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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.45 no.82 São Paulo jun. 2012

 

ENTREVISTA

 

A formação do psicanalista na Alemanha e Europa

 

The psychoanalyst's training in Germany and Europe

 

La formación del psicoanalista en Alemania y Europa

 

 

Peter Wegner*

Associação Psicanalítica Alemã

Endereço para correspondência

 

 

A entrevista concedida ao Jornal de Psicanálise e à Associação de Membros Filiados (AMF) foi realizada em 01 de junho de 2012, durante sua visita à SBPSP. Ela dá continuidade ao projeto da AMF de apresentar as variantes da formação psicanalítica nas diferentes Sociedades de Psicanálise ligadas à IPA, através de entrevistas sobre o tema com os palestrantes internacionais convidados pela SBPSP. Na entrevista estiveram presentes: Denise Aizemberg Steinwurz, Michael Harald Achatz e Miriam Altman.

 

AMF – Nós da Associação de Membros Filiados temos desenvolvido uma série de entrevistas com psicanalistas de outros países. Consideramos bastante enriquecedor conhecer como se dá o processo de formação em outros institutos, saber quais são suas ideias a respeito da formação na sua sociedade e na IPA em geral; ouvir um pouco do que pensa a respeito dos desafios atuais da psicanálise e de como enxerga o futuro da psicanálise. Talvez pudesse começar nos falando um pouco da sua própria trajetória, de como foi o seu processo de formação, permitindo assim introduzir o tema de maneira mais pessoal e informal.

Peter Wegner (PW) – Compreendo o que querem dizer, podemos então começar pela minha experiência pessoal. Bem, com 12 anos tive a oportunidade de entrar num grupo muito especial de escoteiros, que seguia a tradição de um grupo chamado Rosa Branca. Esse grupo exerceu forte oposição contra o nazismo, produzindo panfletos que foram colocados por toda parte. Todos eles foram mortos durante aqueles tempos. O grupo em que entrei vinha deste background. Um dos requisitos para se tornar um líder de escoteiros era conhecer psicologia, pedagogia, informações sobre sexualidade e sobre temas ligados à psicanálise. Foi neste grupo que, aos 14 anos, por volta de 1966, entrei em contato com Freud pela primeira vez: li os "Três ensaios sobre a sexualidade".

Eu participava semanalmente da formação de líderes e fiquei tão impressionado que decidi me tornar psicanalista. Nasci em Berlim e vim de uma família operária. Meu pai era agricultor e depois trabalhou como responsável de vagão dormitório nos trens, não era um intelectual. Então, foi nesse grupo que adquiri novos conhecimentos e fui introduzido ao mundo intelectual. Pensava que entendia de psicanálise muito bem aos 14 anos. (Risos).

Quando terminei meus estudos secundários em Berlim fui estudar psicologia em Tübingen, onde existia a primeira cátedra de psicanálise numa universidade europeia. Era um Departamento de Psicanálise e Psicoterapia na Faculdade de Medicina, fundado em 1964 por Mitscherlich, a figura mais importante da psicanálise na Alemanha do pós-guerra. Quando me mudei para Tübingen em 1972, o Professor Wolfgang Loch era o chefe da cátedra, após ter trabalhado por anos como assistente de Mitscherlich. Professor Loch era um dos poucos analistas alemães internacionalmente conhecidos na época, com diversos artigos publicados na década de 60. Um dos seus livros foi publicado em inglês, editado por mim, com o título: "A Arte da Interpretação, Desconstrução e Recomeço no Processo Psicanalítico", publicado pela IPA e Karnac em Londres. Eu o citei diversas vezes no meu trabalho que apresentarei amanhã, sobre a importância da cena de abertura na primeira entrevista.

Na época era praxe para um intelectual interessado ir às palestras sobre psicanálise de Loch, todas as sextas à tarde. Eu comecei ali como um jovem estudante de psicologia. Quando me formei, logo consegui um emprego num centro de aconselhamento para crianças e adultos em Reutlingen. Trabalhei lá por dois anos, depois mais dois anos num centro de aconselhamento para adultos em Stuttgart. Depois surgiu uma terceira oportunidade que me levou para o caminho certo: eu consegui um lugar como assistente do sucessor de Wolfgang Loch, Heinz Henseler. Ele ficou com a cátedra de Psicanálise e eu fiquei como assistente. Éramos um grupo muito pequeno: três candidatos, um psicólogo, um médico chefe e o professor, os três também psicanalistas. Trabalhei durante quinze anos nessa universidade, nesse pequeno grupo: fiz pesquisas em psicanálise, dei aulas para estudantes de medicina e coordenei Grupos Balint para médicos. Foi um tempo bastante ativo na universidade.

Em 1994 decidi sair da universidade e me dedicar em tempo integral à minha clínica psicanalítica em consultório particular.

AMF – Você é analista didata?

PW – Sim, sou analista didata, fui analista e, sim, fui Doutor em Psicologia. Agora vamos à formação em psicanálise. Na minha experiência, diria que muitas vezes a qualidade da análise didática é desconsiderada. E, do meu ponto de vista, este é um dos grandes problemas, pois existem vários colegas insatisfeitos com suas análises. No meu caso isso não aconteceu. Tive a grande oportunidade de fazer minha análise didática com Loch durante oito anos. Ele já estava muito idoso naquela época e era um pouco arriscado iniciar uma análise com ele por causa da sua saúde, mas pude ficar com ele todo o tempo da minha formação. Iniciei a análise com quatro vezes por semana e depois passei para cinco.

AMF – Você ficou, então, oito anos em análise com ele?

PW – Sim, acredito que isso é essencial para todos que estão em formação. Se o candidato sente que a análise didática é confiável, boa e está funcionando bem, então, setenta por cento dos problemas ligados à formação estão resolvidos. Mas e se este não é o caso?! Se a dupla analista e analisando não estiver funcionando bem, então é um grande problema. Tenho me preocupado com a questão de como lidar com esses casos. Existe a possibilidade de se trocar de analista se a análise não está funcionando bem. Este é um dos pontos pelos quais tenho lutado, não é fácil, existe uma pressão grande, especialmente em institutos pequenos. Deixar uma análise é sempre uma situação arriscada e complicada. Mas no final, do meu ponto de vista, é muito melhor fazer isso do que ficar numa análise didática em más condições.

AMF – Nesses casos deveria se ter o cuidado de não colocar a culpa no analista nem no analisando, mas de olhar para o fato como uma resultante da dupla?

PW – Sim, é a dupla que não funcionou. Penso que esse é o centro de tudo, se não vai bem, pode esquecer, é uma tragédia para o colega. Toda a vida profissional encontra-se sob essa sombra de uma análise didática mal sucedida, é terrível, absolutamente terrível! (Pausa)

Gostaria agora de falar de outro aspecto, de frisar um ponto que diferencia a formação em psicanálise na Alemanha, que consiste no fato de termos treze institutos: em Berlim, Stuttgart-Tübingen, Hamburgo, Munique, Kassel, Frankfurt, Köln-Düsseldorf, Heidelberg-Karlsruhe,Giesen, Mainz, Ulm, Bremen, e alguns novos lugares na antiga parte oriental da Alemanha. Uma coisa interessante é que só temos uma Sociedade. O principal é que a formação é feita localmente. Eu fiz minha formação no instituto Stuttgart-Tübingen, que é combinado, pois as duas cidades distam cerca de 30 km entre si. Temos seminários, supervisões, tudo ali, mas os exames são centralizados.

AMF – Em Berlim?

PW – Não, não num lugar específico. Vamos às nossas conferências da primavera, cada vez num local diferente e às conferências do outono, sempre num mesmo lugar no sul da Alemanha. Então, lá ocorrem todos os exames, não com os professores locais, mas com os de outros institutos.

AMF – O que quer dizer com exames?

PW – Já vou lhe dizer, mas antes quero frisar que o princípio é muito importante, pois significa que o instituto local é livre para ensinar, mas é controlado via exames realizados por outros institutos. Isso implica em que o instituto local não pode se desenvolver de forma bizarra porque sabe que os outros estão acompanhando o que se passa. Então esse é um modo muito bom de funcionamento, ensino localizado e exames centralizados.

Bem, quanto à estrutura da formação é muito fácil de entender. Temos dois momentos. O primeiro momento é anterior aos atendimentos. Nessa primeira parte estudamos a teoria básica, Freud e outros.

AMF – Nesse momento vocês não têm pacientes?

PW – Não, nenhum paciente, só análise didática e teoria. E o importante é o seminário semanal da assim chamada ‘primeira entrevista'. Os candidatos começam fazendo ‘primeiras entrevistas'. Encontram-se semanalmente durante dois anos e meio a três anos, trazendo os pacientes e discutindo os casos nesse grupo.

AMF – Os candidatos entrevistam os pacientes?

PW – Sim, somente.

AMF – Mas eles são indicados para uma análise?

PW – Temos um ambulatório em que o paciente vem e faz algumas entrevistas, de uma a três, com o candidato, este faz intervenções, é supervisionado. Depois disso, o paciente tem uma conversa curta de 30 minutos com um membro do instituto, que é o responsável pelo ambulatório naquele momento. Dessa forma o processo de entrevistas é repetidamente treinado e há o seminário semanal sobre as entrevistas.

AMF – As entrevistas teriam também o sentido de ajudar o paciente …

PW – Sim. Eles fazem um diagnóstico, fazem indicações para o tipo de tratamento mais adequado, procuram por um analista, se for o caso. Indicam para psicoterapia ou para uma clínica psiquiátrica, para um trabalho de assistência social, dependendo do que for. Todas essas entrevistas, cada intervenção e situação, serão supervisionadas no grupo ou individualmente.

AMF – Este paciente pode ser encaminhado para um analista do instituto?

PW – Sim, claro, talvez para um candidato. Existem candidatos que já estão prontos para começar, mas às vezes acontece, se o candidato é muito experiente, de dizer ao paciente: "volte daqui a seis meses que talvez eu já tenha permissão para atendê-lo".

AMF – Mas quando o candidato pode começar a atender?

PW – No final dessa primeira fase da formação.

AMF – Quanto tempo leva?

PW – Mais ou menos de dois anos e meio a três anos, depende. Algumas pessoas são mais rápidas e fazem em um ano e meio. Mas mudou muito, agora temos vários candidatos que já entram com bastante experiência. Há pouco tempo atrás os candidatos entravam com minha idade, perto dos 60 anos, agora eles têm em média 50 anos. Eu comecei minha formação com 26 anos. Terminada então esta primeira fase da formação, vem a primeira avaliação, onde o candidato precisa apresentar uma ou mais dessas primeiras entrevistas, de duas a três. Em seguida, ele conversa sobre o caso com os avaliadores e será questionado a respeito do diagnóstico, processo, psicodinâmica etc.

AMF – É uma banca?

PW – Sim, com quatro analistas. Normalmente serão avaliados de dois a quatro candidatos no mesmo exame. Cada candidato apresenta um caso, sendo que os outros assistem. A avaliação de todos pode levar de duas a duas horas e meia. Se o candidato for aceito, pode procurar um paciente para análise.

AMF – Voltando um pouco atrás, quem vocês aceitam como candidatos? Precisam ser médicos, psicólogos ou podem ser de outro campo?

PW – Depende das leis sociais do país. Na Alemanha só podemos aceitar médicos e psicólogos para formação, porque outros não poderiam tratar um paciente. Existe uma exceção para leigos: eles podem fazer a formação, mas não podem clinicar. Temos uma candidata leiga idosa. Mas isso não se torna atrativo, na medida em que só se estuda a teoria.

AMF – Poderia nos dizer se existem muitos médicos fazendo a formação?

PW – A tendência dos últimos 14 anos tem sido uma procura maior por psicólogos e mulheres. No início a maioria dos analistas era constituída por médicos.

AMF – Ao que você atribui esta mudança?

PW – É muito fácil, porque para se tornar um médico significa ser um especialista em psiquiatria, neurologia, seja lá qual residência o médico escolhe. Então, você precisa de especialização na formação como médico, se ainda escolhe a psicanálise, nessa altura você vai estar com 35 ou 38 anos de idade. E não é só isso; é o momento em que a pessoa tem o primeiro filho, constrói sua casa, é uma questão financeira, de tempo e de motivação. Para os psicólogos a situação é diferente: fazer uma formação em psicanálise, significa um status maior e chances de melhores ganhos financeiros do que se ficassem trabalhando numa instituição. É muito mais atrativo para eles.

AMF – E o fato de existirem mais mulheres do que homens na psicologia?

PW – Porque não existe tanto prestígio para os homens e o status de psicanalista não está em alta agora na Alemanha.

O segundo momento da formação é fácil de explicar. Pelo regulamento todo tratamento analítico realizado por um candidato deve ser supervisionado semanalmente do começo ao fim, até a avaliação final, por um analista experiente.

AMF – Por quanto tempo?

PW – Em média de dois anos e meio a três anos. Com um analista.

AMF – Nós aqui em São Paulo precisamos fazer duas supervisões.

PW – Nós também precisamos fazer duas. Este é um primeiro estágio. Se o candidato estiver pronto, preparado após o final da primeira etapa que inclui uma avaliação, ele pode procurar por um paciente. Ele vai precisar de meio ano a um para encontrar esse paciente e, para alguns candidatos, leva até dois anos e meio para encontrar um primeiro paciente para análise. Em seguida o candidato procura um segundo paciente para análise, que deverá ser supervisionado também semanalmente por um segundo analista experiente. Até aqui é de acordo com o regulamento da formação. Mas para aproveitar o momento e aprofundar o treinamento, vários candidatos tomam um terceiro paciente em análise, que por sua vez deverá ser supervisionado por um terceiro analista supervisor, pois o candidato nessa fase ainda não pode atender sem um supervisor para cada paciente.

AMF – Os pacientes vêm com que frequência? Três ou quatro vezes por semana?

PW – Somente quatro vezes por semana, para casos de formação. E para análise didática também quatro vezes. Isto significa que você precisa ter dois casos e dois supervisores.

AMF – Ao mesmo tempo?

PW – Sim, ao mesmo tempo, e muitos de nós tiveram três casos, ao mesmo tempo. Caso contrário, você levaria dez anos para fazer a formação.

AMF – E a análise didática, quanto tempo leva?

PW – Até o final da formação, o que significa de cinco a sete anos, no mínimo.

AMF – Se a dupla decide que terminou?

PW – Pode acontecer, mas é muito pouco habitual. Se acontecer, será aceito, discutido, mas se você tem dois ou três casos em atendimento, você vai ficar muito feliz em poder ter análise para conversar, um dos temas será esse. Se a análise vai bem, claro; se não, é uma catástrofe.

AMF – Você tem colocado tanta ênfase num bom relacionamento entre analista e analisando numa análise didática. Já presenciou muitos casos que não deram certo?

PW – Não diria que vi muitos, mas o que vi foi suficiente para ficar alarmado. No meu instituto, nos últimos trinta anos, soube de cinco a sete colegas que não ficaram satisfeitos com suas análises didáticas. E isso é bastante, porque somos um instituto muito pequeno.

AMF – Quantos candidatos vocês têm?

PW – No instituto Stuttgart-Tübingen temos setenta analistas dos quais 15 são didatas e 10 são candidatos. Esse número não varia muito, fica entre 25 e 30, às vezes diminui um pouco.

AMF – Continuando no tema do percurso da formação, perguntamos quais as características da segunda fase de formação, quando o candidato já está atendendo.

PW – O candidato tem esses dois ou três casos que são supervisionados individualmente e dois tipos de seminários que acontecem em paralelo: um pequeno seminário clínico, formado em média por cinco ou seis pessoas, que se mantêm durante alguns anos, em que o candidato apresenta e conversa sobre seus casos. Ao mesmo tempo, temos os grandes seminários clínicos em que você apresenta semestralmente um caso, prepara um texto sobre ele. Funcionam como um exame no instituto local.

Seus colegas, analistas, analistas didatas, estarão lá. Se esse processo chegar até o final e todos acharem que houve um bom desenvolvimento, aí o candidato pode fazer o exame final. O candidato precisa fazer um relatório de vinte páginas sobre um caso e enviá-lo para todos os membros da nossa sociedade na Alemanha, o que significa cerca de mil cópias.

Segue o exame centralizado, onde um grupo, de setenta a cem pessoas, participa da avaliação. O candidato apresenta seu caso e relata uma ou duas sessões. Os presentes discutem o material com o candidato. Ele sai da sala, as pessoas presentes ao exame conversam sobre o que pensam e votam. Se o candidato é aceito, tudo bem. Caso contrário, ele se dirige ao comitê central de formação e seu caso é discutido novamente. Normalmente, depois disso, ou o candidato é aprovado ou orientado a tentar de novo após um ano. Uma vez aprovado, vem uma formalidade que consiste na aprovação por voto na assembleia dos membros da sociedade psicanalítica alemã, para que o candidato seja aceito como novo membro.

AMF – Vimos como é o processo de formação na Alemanha até "ser aprovado como analista". Você poderia nos falar da sua preocupação com o processo de formação no resto da Europa?

PW – Isso é difícil de comentar, porque existem grandes diferenças na Europa. A sociedade inglesa tem seus três grupos que estão sempre brigando: os pós-freudianos, os kleinianos e o grupo do meio. Os pós-freudianos e os do grupo do meio quase não existem. Tem uma enorme maioria kleiniana que, de alguma forma, detém poder.

AMF – Eles têm o poder sobre o International Journal?

PW – No momento, os kleinianos estão na direção do International Journal. Mas, há alguns anos atrás, era uma pessoa do grupo do meio que era o editor. Então é algo que muda muito.

Temos também o cenário francês, com a enorme massa de lacanianos, que não fazem parte da IPA. Há três grupos ligados a IPA em Paris e o cenário lá é muito diferente; ser psicanalista em Paris é totalmente diferente, eles são muito valorizados na mídia, dão entrevistas, escrevem artigos em todos os jornais, todos conhecem psicanálise.

AMF – E na Alemanha não?

PW – Você fala com as pessoas e elas não são capazes de diferenciar a psiquiatria da neurologia, a psicologia da psicanálise. Em Paris é totalmente diferente. Eles lhe perguntam: ‘você é lacaniano ou não'?

No leste da Europa existem muitos candidatos que são bastante ativos: na Polônia, Ucrânia, Sérvia, Croácia. Temos o grupo de Viena que é bem à moda antiga, seguindo um Freud de 1920. (Risos) Os países do norte da Europa são mais orientados pela psicanálise americana, a psicologia do ego. É difícil falar de psicanálise na Europa. A Holanda, por exemplo, é um país pequeno, tem três sociedades da IPA e elas brigam muito entre si. A psicanálise alemã não é aceita na Europa.

AMF – Por quê? Não lemos nada da produção psicanalítica alemã aqui.

PW – Internacionalmente ela não existe. É uma longa história. Houve a época do nazismo …

AMF – Ainda sob a sombra do nazismo …

PW – Sim, em muitos aspectos. Por longo tempo a psicanálise alemã não existiu. Pessoas da minha geração foram as primeiras a aparecer e percebemos que nenhum grande nome falava nas conferências internacionais. Não se apresentavam, não participavam das discussões, não falavam.

AMF – Eles estavam tímidos?

PW – Essa foi a aparente reação. A sociedade alemã é a maior da Europa, temos mais de 1000 membros.

AMF – Quantos existem na França?

PW – Talvez uns 700, em Londres 500, na Itália temos 900. Mas na Itália era como na Alemanha, por muito tempo não tiveram influência internacional, mas agora têm, começou. Os italianos são muito bons. Por exemplo, o candidato italiano, hoje em dia, precisa estudar inglês. Durante a formação eles têm cursos em inglês. Sem falar inglês não terminam a formação. Isso é impossível na Alemanha.

AMF – Para que eles possam participar desses eventos internacionais?

PW – Sim. Muito alemão não fala inglês. Se estiverem falando, não se sentem à vontade para compartilhar.

AMF – Essa timidez que você falou anteriormente teria algo a ver com sentimento de culpa ligado ao nazismo?

PW – Não. Há algum tempo poderia ser algum tipo de sentimento de culpa que causava timidez, mas depois mudou. Você não pode mais dizer que esse sentimento é do tempo do nazismo. Agora existe um certo tipo de arrogância e também o desejo genuíno de encontrar uma nova tradição alemã … Sou um pouco cético a respeito disso, pois penso que precisamos de um intercâmbio profundo e contínuo com todas as tradições psicanalíticas europeias e norte e sul-americanas. Vai nos dar mais trabalho para descobrirmos o nosso estilo (o estilo alemão, não o importado) de uma boa prática clínica. Durante muito tempo os alemães tiveram a experiência de enviar seus artigos para o International Journal, os artigos voltavam e eram criticados. Acompanhei isso. Acontecia com frequência.

AMF – Mas o International Journal sempre critica e você tem que seguir um tipo de tendência editorial para ser publicado.

PW – Mas a pessoa precisa ser muito forte para suportar isso. É difícil por causa do problema da língua, sabe? Se você escreve um artigo em alemão e a tradução não é boa, ele está perdido. Você não pode corrigi-lo rapidamente, custa caro, você precisa pagar e é muito difícil conseguir publicar.

AMF – Você poderia nos falar quais são as principais tendências teóricas, quais os autores, pensamentos que estão influenciando a psicanálise na Alemanha hoje?

PW – Sim, hoje tem mudado muito, mas vamos falar dos últimos vinte anos. Houve uma forte influência do grupo kleiniano de Londres com a teoria da relação de objeto britância. Todos os três grupos britânicos (kleiniano, middle-group e freudiano) tiveram uma forte influência na Alemanha e a maior parte dessa literatura foi traduzida para o alemão nos últimos quarenta anos.

AMF – Os alemães iam para Inglaterra para ter supervisões, continuarem sua formação lá?

PW – Sim, com certeza … Faziam supervisão em Londres, ou traziam analistas didatas de Londres para supervisão em pequenos grupos, num ambiente mais intimista. Sem uma conexão com Londres, você não era nada nestes últimos vinte anos. E aqueles que passaram por isso, nunca ficaram livres dessa influência, ficaram sob a tutela de Londres.

AMF – Ficaram colonizados.

PW – Sim, colonizados por um pensamento kleiniano, sendo que a ideia de que estariam mais integrados no cenário internacional não funcionou, compreende? Era uma situação terrível. Por exemplo, no meu instituto tínhamos uma divisão total. Tinha um grupo que fez supervisão com Rosenfeld. Eles faziam uma diferenciação: estes eram os psicoterapeutas e aqueles eram os psicanalistas e uns não falavam com os outros. Se o convidado era kleiniano eles compareciam, caso contrário não. Acontece não somente na Alemanha, mas em várias partes da Europa. Parece-me que as ideias de Klein sobre agressividade e destrutividade foram particularmente importantes na Europa após 1945. Agora encontramos um modo melhor de coexistência, mas eu diria que a base é ainda frágil, ainda que melhor do que nos últimos vinte anos.

AMF – E com relação à influência francesa?

PW – Isto é interessante: quase não existe influência francesa na Alemanha, porque os alemães dizem que não entendem os franceses. O que é verdade; e os franceses dizem que a psicanálise alemã é algo como o primário para crianças, que os alemães não entendem nada de Freud. De certa forma os franceses estão certos. Na Alemanha foi preciso um longo período após o holocausto, após 1945, para reencontrarmos Freud e desenvolvermos uma boa compreensão psicanalítica clínica. Necessitamos de muita ajuda e treinamento de fora para voltarmos …

AMF – Gostaríamos de saber se vocês têm alguma influência ou se leem autores latino americanos ou mesmo psicanálise brasileira?

PW – Sim, por exemplo, Loch tinha um relacionamento muito profundo com o círculo dos Baranger, ele esteve também bastante em contato com Etchegoyen. Teve também David Rosenfeld, um argentino que foi convidado várias vezes para Tübingen.

Depois soubemos que Werner Kamper veio ao Brasil, para o Rio, ele é um alemão que veio e fez algumas conexões entre os dois países.

Eu, por exemplo, trabalho sobre alguns temas com Elsa Rappoport de Aisemberg da Argentina e também com o Leopold Nosek e alguns outros …

AMF – Vamos voltar para a questão do seu interesse em fazer algo pelos candidatos na IPA?

PW – Meu interesse pessoal, num certo sentido, era tirar a psicanálise alemã do isolamento internacional. A ideia da Federação Europeia de Psicanálise é de construir um intercâmbio entre as sociedades psicanalíticas dos diversos países. Temos conferências anuais da EPF em que encontramos todos os países, as sociedades, e apresentamos casos.

A Federação Europeia, diferentemente da FEPAL e dos americanos, não tem função administrativa, temos só uma função científica. Não tem conexão com a IPA, não existe intenção política para ter influência na IPA. Nós só nos encontramos para um intercâmbio científico, apresentando trabalhos, conversando sobre casos e falando sobre formação.

Temos anualmente conferências para jovens analistas de todos os países da Europa que se encontram para apresentar trabalhos clínicos. A cada dois anos, fazemos intercâmbio clínico com a América do Sul e a do Norte num seminário especial: são 40, 50, 60 pessoas vindas dessas três regiões. Temos também outro intercâmbio na Europa, uma vez por ano, um seminário de didatas, onde se discute formação, supervisão etc. Nós publicamos isso continuamente em três línguas: alemão, inglês e francês.

AMF – E aonde vocês publicam esse material?

PW – O nome é Boletim Psicanalítico Europeu. Vocês podem ter acesso a isso, como candidatos e como membros. Se enviarem um e-mail para o editor, terão acesso ao nosso site e poderão ver todos os volumes nas três línguas dos últimos 40 anos. O website é: http://www.EPF-eu.org/Public/

AMF – Muito obrigado pela entrevista e generosidade por ter nos introduzido ao seu pensamento, à sua experiência e ao modo como vocês fazem sua formação. É um belo trabalho, parabéns.

PW – Se tiverem a chance, venham a uma de nossas conferências da EPF. O encontro é sempre uma semana antes da Páscoa, acontece de quinta-feira a domingo. A próxima conferência será na Basileia, na Suíça. Obrigado a vocês também, foi um prazer.

 

 

* Peter Wegner é analista didata e supervisor da Associação Psicanalítica Alemã (DPV). Foi Professor Assistente do Departamento de Psicanálise, Psicoterapia e Psicossomática da Faculdade de Medicina da Universidade de Tübingen, de 1982 a 1995. Desde essa época trabalha na clínica privada como psicanalista juntamente com sua esposa Dra. Christine Wegner, também psicanalista. Tem participado ativamente do Comitê de Formação do Instituto de Psicanálise de Stuttgart/Tübingen da Associação Psicanalítica Alemã (DPV/IPV), assim como dos Comitês de Programação de Congressos da Associação Psicanalítica Internacional (IPA) e da Federação Psicanalítica Europeia (EPF). De 2001 a 2005 foi membro do Comitê de Publicações da IPA (PC/IPA); de 2006 a 2008 foi vicepresidente e de 2008 a 2012, presidente da EPF. Ele tem se dedicado a questões da clínica psicanalítica de alta frequência com especial interesse em processos clínicos, à cena de abertura nas entrevistas iniciais, aos problemas da contratransferência, enactment, além dos problemas éticos e a psicanálise no sistema de saúde. As suas publicações podem ser vistas no website pessoal: www.drpeterwegner.de.