, – realmente acho que sou um leitor, me acho um leitor, mas não me acho um autor, a não ser que essa experiência de hoje me convença do contrário. (risos) Porque num certo sentido eu pude perceber a partir daquilo que o grupo elaborou, o grupo de editores, que o tema autoria é muito amplo, que a gente pode pensar autoria em diferentes dimensões, que não é só o escrever. Então eu acho que vim disposto a ver os vários vértices do que possa significar autoria. Agora, à medida que a Thereza e a Marcella estavam falando, fui pensando em alguns autores que puderam nos ensinar algo a respeito de autoria. Por exemplo, Meltzer, que você citou há pouco (se dirigindo para Maria Thereza). Surge também a questão do que Winnicott fala do processo pelo qual ele se fazia autor e já reconhecia implicitamente que não era autor original, mas um transformador de ideias colhidas de um grande número de pessoas, a ponto de não poder situar previamente de onde surgiu, qual era a fonte. Depois ele ia buscar a fonte. Mas eu também fiquei pensando, a partir do que Marcella estava colocando, que Winnicott talvez tivesse um conceito interessante que vem ao encontro desse colocado pelo grupo de editores: "a busca por encontrar nossa voz, nosso próprio estilo", como escrevem na carta convite. Num certo sentido, poderia se compreender isso segundo perspectivas do próprio Winnicott, quanto à questão da possibilidade de desenvolvimento do potencial representado pelo verdadeiro self, onde cada pessoa ao longo da vida vai podendo gradativamente desenvolver seu próprio estilo, seu potencial, fazendo-se autor de si mesmo. Então, vejo como esses psicanalistas já vinham contribuindo para que a gente pense, a partir do vértice psicanalítico, as possibilidades do que a autoria possa significar.

Marcella – Acho importante a questão da singularidade, essa é uma marca da autoria. Fiquei pensando porque será que você não se consideraria um autor, será que nós não ficamos presos a essa ideia da originalidade? Fiquei aqui pensando enquanto você falava … é como uma criança que faz um desenho e oferece o desenho para a mãe, acho que ali tem o pedido de reconhecimento de uma certa autoria, que é algo que se faz no singular. A casinha, a árvore que ela desenha pode ser original naquele momento, para aquele sujeito, naquele determinado contexto. A originalidade em psicanálise é uma coisa muito difícil. Acho que a originalidade está mais nas articulações que são possíveis do que propriamente nos conceitos produzidos. Nossa área é diferente de outras, essas descobertas se dão muito mais no individual, e que do meu ponto de vista são originais.

Eunice – Quer dizer, não existiria um autor se não existisse esse leitor, se não tem uma mãe que receba esse desenho, então não tem autoria. Quero dizer nesse sentido que o leitor é também um elemento importante.

Marcella – Sim, esse interlocutor ao qual se dirige.

Maria Thereza – Quando você falou isso do Winnicott, que ele mesmo não se considerava autor, eu me lembrei da sexta pergunta, quando diz: "escrever é ler um texto não escrito; poderíamos também dizer que ler é reescrever o texto de outrem?". Quando eu li isso me ocorreu a imagem de que escrever seria como semear; ler seria como colher e aprimorar a semente para novas semeaduras.

Milton – Mas, eu estava lembrando de alguma coisa que antes registrei para dizer, enquanto eu ainda não tinha me assegurado que minha presença poderia ter algum significado sendo só leitor … (risos) Eu me lembro de que há algum tempo pude recorrer às ideias de Borges, talvez um dos maiores leitores que a gente pudesse encontrar em certa época e que tem uma produção muito interessante. Decidi fazer uma pequena revisão de alguma coisa escrita sobre Borges que, eu acho, vem muito ao encontro do que a gente estava conversando sobre a questão da imitação: uma situação de algo que pode se repetir, mas que não necessariamente é a mesma coisa. Eu recorri a um livro de um crítico e professor uruguaio, Emir Rodriguez Monegal4, onde ele escreve a respeito de Borges, principalmente utilizando um texto chamado "Pierre Menard, Autor do Quixote". Esse é um conto, realmente muito interessante. Então Borges conta essa história, de Menard que reescreve o Quixote, apesar de já existirem outros que de certa forma trouxeram a mesma história, a essência e a trama do Quixote, porém sob outras perspectivas. O que Pierre Menard faz, esse personagem ficcional do Borges, é praticamente escrever exatamente as mesmas palavras, a mesma situação, na mesma sintaxe que o autor original. Então onde está a criação? E ele sustenta que de fato o trabalho é original, quer dizer, seria mais do que pura imitação. É uma reprodução, plágio, mas a concepção pela qual ele reescreve as mesmas palavras é outra, então a criatividade está nele que lê e que num certo sentido faz uma nova escrita a partir daquilo que lê. Então, o que ele, Borges, sustenta é que cada leitor é novamente um escritor da obra já escrita. Portanto, é interessante essa visão borgeana, exatamente por fazer uma conexão entre a leitura e a escrita. Reproduzi duas frases que são citadas por Monegal, mas que partem realmente de um texto de outro comentador de Borges, que é Gérard Gennet, em 1964 e que escreve o seguinte: "o tempo das obras não é o tempo definido do ato de escrever, mas o tempo indefinido da leitura e da memória. O sentido dos livros está na frente deles e não atrás, está em nós, um livro não é um sentido acabado, uma revelação que devemos receber, é uma reserva de formas que esperam seu sentido, é a eminência de uma revelação que não se produz, e que cada um deve produzir por si mesmo." Há uma outra visão que Borges traz, também citada, que é a ideia de ser um "autor do infinito", trazendo frequentemente a questão da infinitude e da finitude, o que o aproximaria de certa forma de Bion: "todos os autores são um único autor porque todos os livros são um só livro", de onde se segue ainda que "um só livro constitui todos os livros"e diz Borges: "conheço alguns que da mesma forma que a música são tudo para todos os homens. A biblioteca de Babel é perfeita ad eternum; o homem é que é o bibliotecário imperfeito; às vezes por não encontrar o livro que procura, escreve um outro, o mesmo ou quase. A literatura é essa tarefa imperceptível e infinita." (Monegal, 1980, p. 28) Então eu entendi que de certa forma Borges também acaba conferindo um valor maior àquilo que vai se produzindo nesse trabalho infinito de todos os escritores. Bom, de alguma maneira eu me senti compelido a buscar mais coisas sobre autoria, sobre essa relação, achei que mesmo antes de participar aqui da vivência acabou se suscitando em mim um impulso para procurar entender melhor algo sobre a autoria.

Alexandre – Pensando no que vocês trouxeram sobre o verdadeiro self e a imitação, estava aqui me perguntando quando será que a imitação deixa de ser uma etapa da individuação para ser um impedimento, um falseamento de si mesmo?

Maria Thereza – Um falso self? – Eu acho que quando a situação se cristaliza, não se consegue sair dessa única possibilidade, aí o conceito de falso self ajuda bastante.

Milton – Penso que a questão colocada em pauta aqui, que o Alexandre exteriorizou, é que num determinado momento uma preocupação surge quando realmente algo ao invés de estar contribuindo para essa cultura comum da literatura, do todo da cultura psicanalítica, dos conhecimentos, acaba sendo algo que a obstrui. Eu estava pensando um pouco sobre o que a Marcella trouxe, essa questão do interlocutor. Acho que num determinado momento da colocação na carta convite do Jornal de Psicanálise onde se lê: "se por um lado somos apresentados por Freud à questão edipiana, que permeia toda a constituição do sujeito, por outro encontramos também no tema da autoria questões mais primitivas do desenvolvimento humano, ser autor ou ser si mesmo não é algo dado e precisará ser gradualmente construído na relação com o outro. Patologias graves como o autismo nos mostram a possibilidade disso nunca vir a ser plenamente constituído". Eu fiquei pensando que uma maneira de diminuir a possibilidade da obstrução, considerando nesse caso até a imitação, possa se dar numa relação porque nesse sentido já difere de uma situação que se fecha em si mesmo.

Jornal – Acho que poderíamos abrir aqui outra questão, quais seriam os elementos dentro da nossa instituição que poderiam favorecer ou obstruir o desenvolvimento dessa autoria?

Maria Thereza – Com relação a isso eu fiquei pensando como todas as experiências nos ajudam a construir a identidade. Por exemplo, com relação à escrita, antes de fazer a Sociedade frequentei o centro da Marisa Melega e lá seguíamos alguns métodos da Tavistock. Então, para os seminários de Freud, a gente lia e ia fazendo uma observação do texto, escrevendo não apenas o que o texto queria transmitir, mas o que aquilo mobilizava em você, que frase se destacou, o que você sentiu com aquilo. Eu me lembro de que quando vim para a Sociedade, aquilo me ajudou muito. Fiquei pensando também que todas experiências vão ajudando a compor o papel profissional: a análise, os seminários, as supervisões, fiquei lembrando meus anos de participação na Associação de Candidatos, o Milton e eu participamos da segunda gestão da Associação Brasileira de Candidatos, organizamos o livro "Em busca do feminino"5, depois com a Eunice trabalhamos juntas na Revista Brasileira de Psicanálise. Sem dúvida nenhuma eu acho que análise do analista é uma experiência fundamental.

Com relação às questões institucionais eu fiquei tentando também pensar alguma coisa, por exemplo, às vezes a gente pode estabelecer uma relação com um superego institucional severo. Bion fala que a publicação mobiliza sentimentos que podem ser de empatia, mas que podem ser também de perseguição. Tanto que nos escritos científicos, a abstração diminuiria um pouco essa persecutoriedade. Ele se refere à pessoa que recebe a comunicação, mas eu acho que é válido de parte a parte porque quando você publica alguma coisa, você está se expondo e está sujeito a despertar empatia ou não. Então eu penso que às vezes as pessoas com dificuldade de escrever relatório podem ter estabelecido uma relação desse tipo.

No setor de psicanálise de crianças, observamos como precisávamos estar atentos às dinâmicas infantis dentro do grupo de tal forma que pudéssemos funcionar de uma maneira mais interessante e não só atuar dinâmicas mais infantis. Pensei também no grupo de estudos sobre a psicanálise dos transtornos autísticos com o Paulo Duarte e de como é enriquecedora a troca entre os colegas. Fiquei pensando em todas essas oportunidades que você tem dentro da instituição de ter experiências e de como você vai compondo isso dentro de você na formação do seu papel profissional.

Jornal – Quer dizer, você acha que essa diversidade institucional é uma coisa favorável, para o desenvolvimento e para o processo de singularização?

Maria Thereza – Acho. Isso mesmo. Porque se você fica só na sua análise, no seu seminário, na sua supervisão, você não abre um leque de possibilidades.

Jornal – Nesse sentido você pensou em algum aspecto que seria desfavorável, obstrutivo? Porque você falou de aspectos favorecedores.

Maria Thereza – Falei também desse aspecto do superego institucional e mesmo dos sentimentos e as reações que você provoca ao publicar, e publicar não é só escrever, eu falando aqui também é uma publicação … Como é que a gente lida com as reações, já que nem sempre a gente agrada, não é?

Milton – Eu acho que isso que a Maria Thereza está trazendo, vendo essas questões tanto facilitadoras como eventualmente obstrutivas do ponto de vista de desenvolvimento, envolve a singularidade que estávamos falando, do estilo, da possibilidade do desenvolvimento do potencial de cada um dentro da instituição. Eu me lembro de duas coisas a partir da sua fala. Uma aparece bastante nos textos atuais, mas acho que muitas vezes não é aprofundada o suficiente dentro das instituições, que é a questão do chamado quarto pé da formação – que é exatamente como você descreve, todas as vivências que se dão em grupo, instituição, comunidade – e que muitas vezes fica concentrado na questão de desenvolvimento próprio do self, mas sem que nos possamos dar conta de que o self está numa relação mútua com esses outros elementos – sociabilidade, questão dos grupos – e que é vivido intensamente, como você estava descrevendo, e que a gente tem na nossa memória fazendo parte da nossa personalidade como psicanalista. Esse é um aspecto.

Eu acho que o outro aspecto tem uma relação com isso, o que é esse superego institucional? Seria um processo transferencial em que a gente projeta o próprio superego? Parece claro que tem aspectos nesse sentido, mas, por outro lado, se a gente tem alguma coisa a ver com essa publicação, nessa possibilidade de escrever, de se expor, o que é que a gente teme? Você disse, olha, pode ser que as pessoas não gostem. Uma coisa que me chama muito a atenção há muito tempo é a questão que também frequentemente não é levada muito em conta; é o sentimento de pertencimento. Eu vejo a importância disso; já participei, por exemplo, de grupos encarregados de seleção de pessoas que se candidatam a serem membros filiados dessa instituição; vejo também de alguma forma em outros grupos institucionais nos quais fazemos parte de processos seletivos e percebemos o nível elevado de ansiedade que reveste essas situações. Ali vemos o enorme desejo de pertencer, fazer parte, então, talvez exista um temor muito grande de exclusão, se a gente de alguma forma não for autor "adequado", entre aspas, a gente possa ser excluído, talvez aí entre um fator destrutivo.

Maria Thereza – Mas é interessante, Milton, você trazer a questão do pertencer porque eu pensei no aspecto da exclusão com relação à pergunta quatro, quando vocês dizem alguma coisa do relatório, dessa caminhada no trajeto edipiano, então fiquei pensando: sim, escrever o relatório seria mostrar a nossa caminhada no trajeto edipiano, se considerarmos o Édipo como um relacionamento a três, e a ampliação de possibilidades de relacionamento do terceiro contribuindo para os desenvolvimentos criativos dos demais, mas aí eu pensei como também é importante se a gente puder viver a exclusão como um lugar próprio e não como uma coisa desvantajosa que é o que o Steiner propõe, eu adoro aquele trabalho dele sobre a luta pela dominação na situação edípica6 porque a gente tem a tendência de pensar na exclusão como uma situação muito desfavorável, e não necessariamente é. É importante poder viver a exclusão como um lugar próprio: tem hora que eu estou incluída, tem hora que eu não estou incluída, mas esse é o meu lugar, nem melhor nem pior que outro.

Miriam – É interessante essa sua ideia, me faz pensar que a criança pode resolver que quer ir brincar, ela pode não querer entrar no quarto dos pais, ter outros interesses e isso ser uma escolha dela.

Eunice – Nessa busca da singularidade o processo é o de encontrar o próprio lugar, que também implica exclusão. Mas não é exclusão de si e exclusão dos outros, quero dizer que existe a identificação e a desidentificação.

Marcella – Exatamente. A nossa tendência é pensar mais na identificação, mas a escrita vai favorecendo esse trabalho de desidentificação também. Eu acho que depois da experiência analítica, que é uma das maiores oportunidades de encontro com você mesmo, vem a experiência da escrita. Eu vivi um pouco isso: lá pelo terceiro, quarto ano de formação. Tive necessidade de parar um pouco, diminuir os seminários e falar "agora quero ficar comigo para responder essa questão: o que eu acho disso tudo?". Porque você ouve tanta coisa, diferentes orientações, lê tantos textos, fora os textos que você já leu antes de entrar na Sociedade. Eu acho que essa diversidade vitaliza muito, mas favorece uma certa dispersão. Em algum momento você precisa tentar integrar aquilo de alguma forma – e acho que "dizer de si ao outro", como qualquer escrita, não só a psicanalítica, tem esse objetivo – de tentar dar uma unidade provisória para esse eu tão fragmentado e disperso.

Então vejo como um momento muito privilegiado esse da escrita, você pensar sobre você mesmo e tentar fazer essa integração. Penso que um dos desafios da escrita é esse: expor-se frente ao outro e se expor frente a você mesmo, aí você se defronta com os seus limites, suas possibilidades.

Nesse sentido, acho interessante pensar na função do relatório de criar um espaço de uma interlocução e uma identificação mais horizontal. Ler relatório de colega, escrever e ser lido por eles, tem uma função importante, que é você se expor a um leitor mais íntimo, colega mais próximo que está testemunhando esses seus primeiros passos nessa incursão na escrita psicanalítica. Talvez possa favorecer até a instalação de um objeto menos persecutório. Então eu acho que é interessante talvez pensar num espaço de escrita e veiculação dos textos, pensar como nós podemos aumentar essa rede mais horizontal.

Miriam – E isso se dá nas reuniões científicas? Qual é o contexto?

Marcella – Eu acho que é essa troca de você ler o trabalho do seu colega. Eu já tive várias pessoas, que disseram: "depois que li seu relatório fiquei mais encorajado em escrever o meu". Eu acho que vai favorecendo essas experiências compartilhadas do leitor com o autor, do leitor com outros leitores que é um pouco o que a gente está fazendo aqui, do leitor com o personagem do texto, o paciente, enfim, essas experiências compartilhadas favorecendo esse caminho da individuação.

Eunice – Interessante que você falou da experiência compartilhada desse interlocutor horizontal, eu acho que isso também está no quarto pé da formação analítica, é uma coisa ligada à instituição e é uma coisa que vem crescendo muito. A associação dos membros filiados tem estado atenta a essa interlocução horizontal nos seus próprios eventos.

Beatriz – A produção e apresentação dos relatórios é um marco tão importante na nossa Instituição que é difícil não nos determos nele. Mas, como é a experiência de vocês de continuar escrevendo? De continuar apresentando trabalhos depois desse primeiro momento? Essa questão me chamou atenção desde quando começamos a preparar esse debate. Além dos relatórios, é necessário também ter uma produção e compartilhá-la para ser membro efetivo e depois para eventualmente tornar-se didata. Mas ampliando, o que nos levaria a escrever trabalhos, apresentá-los, publicá-los, para além das obrigatoriedades institucionais?

Marcella – O Montaigne no final de um de seus Ensaios, escreve: "Não fiz meu livro mais do que ele me fez".7 Acho que a escrita também vem muito desse processo de construção dessa identidade, do que você vai pensando enquanto vai construindo o trabalho no consultório. O texto traz a experiência de você se desprender daquela situação vivida com o paciente e transportá-la para esse outro registro simbólico ali da escrita, da reflexão sobre o vivido.

Eu acho que é possível até fazer um paralelo com a elaboração secundária do sonho. Você tem o sonho e tem a elaboração secundária que incide sobre o sonho, mas transformando-o numa narrativa mais coerente, mais ordenada, que se faz sobre os pensamentos do sonho. Parece-me que a elaboração do texto tem uma proximidade com a elaboração secundária do sonho. Lembrei-me de ter lido um dia a frase: "a gente não escreve para se exibir, a gente escreve para descobrir o que a gente pensa". Eu acho que a gente pode escrever também para se exibir, mas muito para descobrir o que pensa. A formação analítica inclui esse trajeto da descoberta do que se pensa.

Milton – Eu acho que o que você está trazendo é muito importante, Marcella, a questão da vivência da escrita que se inclui dentro do processo, entendendo a autoria também como um processo. A escrita em si possibilita inúmeras funções. Eu acho que uma delas foi trazida ainda há pouco, essa questão integrativa, essa gradativa construção de si mesmo que a escrita também ajuda. Agora eu fiquei pensando que se estávamos falando sobre esse processo binário e dialético entre a leitura e autoria por um lado, eu acho que, por outro podemos estender metaforicamente essa ideia da leitura e da autoria para um dos processos que decorrem dentro da nossa interação com a psicanálise.

Se a gente pensar do ponto de vista do que acontece no nível psicanalítico, a gente pode pensar que está se dispondo a uma forma de leitura com as imagens que se articulam e, por outro lado, me parece que aquilo que a gente tenta propiciar à dupla é que se faça uma escrita compartilhada daquilo que ali se processou.

Temos esse processo em vários outros movimentos não apenas no de um relatório ou de um artigo. Então o que se caracterizaria quando isso se dá a partir da escrita? Quer dizer, o que a escrita traz a mais dentro desse processo que em outros momentos na vida de um psicanalista está presente? Há psicanalistas que escrevem e há aqueles que não escrevem.

Enquanto você estava falando, eu estava pensando no que eu escrevo, o que me acontece quando eu escrevo? Como isso vai surgindo. Eu acho que cada pessoa tem o seu estilo, sua forma, mas será que pensar sobre isso nos ajuda a integrar um pouquinho mais? Não sei … Estou começando a acreditar a partir dessa nossa experiência que sim.

Marcella – Eu penso que tem também uma dimensão da perda que ocorre na escrita que nem sempre consideramos. Tem a função elaborativa, de construção, mas tem uma dimensão de perda, de várias ordens.

Primeiro você perde essa intimidade de vida a dois, do consultório, para uma situação pública. Depois existe a transposição do vivido com o paciente para a escrita, ela não ocorre como um decalque, ela vai sempre encerrar um certo distanciamento daquela experiência vivida e sempre vai ser uma narrativa fragmentada. Então a totalidade da experiência você também vai perder (nos relatórios sempre tem muito essa queixa, "não sei, é tanta coisa, o que privilegiar, que caminho tomar?"). Então, há que se fazer uma seleção, um recorte que envolve o abandono dessa vivência de quando ela foi experimentada. Talvez seja até se confrontar com o quanto a experiência analítica é inenarrável porque a psicanálise põe em cena aquilo que não é só da ordem da razão. Ela nos ensina que não é só através da razão que se conhece o mundo, o afeto é um modo de conhecer a si mesmo e o mundo. A questão é: como captar esse afeto que é tão inefável e se dar conta do quanto resta, sobra, nessa transposição para a escrita? Enfim, depois ainda tem a questão que você tem que se conformar às exigências do idioma porque uma coisa é a gente falar e outra coisa é a gente escrever, é mais uma solicitação, você tem que se conformar com as exigências impostas pela escrita porque são registros diferentes. E mais que tudo, abandonar o trabalho imaginado. Quantos de nós já não escrevemos vários trabalhos na nossa imaginação que não ousamos passar para o papel? Essa dimensão da perda para mim é muito significativa.

Maria Thereza – Uma coisa que eu tinha pensado é a questão do interlocutor. O interlocutor pode ser o cliente, pode ser o papel quando você escreve, pode ser a internet. Eu lembrei dos "queridos diários", que hoje não são bem assim, que os adolescentes escreviam e hoje publicam nos blogs e facebook. Mas eu não havia pensado e me ocorreu agora, aqui, o seguinte: estamos falando de escrever como forma de organizar pensamentos, de organizar ideias, de elaborar, mas a internet hoje na verdade é muitas vezes usada como uma descarga; tudo bem que você pode até pensar que pode ser uma busca de algum tipo de elaboração.

Eunice – O blog também não seria esse diário? Substituto desse diário?

Sonia – O diário aberto.

Milton – Eu acho que as perguntas que foram formuladas são muito sugestivas de áreas importantes de reflexão. Eu vou tomar a liberdade de juntar uma coisa que está sendo falada agora a partir do diário, do blog, com essa pergunta sete, sobre Fédida, em que "o analista trabalha e em algumas horas da noite escreve em seu caderno para ninguém e por vezes só para ele mesmo. Podemos considerar que o analista está constantemente sujeito a elaborar algo que extravasa e que lhe escapa. Como a escrita pode alcançar e dar forma àquilo que é da ordem do inconsciente?" Então, pensando também a respeito do que Thereza dizia do que se escreve na internet, fiquei pensando como fica isso, se de alguma maneira essa busca também existe não só no psicanalista, mas também em toda pessoa que tem acesso a uma possibilidade de escrita e a internet possibilita isso. Como fica isso? Quem são os interlocutores? Quem são aqueles que de alguma maneira se colocam na internet e como isso pode ser alguma coisa que permitiria criar algum contorno, digamos assim.

Sonia – Eu achei ótimo isso, porque a experiência que eu tenho na clínica é que muitas vezes os blogs e o facebook são usados como forma de enviar mensagens a pessoas muito próximas por este modo impessoal. Vejo isso na análise de adolescentes, por exemplo, em briga de namorados. É uma descarga como a Thereza falou, mas também pode propiciar o estabelecimento de um contorno, de uma rede espontaneamente formada, como diz o Milton: ao postar alguma coisa, a pessoa espera ser lida, espera um comentário. E se ninguém ler, isso pode se tornar um drama. Então tem uma função que ainda não está muito delineada, mas é interessante ser considerada.

Milton – Eu acho muito interessante essa ideia da rede. No filme sobre o criador do facebook, pode se ver como aquilo enquanto criação foi como se jogasse fogo no palheiro, de repente todo mundo queria entrar no facebook.

A demanda parece que é muito grande, julgando a partir do que se está trazendo, e me faz pensar sobre essa questão de busca de algo que dê contorno e a falta que existe nesse sentido. Então, de repente tem um instrumento tecnológico aí que permite em algum nível dar contorno a algo, a formação dessa rede. Eu fiquei pensando um pouco no Bion também, na questão da rede de tessitura em relação aos afetos, que num certo sentido vai criando uma continência que vai possibilitar formas de alguma natureza. Eu fiquei pensando se não tem uma ligação nisso, se não poderíamos transportar essa ideia para outra pergunta que tem aqui que é: "Vivemos hoje na psicanálise um período de pluralidade com as ideias e autores em contraste com a chamada era das escolas. Estamos hoje em contato com novas proposições teóricas e clínicas em ‘status nascendi', nos deparamos com uma multiplicidade de vozes no nosso cotidiano. Na opinião de vocês, como tal contexto afetaria uma voz própria? Quais seriam as atuais dificuldades enfrentadas pelos analistas?" A conexão que faço aqui é assim, se agora dissermos, nós psicanalistas, em contato com essa multiplicidade de ideias psicanalíticas, de novas teorias e concepções, como ficamos se a gente não estiver abrigado nas velhas escolas de alguma forma? Eu acho que é um pouco isso que a pergunta focaliza, quer dizer, onde nós nos vemos diante disso? Eu fiquei refletindo agora um pouco sobre isso. No sábado eu estava assistindo à entrevista de Green que foi filmada e o Fernando Urribarri trouxe algum nível de esclarecimento ao longo da reunião sobre a questão de como ele tem entendido a questão da contemporaneidade. Ele fazia uma proposta de algo que era um aporte na psicanálise, que pudesse centrar-se não exclusivamente na teoria de um autor, o que é importante, mas, por outro lado, que também se pudesse pensar numa construção coletiva e como é lidar, estarem em contato o psicanalista e essa construção coletiva? É interessante porque vocês formularam essas questões evidentemente antes dessa contribuição que a gente teve no sábado. Eu acho que está se pensando muito nisso atualmente. Frente a tantas leituras, como nós vamos fazer uma escrita interna para de alguma forma dar algum contorno?

Alexandre – Parece que essa pergunta traz a ideia de um facebook psicanalítico, de se encontrar contornos em uma rede sem rosto, em uma rede predominantemente de ideias. Mas isso traz também algumas consequências, sobretudo se levarmos em conta aquilo que discutimos aqui sobre identificação, seja com determinada escola ou autor. Será que é possível para nós analistas prescindir dessas identificações ou redirecioná-las para conceitos, ideias e modos de pensar sem rosto definido? Afinal, o rosto (autor) não traria uma dimensão de intimidade fundamental para o processo de individuação?

Milton – Vivemos um momento muito crítico hoje em dia nessa passagem da era das escolas para algo que pretende ser uma proposta contemporânea, ainda não sabemos como lidar com isso. Acho que é muito importante estar aqui discutindo esse tipo de assunto e poder pensar a questão da autoria dentro de alguma perspectiva. Borges se coloca como um escritor/autor singular, com identidade própria e, ao mesmo tempo, ele nas suas obras se reflete em algo de natureza universal. Esse paradoxo nos fala que a literatura abrange o singular e o universal. Marcella nos disse algo há pouco, que escrevemos para nos exibir. É tão importante atender a esta questão narcísica, pois precisamos de uma identidade, não é pecado, e essa identidade pode ser reconhecida, ser vista. Quer dizer, se não tiver isso de repente a gente se dissolve, se fragmenta. Como viver com este interjogo?

Maria Thereza – Eu também estava pensando, que difícil isso que vocês propuseram na pergunta sete, como a escrita pode alcançar e dar forma àquilo que vem do inconsciente. Mas acho que o Green colabora para pensarmos sobre isso. Trouxe uma frase dele que achei muito bonita. Eu vou ler. Green em seu livro O pensamento clínico8, aponta para o hiato que existe entre a teoria e a prática clínica e para o fato de que não há âmbito onde a incerteza seja maior do que na psicanálise, pela insuportável ambiguidade do psiquismo, apenas captado de modo indireto:

o psiquismo dá sinais. É escutando, estando à cabeceira do divã (em contraposição a ‘ao pé do leito'), como nos dispomos a ressoar com o inconsciente do analisando deixando vibrar o nosso próprio. Porém, esta comunicação hermética, ou de circuito fechado, não basta para constituir uma disciplina, um pensamento. Sempre faz falta um terceiro que escute o que os outros se dizem e ouvem. Por isso, os analistas – e em alguns casos também os analisandos – escrevem. Ao fazê-lo, se escutam entre eles, às vezes se reconhecem, ou são impactados pela centelha de uma novidade. (p. 15)

Não sei o que você faz com isso. Alguma coisa você faz.

Marcella – Pensando nessa questão de como a escrita pode alcançar e dar forma àquilo que é da ordem do inconsciente, me ocorre que é muito presente na obra do Freud a analogia do aparelho psíquico com o aparelho da escrita. Já na carta 51 aparece essa analogia: os traços mnêmicos estão sempre sujeitos a uma transcrição à medida que incidem outros traços mnêmicos no psiquismo. Depois Freud (1900) vai dizer que o sonho é como uma escritura, passível de uma decifração singular. E mais tardiamente em "Uma nota sobre o bloco mágico" (1924) a metáfora do aparelho psíquico como um aparelho de escrita reaparece. Isso reafirma a ideia de como, através do simbólico, tentamos dar conta do pulsional, do que extravasa.

Milton – Eu sempre me interessei na instituição, em estar no âmbito das publicações. Acho muito interessante, muito rico. Porém, cada vez mais tenho a preocupação de que a escrita se torne uma coisa esvaziante, pois tenho a impressão de que se escreve muito e se lê pouco. Eu acho que isso é um problema para quem escreve e para quem edita, porque cuidar desse espaço editorial, ou espaço da oportunidade de permitir que ocorra a autoria é de uma importância extraordinária; é um investimento e um esforço sem fim.

Eunice – Duas coisas que me ocorreram na fala da Marcella e de vocês: uma associação da escrita com a fase do espelho do Lacan, momento no qual de alguma maneira se organiza uma identidade. Você busca nessa escrita que é "do espelho" alguma outra coisa, ou seja, que o outro o veja também. Isso me remete ao outro grande tema do Borges, que são os espelhos e à questão do poder estar aprisionado entre dois espelhos. Dois espelhos paralelos criam imagens ao infinito que se refletem. Então você é remetido ao infinito em que isso na verdade não te reflete, quer dizer, ou te reflete de tal maneira que também pode lhe aprisionar. Ou então, do Film, pequena obra cinematográfica realizada por Samuel Beckett, onde o personagem tinha tanto medo dos espelhos que fugia deles, assim como de todos os olhares. Uma outra associação que me ocorreu, foi a relação da escrita com o sonho: o que é ter um sonho genuíno que implica numa constituição mental sofisticada, e o que Bion fala, que seria um artefato de sonho9. Quer dizer, seria um não sonho ou a impossibilidade de sonhar, que se preencheria por um artefato. Poderíamos então considerar que o sonho genuíno permitiria o desenvolvimento de um autor e o artefato de sonho não levaria a alguma coisa que nos preocupa muito, que é a questão da autoria. Porque eu acho que é uma questão de quem está trabalhando com publicação, a indagação sobre se o que você vai publicar é algo genuíno ou é um arremedo, uma mentira, uma fraude.

Abigail – Falou-se hoje da escrita como exercício de elaboração, da busca da identidade. Como exercício sempre vai ser genuíno, mas como saber se isso que escrevemos virou algo interessante ou é fraudulento? Vivemos em tempos em que as pessoas escrevem mensagens no facebook mandam torpedos imediatos, … aí eu fico pensando se de repente não estamos usando a escrita para falar por escrito, inclusive entre os colegas, nessa falta de tempo para o encontro pessoal, interpondo o artifício de escrever em vez de conversar, se não estaríamos pulando um pouco essa parte do debate, da troca de ideias, entre os pares e entre as gerações também. Porque ao falar, como a Thereza disse, também estamos publicando, ao vivo. Se de repente essas questões superegoicas não inibem a conversa e a pessoa acaba mandando direto suas ideias para uma revista para serem publicadas e, se então, ao passarem pelo cerne do editor, só assim valeriam a pena? Penso que o espaço dessa elaboração de discutir com os pares e entre as gerações é muito rico.

Milton – Eu achei interessante, uma coisa que me ocorreu em relação a essa experiência proposta pelo grupo na organização de um debate, é como sendo um momento de pré-publicação, como parte de um processo de criação de um número de edição. Quer dizer, se constrói um espaço de debate que permitiria, de alguma forma, haver um aprofundamento na relação, inclusive entre o grupo de pessoas. Esta possibilidade discursiva, reflexiva, de poder entender cada vez mais a que se presta esse espaço editorial e de lidar com ele da melhor forma possível. É uma instância que, ao mesmo tempo, pode fazer parte da edição da revista e, por outro lado, ter uma finalidade em si mesma na construção deste espaço. Eu achei muito interessante participar deste momento.

Jornal – Também achamos muito rica essa experiência de hoje, de termos pessoas em diversos níveis e estágios de formação, conversando, trocando experiências. O debate foi muito bom, gostaríamos de agradecer a presença de vocês.

 

Perguntas para o debate

1. De um modo geral, o que vocês entendem por "autoria"? Qual seria sua importância?

2. Do ponto de vista de vocês, por que se escreve? Para quem se escreve? Até que ponto o exercício da escrita ajuda na formação do analista?

3. Autoria está intimamente relacionada a autorizar-se a ter voz própria, frente a si mesmo e à comunidade à qual se pertence. Partindo da experiência de vocês, que condições reconhecem em nosso Instituto e Sociedade como favoráveis e/ou desfavoráveis na formação de uma identidade analítica entre seus membros (filiados, associados, efetivos e didatas), enfim, no "tornar-se analista"?

4. Em relação a este tema Autoria, gostaríamos de refletir com vocês de forma particular os relatórios de supervisão na formação do analista na nossa instituição. Podemos considerar que escrever o relatório seria mostrar a nossa caminhada no trajeto edipiano?

5. Vivemos hoje na Psicanálise um período de pluralidade nas ideias e autores, em contraste com a chamada "era das escolas". Estamos hoje em contato com novas proposições teóricas e clínicas pensadas ao redor do mundo in statu nascendi, e nos deparamos com uma multiplicidade de vozes em nosso cotidiano. Na opinião de vocês, como tal contexto afetaria a construção de uma voz própria? Quais seriam, nesse sentido, as novas dificuldades enfrentadas pelos analistas?

6. O escritor chileno Alejandro Zambra diz que "escrever é ler um texto não escrito". Poderíamos também dizer que ler é reescrever o texto de outrem. Como vocês pensam a relação entre escrita e leitura em psicanálise, e como isso repercute em suas atividades?

7. Segundo Fédida, "o analista em trabalho é aquele que, nas horas da noite, escreve em seu caderno – para ninguém e por vezes para ele mesmo – aquilo que permanece presente em seu pensamento como uma questão insistente cujos contornos ele ignora". Podemos considerar que o analista está constantemente sujeito a elaborar algo que extravasa, que lhe escapa. Como uma escrita pode alcançar e dar forma àquilo que é da ordem do inconsciente?

 

 

1 Estiveram presentes pelo Jornal de Psicanálise: Eunice Nishikawa, Abigail Betbedé, Alexandre Socha, Beatriz Peres Stucchi, Miriam Altman, Raquel Elisabeth Pires e Sonia Maria Marchini.
2 Cyssau, C. (1999). Fonctions théoriques du cas clinique. De la construction singulière à l'exemple sériel. Monographies de Psychopathologie. Numéro spécial, Le cas en controverse. (pp. 59-82).
3 Sandler, P. C. (2005). Narcisism and social-ism. In The Language of Bion. Londres: Karnac.
4 Monegal, E. R. (1980). Borges – Uma poética da leitura. Coleção Debates – Crítica. São Paulo: Perspectiva.
5 Em busca do feminino – ensaios psicanalíticos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1993.
6 Steiner, J. A luta pela dominação na situação edípica. Rev. Bras. Psicanál., 34: 285-297, 2000.
7 Montaigne, M. (2000/1). Do desmentido. In Ensaios (3 Volumes), São Paulo: Martins Fontes. (Obra originalmente publicada em 1595).
8 Green, A. (2010). El pensamiento clínico. Buenos Aires: Amorrortu.
9 Bion, W. (2000). Cogitações. (p. 150). Rio de Janeiro: Imago.