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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.45 no.82 São Paulo jun. 2012

 

REFLEXÕES SOBRE O TEMA

 

Tornar-se um autor1

 

On becoming an author

 

Hacerse autor

 

 

Liana Pinto Chaves2

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho trata da questão da autoria, através de um exame da obra do psicanalista inglês Ronald Britton. Pretende identificar como e quando ele se tornou autor. A tese principal é de que isso se deu no momento em que ele se libertou do peso da influência dos autores e figuras ancestrais do seu percurso como psicanalista. O pano de fundo é a elaboração da posição depressiva e da situação edipiana que, na obra desse autor, se dão simultaneamente. Foi escolhido um veio particular dentro dessa obra tão rica para se construir uma pequena biografia intelectual que partiu de um trabalho específico com descobertas clínicas importantes, porém ainda acanhado do ponto de vista de autoria propriamente dita – autonomia de pensamento. Essa autonomia foi sendo conquistada e esse trabalho "defeituoso" veio a se tornar – alguns anos depois, já depurado das distorções – um dos artigos mais importantes do pensamento pós-kleiniano. Material clínico inspirado pelas ideias de Britton foi apresentado como ilustração.

Palavras-chave: Ronald Britton, Autoria, Situação edipiana, Fratria, Linhagem teórica.


ABSTRACT

This paper deals with the question of authorship through the examination of the work of the British psychoanalyst Ronald Britton. Its aim is to identify how and when he became an author. Its main thesis is that this happened when he freed himself from the weight of the influence of ancestral figures and authors in his trajectory as a psychoanalyst. The background of the argument is the working through of the depressive position and of the Oedipal situation, which happen simultaneously. A particular path was chosen in this very rich production in order to sketch a brief intellectual biography of Britton. Its point of departure was a particular paper that he wrote with important clinical discoveries, but still timid in terms of authorship – autonomy of thought. Such autonomy was gradually conquered and this "defective" paper became in a few more years one of the most important papers of post-Kleinian psychoanalysis, by now free of distortions. Clinical material inspired by Britton's ideas was presented as illustration.

Keywords: Ronald Britton, Authorship, The oedipal situation, Phratry, Theoretical lineage.


RESUMEN

Este trabajo aborda el tema de la autoría, para lo cual se vale de un análisis de la obra del psicoanalista inglés Ronald Britton. Pretende identificar cómo y cuándo él se hizo autor. La hipótesis principal es que eso sucedió en el momento en que consiguió libertarse del peso de la influencia de los autores y figuras ancestrales de su carrera como psicoanalista. El plano de fondo del artículo nos remite a la elaboración de la posición depresiva y de la situación edípica, que en la obra de Britton se consideran simultáneas. Se eligió una veta particular, de la vasta y rica obra de ese autor, para elaborar una pequeña biografía intelectual. Partiendo de un trabajo específico basado en descubrimientos clínicos importantes, pero tímido en términos de autoría propiamente dicha, vemos como la autonomía de pensamiento va siendo conquistada y aquel trabajo "defectuoso" se transforma, algunos años más tarde, libre de distorsiones, en uno de los artículos más importantes del pensamiento post-kleiniano. Para ilustrar los conceptos se presenta material clínico inspirado en las ideas del autor en cuestión.

Palabras clave: Ronald Britton, Autoría, Situación edípica, Fratria, Linaje teórico.


 

 

Só um amor frívolo não sobrevive à definição intelectual;
um grande amor prospera com a compreensão.
Leo Spitzer

 

Estamos hoje aqui reunidos para homenagear Ron Britton, discutindo sua obra. Escolhi esta epígrafe porque penso que combina com seu estilo. Ele sempre inicia seus artigos com epígrafes bonitas e inspiradoras. As duas linhas acima de Leo Spitzer, o grande filólogo e crítico literário, fazem alusão ao profundo amor de Ron pela literatura. Eu também a escolhi porque falar de um grande amor significa falar do prazer penoso das coisas conquistadas com esforço e investimento e que nos dão um prazer muito mais duradouro e substancial.

Tornar-se um autor é uma questão vasta. Por isso mesmo me dou conta que preciso abrir mão de qualquer veleidade de onipotência de dar conta do assunto. Quando nos comunicamos sempre temos que escolher um ângulo, uma perspectiva, e precisamos nos conformar em abraçar muito menos do que o todo. A produção de qualquer texto sempre tem que se haver com um confronto que é ao mesmo tempo real e imaginário, confronto com os outros significativos, tais como pais, irmãos, o não-eu.

O que eu gostaria de fazer nesta apresentação é assinalar como e quando Ron se tornou um autor, do meu ponto de vista.

Passeei por entre as palavras autor, autoria, autorização, autoridade, autêntico e me dei conta de que este era o campo semântico em que se insere esta discussão. Abri o dicionário e, dentre os muitos significados, destaquei estes: autor – a pessoa que dá origem ou existência a qualquer coisa. Autoria – a dignidade de um autor. O próprio Ron se refere à autoridade da experiência.

Muitos textos de teoria literária abordam este assunto e eles cobrem uma gama muito grande de questões: o que é um autor, o que é uma obra, quem fala, a morte do autor, a angústia de influência etc. Vou deixar tudo isto de lado.

Para alguém se tornar um autor, é preciso uma personalidade forte e uma paixão pelo seu objeto de estudo; é preciso conquistar uma voz para se expressar, uma voz que se faça ouvir. É necessário primeiro se tornar uma pessoa por si mesma através do desenvolvimento pessoal como um todo e, então, enfrentar a tarefa de escrever e de se tornar um autor. É claro que uma coisa não pode ser dissociada da outra. Se me for permitida uma grande licença poética, penso na primeira autoria como o tornar-se um indivíduo e adquirir uma voz própria, isto é, atravessar um processo em que cada um se confronta com as suas questões existenciais básicas, fundamentalmente a sua situação edipiana. Isto é necessário para qualquer pessoa em qualquer campo. Como, então, se dá este processo quando consideramos um autor psicanalítico?

O que eu observo na minha prática clínica com pacientes que têm que escrever como parte de sua atividade profissional, é o predomínio de uma luta com a figura do pai, seja ela a do pai real, do analista, de um supervisor, uma instituição, uma teoria. Já estou aqui fazendo referência a algumas das ideias do Ron: mesmo que a sua ênfase seja em uma continência materna adequada de início, que permita a construção de um espaço triangular que seja seguro e criativo, tenho encontrado a figura do pai em primeiro plano mais frequentemente nesta questão da autoria. Mas me dou conta que a relação com a mãe está sempre rondando na sombra.

Desde que eu escolhi este tema para a minha fala de hoje, em parte por conta das minhas próprias ansiedades de publicação (afinal de contas, ninguém se torna analista por razões fúteis), comecei a ver autoria e não autoria por toda parte. Por coincidência, dois livros de literatura que eu estava lendo na ocasião também tocavam no assunto. Um deles era A ausência que seremos, do autor colombiano Hector Abad, cujo pai foi o herói da sua infância e também seu melhor amigo, e que foi assassinado durante a juventude do autor. Abad queria ser escritor desde criança. Diz ele, do pai:

Como ele sabia meu segredo, vivia dizendo a todo mundo que eu era escritor, mesmo sem nunca ter lido nem sequer um conto meu, que dirá um livro, e chegava a me dar raiva que ele desse como certo o que era apenas um sonho. (Abad, 2011, p. 25)

Em outra passagem acrescenta:

Acho que o único motivo que, nesses anos todos, me levou a continuar escrevendo e a publicar meus escritos foi a certeza de que meu pai, mais do que ninguém, teria gostado muito de ler essas páginas que ele não pôde ler. Que nunca lerá. Esse é um dos paradoxos mais tristes da minha vida: quase tudo o que tenho escrito, foi escrito para alguém que não me pode ler, e mesmo este livro não passa de uma carta para uma sombra. (Abad, 2011, p. 22)

O outro livro é de Orhan Pamuk, o prêmio Nobel turco. Ele escreve o seguinte sobre o pai:

Sem a confiança que me incutiu, teria sido muito mais difícil para mim tornar-me escritor, fazer disso uma profissão. (Pamuk, 2010, p. 30)

Pais (grandes autores) podem ser figuras emudecedoras ou fontes de inspiração. Para que se supere esse efeito inibidor, eles precisam ser transformados em algo que seja nosso e precisamos chegar a uma intimidade única, absorvendo todas as vozes significativas, a experiência de estar no mundo, para podermos, por fim, alcançar nossa própria voz. É preciso ter uma robustez para se postar diante do pai e obter dele uma autorização para conquistarmos para nós uma potência criativa e nos diferenciarmos dele.

Vocês certamente se lembram da frase de Goethe de que Freud tanto gostava – "O que herdaste de teus pais, conquista-o para fazê-lo teu" (Freud, 1913/1953, p. 158). Ela resume de maneira poética a compreensão da verdade existencial contida nesta luta.

Eu sou uma analista clínica. Para abordar esta questão da autoria fiz um trajeto a partir da análise de dois pacientes que eu vim observando mais atentamente nos últimos meses. Um deles era um paciente que não conseguia ir mais longe na sua pesquisa do seu mundo psíquico, e, assim, tornar-se autor de si mesmo. O outro era uma mulher valentemente empenhada na luta da produção intelectual. Eles me deram elementos para pensar o argumento que me permitiu chegar à autoria de Ron Britton. Este foi meu percurso inicial, sobre o qual construí meu raciocínio e a autoria deste texto: um não autor, alguém a caminho de tornar-se autor e um autor consagrado (Ron Britton). Depois de percorrê-lo, dei-me conta que o material clínico já não tinha mais a mesma relevância do início. Ele serviu como andaime para o que vou apresentar a seguir. Vou, portanto, em primeiro lugar me concentrar no exame da obra do Ron e, em seguida, apresentarei parte do material clínico.

 

Um autor pleno – Ron Britton

Ron é um autor com uma produção grande e sofisticada. Ele é um homem culto que dialoga com desenvoltura com várias áreas das humanidades: especialmente com a poesia, seu grande amor, mas também com a filosofia, a teologia e até mesmo com a física quântica! É dono de um estilo claro e cativante. Tem um talento para apresentar seus artigos numa boa proporção de teoria e observação clínica, um aspecto iluminando o outro, de um modo que torna a leitura muito interessante. Sua familiaridade com a poesia o leva a escolhas perfeitas de passagens de grande beleza e precisão para ilustrar suas reflexões clínicas que apresentam o humano no que tem de mais atormentado e sublime.

Vou buscar minha inspiração em Leo Spitzer, o famoso linguista e autor da epígrafe com a qual iniciei o meu texto, para esboçar uma pequena trajetória de Ron, começando com uma conexão que o próprio Ron fez: exatamente a do elo perdido. Aí ele pôde ver o que faltava. A meu ver, Ron se tornou autor com a publicação deste artigo – O Elo Perdido: a sexualidade parental no complexo de Édipo (Britton, 1989/1992). Spitzer defende que no exame de uma obra temos que nos concentrar primeiro em um detalhe que um determinado autor observou e a partir daí trabalhar da superfície para o interior, de fora para dentro, para o ‘centro vital interno' (‘inward life centre') de uma obra de arte (Spitzer, 1948, p. 19). No caso presente, de uma obra psicanalítica.

Para desenvolver essa ideia, vou começar pelo exame do artigo do Ron, Ansiedade de Publicação (Britton, 2003a). Nele, ele examina em profundidade o efeito das fantasias e medos associados com a publicação que transpiram nas obras de muitos autores importantes. Ele faz um inventário das principais manifestações que se costuma observar: estas vão desde a inibição completa de publicar até as distorções mais habituais – pressa na publicação, resultando em textos superficiais, banais, artigos excessivamente eruditos feitos para impressionar, um adiamento interminável como no caso de Darwin, intimidação diante de autores maiores (Abraham em relação a Freud) etc.

O âmago do seu argumento é o eterno confronto familiar a qualquer um comprometido com a tarefa de expressar seus próprios pensamentos em cada nova rodada da elaboração da posição depressiva, que se dá simultaneamente à elaboração da situação edipiana, outro dos temas caros a Ron e que ele desenvolveu tão bem. Os medos, que estão na base da ansiedade de publicação, provêm de duas fontes: o medo da rejeição por parte da audiência primária a que se dirige e o medo da recriminação por parte dos pares e exílio subsequente da comunidade. A traição de uma afiliação, a necessidade de aliança mental são todas palavras chave em sua análise, e todas reminiscentes das tragédias gregas. Traição, culpa e vergonha são experiências associadas a esse perigo.

Ron viu em Winnicott uma referência especialmente privilegiada, por conta da luta deste por reconhecimento e pensamento autônomo. Além de citar Winnicott em muitos artigos diferentes, especificamente neste artigo sobre a ansiedade de publicação, Ron menciona uma passagem de uma carta em que Winnicott fala de "pessoas fazendo descobertas à sua maneira e apresentando o que descobrem em suas próprias palavras" (Britton, 2003a, p. 280). Esta frase é muito próxima da ideia da terceira posição, conceito desenvolvido por Ron e que vem a ser nas suas palavras: "manter nosso ponto de vista, enquanto somos nós mesmos" (Britton, 1989/1992, p. 73).

Em uma passagem divertida deste mesmo artigo que estou examinando, Ron discute o texto de um analista, que mais adiante viremos a saber que era ele mesmo. Esse texto havia sido apresentado à Sociedade Britânica de Psicanálise em 1983. Num dado momento da sua apresentação esse analista sentiu necessidade de fazer referências ancestrais (os supervisores muito admirados e uma figura totêmica) e também de usar abundantemente muitos conceitos kleinianos muito conhecidos. Deu-se conta (no desdobramento do artigo Ansiedade de Publicação) que essa necessidade de estar em conformidade, de estar alinhado com os seus maiores e com o cânone, enfraqueceu a sua contribuição original, verdadeiramente criativa, mas que exigia confiança para ser firmada. Agora, como um autor plenamente à vontade e com um lugar próprio (a Ansiedade de Publicação é um artigo de 1994), ele recupera retrospectiva e analiticamente o que foi um dia o seu impedimento e nos fornece elementos para uma pequena biografia intelectual.

Examinemos essa passagem mais de perto. O artigo "defeituoso" se chamava Algumas dificuldades técnicas de falar com o paciente (Britton, 1983) e foi apresentado à Sociedade Britânica em 1983, como já foi dito. A ideia que estava sendo aventada levou alguns anos mais para ser amadurecida e o artigo que finalmente veio a ser publicado era O elo perdido: a sexualidade parental no complexo de Édipo. Diz o autor:

A ideia apresentada naquele artigo veio a ser publicada alguns anos mais tarde em um contexto mais amplo, sem o desvio das referências afiliativas irrelevantes a figuras ancestrais. (Britton, 1994/2003a, p. 289)

Irrelevantes porque elas já não eram mais necessárias e, nesse momento, ele se torna um autor: alguém que se autoriza a se expressar em seus próprios termos e a sustentar suas ideias.

E que ideia era essa? Ela surgiu a partir da análise de A, uma paciente muito perturbada, que envidava todos os esforços para impedir que Ron fizesse contato com seu mundo mental. A análise exigia uma grande capacidade de observação de fenômenos muito primitivos e muito fragmentados; era impossível para o analista pensar em condições tão adversas e de tanta violência emocional. Nas palavras de Ron:

Eu sentia que eu precisava desesperadamente de um lugar na minha mente para o qual eu pudesse dar um passinho lateral de onde eu pudesse olhar o que se passava. (Britton, 1989/1992, p. 74)

Para aqueles familiarizados com o artigo, a exclamação extraordinária da paciente: "Pare com esse pensamento fodido!" (‘Stop that fucking thinking!') (Britton, 1989/1992, p. 74) soa como uma revelação, um fiat lux – um novo mundo se deixa entrever. Os esforços do analista para pensar, de se recolher para ter um diálogo interno consigo mesmo sobre a situação, eram vivenciados pela paciente como uma relação sexual do analista com um outro interno, semelhante ao ato sexual dos pais. Isto significava uma perspectiva catastrófica de colapso mental, uma exclusão insuportável a que ela era submetida e que devia ser mantida à distância a qualquer custo. Ron descreveu sua descoberta clínica nas seguintes palavras:

Eu tinha que permitir a evolução dentro de mim da minha própria experiência e articular isto para mim mesmo, enquanto comunicava para ela a minha compreensão do seu ponto de vista. (Britton, 1989/1992, p. 75)

Pouco a pouco isto permitiu que a paciente pudesse começar a pensar. O analista, então, abrigou-a em sua mente, concebeu-a como um novo bebê até que sua capacidade embrionária se desenvolvesse o suficiente para suportar pensar e se dispor ao conhecimento. Abrigar essa experiência de loucura e de impossibilidade de comunicação permitiu-lhe compreender a realidade psíquica da sua paciente e formar uma noção do que a experiência original dela pode ter sido.

No caso de A, tem a ver com um desastre mental em função da sua crença de que, se os pais se unissem, alguma coisa catastrófica aconteceria com ela – seria o fim do mundo – algo que se configurou como insuperável e criou um fosso, uma lacuna. De fato, ela não podia pensar porque pensar é juntar coisas, estabelecer elos, observações, é uma cópula, uma ideia, mas uma ideia que resulta num broto, numa ideia bebê.

A expressão elo perdido está ligada à evolução das espécies e é uma metáfora de grande poder sugestivo. No desenvolvimento normal ocorrem mudanças contínuas, absorvíveis, e não um período glacial em que a vida perece, para continuar na imagem. No artigo, ela configura aquela categoria de algo envolto em mistério, essa lacuna que precisa ser resgatada.

Esse insight sobre o elo faltante constitui uma grande contribuição à compreensão da gênese do psiquismo e já se incorporou à nossa bagagem teórica. Posteriormente no artigo ‘Subjetividade, objetividade, espaço triangular', Ron estabelece alguns pontos em comum e distinções com a obra de outros analistas que trataram da importância fundamental da terceira pessoa. Refere-se especialmente a autores franceses, em particular Chasseguet-Smirgel e Lacan, que poderiam ter alguma semelhança com a sua noção de espaço triangular – enquanto teorias clínicas. "Minha ênfase era no fracasso da continência materna que levava a problemas com o significado e a impedimentos de negociar a posição depressiva e a situação edipiana, o que por sua vez limita a capacidade de simbolização e cria dificuldades com o pai e o seu mundo da linguagem." Isso o levou a pensar que formulações aparentadas, vindas de tradições teóricas tão diversas, devem corresponder a uma realidade clínica comum.

Melanie Klein termina o seu artigo de 1945 "O complexo de Édipo à luz das ansiedades arcaicas" com as seguintes palavras:

A vida emocional do bebê, as defesas arcaicas construídas sob a pressão do conflito entre amor, ódio e culpa, e as vicissitudes das identificações da criança – tudo isso são tópicos que poderão manter ocupada a pesquisa analítica durante muito tempo. Novos trabalhos nessas direções devem nos levar a uma compreensão mais completa da personalidade, o que implica uma compreensão mais profunda do complexo de Édipo e do desenvolvimento sexual como um todo. (Klein, 1996, p. 464)

O trabalho de Ron parte daí, continuando nesta senda, acrescido da teoria da continência de Bion e do que este denomina de "situação edipiana sexualmente orientada" (Bion, 1993), que torna a realidade tão odiada para o paciente que ele precisa destruir o ego que o põe em contato com ela.

Seu trabalho é o que eu entendo como um bom exemplo de pesquisa clínica que se torna, por sua vez, teoria. Anna Ursula Dreher, numa apresentação recente (não publicada ainda) no congresso do México sobre pesquisa clínica, provavelmente diria que Ron pratica um tipo de pesquisa clínica holística, all inclusive: empírica, conceitual e teórica.

Se eu fosse obrigada a escolher, eu votaria no "Elo perdido" como o artigo mais importante do Ron. Certamente é um dos artigos mais citados em Psicanálise nos últimos 20 anos. Para mim, esse é o momento em que ele se tornou autor. Através da sua experiência pessoal, ele se apropria plenamente da sua produção intelectual e ele próprio se torna um elo na sucessão de ideias e autores da linhagem a que pertence. A emancipação das figuras ancestrais – os eternos do sonho – é a condição da criação.

A produtividade desse conceito foi tanta que ele se tornou o trampolim para uma série de outros importantes trabalhos, todos encadeados, que aprofundaram a senda da situação edipiana, espinha dorsal da obra de Ron Britton.

Michel Foucault (1969/1994) diz que faz parte da noção de autor identificar um momento forte de individuação na história das ideias. Se é certo que se pode definir um autor como alguém que alarga os limites do conhecido, temos aqui a porta de entrada para acompanhar a evolução do pensamento teórico de Ron Britton.

Ao descrever a terceira posição, diz Britton:

Uma terceira posição passa, então, a existir, a partir da qual as relações de objeto podem ser observadas. Assim, podemos também visualizar ser observado. Isso nos propicia uma capacidade de nos vermos em interação com outros e de levarmos em consideração um outro ponto de vista ao mesmo tempo que conservamos o nosso próprio, para refletirmos sobre nós mesmos enquanto somos nós mesmos. (Britton, 1989/1992, p. 73, grifo meu)

Esta noção – levar em consideração o ponto de vista de uma outra pessoa e ao mesmo tempo manter o nosso para refletirmos sobre nós mesmos enquanto somos nós mesmos – é a essência da ideia de autoria. Ser um autor é estar na terceira posição, é ter uma visão, uma opinião do que vê na sua experiência clínica e do que identifica na história dos conceitos da sua disciplina.

A partir daí, a obra do Ron "pega" e, por assim dizer, caminha por si só, expandindo, aprofundando e articulando um conjunto de temas correlatos. O artigo "defeituoso" foi dar no "Elo perdido", que foi dar no artigo sobre a situação edipiana e a posição depressiva, que foi dar nas noções de subjetividade, objetividade e espaço triangular, que foi dar no antes e depois da posição depressiva. Cada novo artigo era um novo mergulho nas situações clínicas com pacientes difíceis que propunham questões técnicas forçosamente difíceis. Esses anos 1980 e 1990 foram de grande produtividade. No Elo Perdido já estão presentes as ideias de ponto de vista da primeira pessoa (subjetivo) e da terceira pessoa (objetivo) que serão posteriormente expandidas. Numa conferência de 2004 (Subjectivity, objectivity and triangular space), a terceira versão do artigo anterior com o mesmo nome que consta do seu livro Crença e Imaginação, ele mesmo revê toda a sua trajetória da maneira mais sintética e clara possível. Todas essas noções já estão incorporadas na prática clínica de muitos analistas que foram influenciados pela obra de Ron Britton.

Leo Spitzer me ajuda aqui novamente, quando diz:

"colocar dois fenômenos dentro de uma estrutura acrescenta algo ao conhecimento a respeito da sua natureza comum. Não há demonstrabilidade matemática numa tal equação, apenas um sentimento de evidência interna; mas este sentimento, para o linguista experiente, é o fruto da observação combinada com a experiência, da precisão acrescida da imaginação. (Spitzer, 1948, p. 10)

Tomo emprestada uma expressão sua – clique interno – uma expressão tão prosaica. Esse clique interno acontece quando algumas ideias são postas em relação, quando se forma um conjunto coerente de temas, quando se dá a compreensão da evolução de um pensamento no tempo. Isso é uma síntese pessoal, a contribuição daquele autor.

A figura da Srta. A, que ajudou Ron (é até curioso dizer ajudou) a fazer todas essas descobertas, merece entrar para a galeria de pacientes ilustres da história da Psicanálise junto com Dora, Erna, Richard, o Sr Z de Kohut. Tais pacientes podem ser considerados co-autores dessas pesquisas.

 

Qual é o lugar de Ron Britton na linhagem de autores psicanalíticos?

Voltando ao artigo "Ansiedade de publicação", eu gostaria de citar o parágrafo final:

Penso que a ansiedade com respeito à afiliação pode ser prevalente na Psicanálise agora, quando se observa uma movimentação maior entre agrupamentos teóricos e escolas de pensamento. Parece haver um sentimento de incerteza quanto a se a teoria psicanalítica se desintegrará ou se reintegrará. Nessas circunstâncias, é de se esperar uma maior ansiedade de publicação e maior conflito, com consequente disfarce ou distorção dentro do texto. … estamos provavelmente em uma posição Ep(n+1), que exige paciência e requer fé – não um sistema de crenças coerente e reafirmado que funciona como um ponto de aglutinação para os fiéis, mas a fé no desenvolvimento das ideias psicanalíticas. (Britton, 2003a, p. 290)

 

Ron Britton é um autor pós-escolas?

Dada a gama de autores pelos quais transita e com quem dialoga, até poderia ser considerado um autor pós-escolas. Mas, não, definitivamente ele não é um autor pós-escolas. É um autor aberto para outros autores de outras escolas de pensamento, mas profundamente enraizado e identificado com a tradição kleiniana de Londres.

O próprio Ron reflete sobre sua trajetória e sua inserção na cena psicanalítica nos prefácios dos seus dois livros. No prefácio de Crença e Imaginação, ele diz:

O pano de fundo da teoria psicanalítica sobre o qual escrevo é principalmente aquele de Freud, Klein, Bion e do grupo de analistas de Londres conhecidos agora de modo geral como pós-kleinianos. (Britton, 2003a, p.15)

Seu segundo livro (Sex, Death and The Superego) é uma reavaliação das teorias psicanalíticas à luz da experiência clínica – o que ele pensa agora a respeito de alguns conceitos analíticos historicamente importantes. Faz seu próprio retorno a Freud, com liberdade e conhecimento. Está firmemente implantado num solo kleiniano, mas liberto do cânone kleiniano.

No prefácio desse livro, diz que não tem pretensão de ser abrangente ou de comentar outros autores de outras escolas psicanalíticas.

Isto não é porque eu os desconheça ou porque eu duvide do seu valor … mas se eu tentar abordar tudo isso eu me afasto do caminho dos meus próprios pensamentos e perco qualquer clareza que eu pudesse alcançar. Assim, deixo que outros façam essas conexões. (Britton, 2003b, p. xi)

Qual foi o seu "enfrentamento edipiano" e que forma assumiu?

Qual a sua posição dentro da fratria?

Ron tem sido considerado, juntamente com John Steiner e Michael Feldman, como os autores mais destacados da terceira geração pós-Klein. Estamos num momento histórico diferente daquele da implantação de um pensamento teórico, situação vivida por Melanie Klein e seus colaboradores, em que há uma premência de adesão. Embora não estejamos mais num momento de paradigmas fortes, a questão edipiana não se dilui, ela se coloca de um jeito diferente e talvez mais difícil de ser identificada.

Ron se diferencia não pela oposição, mas pela combinação de influências em função da sua experiência clínica. Ele está dentro de uma escola, mas se dá o direito de fazer arranjos novos. Ele não é contra ninguém, não forma uma linha de oposição. Em vez disso, estabelece distinções, incorpora, desenvolve, transforma.

Eu escolhi este veio particular da sua obra, mas ela se desdobra em muitos outros temas: fantasia, crenças, o lugar da imaginação. Mas, mesmo esses outros assuntos não estão fora da mesma temática fundamental que é a espinha dorsal do seu trabalho. Tudo começa no "outro quarto", aquele lugar do qual estamos eternamente excluídos e ao qual só se chega através da imaginação. Lá onde está o casal, lá onde ocorre continuamente a cena primária, onde tem início nossa luta de nos tornarmos autores de nós mesmos, desde que sejamos capazes de reconhecer a criação dos pais e, ao mesmo tempo, não ficarmos por ela subjugados, filhos eternos.

Após essa emancipação da transferência vertical em relação às figuras parentais, a conquista de uma autonomia de pensamento leva Ron a relações de horizontalidade que ele preza muito. Há inúmeras referências ao longo dos seus artigos ao convívio com os pares, tanto no sentido de inspiração quanto de trocas. Nesse grupo de pertinência ele se percebe semelhante e diferente.

Ron coloca uma grande ênfase na experiência como a verdadeira fonte do seu pensamento. Ele se refere com muita pertinência à autoridade da experiência (não mais a autoridade dos ancestrais), o longo caminho que o analista precisa percorrer para poder confiar no seu próprio julgamento. Até esse ponto, nas suas palavras "recorre-se à autoridade do professor/manual". (Britton, 2003b, p. x) Diz ele:

Quando eu encontro uma conjunção entre a compreensão alcançada em uma esfera [livros, professores, colegas] e a compreensão alcançada numa outra [nossa própria experiência clínica], isso desperta em mim, não só uma sensação de excitação, como também uma premência para contar para os outros. Suspeito que há aí um desejo básico de corroboração da crença e um desejo inato de compartilhar crenças com outros que nos liga em agrupamentos de um ou outro tipo. (Britton, 1994/2003a, p. 15)

Essa excitação e essa urgência de comunicação são expressões do seu sentimento de pertencer a um grupo que ele reconhece como significativo e intelectualmente vivo. É também o reconhecimento de pertencer a uma fratria que lhe proporciona uma experiência de reflexão coletiva, onde a problematização pode ir mais longe.

Vou agora apresentar parte do material clínico a que me referi como tendo me servido de apoio na construção do meu argumento. Ele me parece ser uma boa ilustração das ideias de Britton sobre a falta de uma terceira posição e os acontecimentos dramáticos relativos ao espaço triangular. É a história de um não autor.

 

Não tendo uma voz ou uma assinatura próprias

O paciente que eu quero apresentar ilustra a impossibilidade de emancipação psíquica. H é um homem de 53 anos, alto, bem vestido, que poderia ser bonito, não fosse por uma expressão meio simplória. Tímido, inseguro, tropeça nas palavras, sai da sessão meio curvado e andando na ponta dos pés, como se se esgueirasse.

Sua vida escolar foi um fracasso absoluto, tinha muita dificuldade em aprender e aos 15 anos abandonou a escola e foi trabalhar com o pai. Posteriormente conseguiu até ter diploma universitário, mas por meios ilegais.

Tem um pensamento muito concreto e uma grande pobreza de imaginação, exceto na sua vida onírica. Uma paranóia muito estruturada se expressa através de muitos segredos, muitas regras e crenças supersticiosas, muitos grupos inimigos. Tudo é perigoso, isso o engessa e o mantém aprisionado num funcionamento medíocre.

Foi sempre um apaixonado pelo pai, nunca se afastou dele e durante muitos anos na análise só falava dele, um homem carismático e caloroso, mas que, no seu entender, depois o traiu. A mãe sempre foi uma figura apática e inexpressiva. É impossível para ele ser filho de um pai e de uma mãe simultaneamente. E, assim, nunca conseguiu alcançar a terceira posição.

Ele tem uma fantasia/crença de que o pai contratou um médico para fazer um aborto na mãe, numa gravidez antes da dele. E tece suas teorias em cima disso – que não teria nascido se não fosse por esse aborto – outro já teria ocupado o seu lugar. Este é um tema e suas variações: nunca teve um lugar próprio.

Sua análise anterior foi com um analista que analisava a ele e ao pai ao mesmo tempo. Quando tem alguma discussão com o pai, este lhe diz: "eu sempre te dei tudo, eu te dei análise, do que você está se queixando?".

De fato, de certo modo, o pai pagava a sua análise. Os cheques que eu recebia eram assinados pelo pai. Mas era um esquema muito complexo que eu não entendia direito: o dinheiro saía pelo caixa dois da empresa, havia uma contabilidade muito obscura.

Resistiu muito a alterar essa situação, por mais que eu procurasse tratar dela. Nem alcançava o que eu pudesse estar querendo dizer; afinal dinheiro é dinheiro e ele me pagava bem e pontualmente. Há aproximadamente um ano passou a me pagar com um cheque seu – isto quer dizer que pagava do seu bolso e não com dinheiro da empresa. Este foi um momento memorável na sua análise, um verdadeiro turning point. Passou a preencher o cheque em meu nome e a assinar com o seu. Eu sentia que era uma carta muito pessoal que ele me escrevia todos os meses. Até então ele não entendia que diferença podia fazer quem pagasse e se podia sair de graça para ele, tanto melhor. Este fato foi para mim uma pequenina autoria da sua parte – assinar em baixo com o seu nome.

Este fato me deixou cheia de esperança. Sua decepção com o pai foi se acentuando por conta de atitudes contraditórias e um tanto psicopáticas deste, na gestão dos negócios e nas expectativas que gerava em meu paciente no sentido de vir a sucedê-lo na direção da empresa. Começou a perceber que o pai não vai durar para sempre. Paralelamente a isso foi se indagando mais profundamente sobre a sua real condição mental – se é ou não deficiente. Essa dúvida é muito cruel e ele, por vezes, chega perto de admitir que sim, que é deficiente e, por isso, sendo deficiente, não pode sair de perto do pai, não teria condições de sobreviver sozinho. Esta é uma situação dificílima e parece o paradoxo do mentiroso – se ele for capaz de admitir que é incapaz, então, ele tem alguma capacidade.

E é nesse ponto que estamos no momento. Gostaria de apresentar um sonho seu desse período, de julho, a meu ver um sonho de excepcional acuidade.

Sonho: A cena se passa num país árabe. Tinha um brasileiro, um astronauta-cientista, muito bem recompensado, porque foi para a lua, ele mora nesse país. Tinha um lago, esse cara tem um barco grande, precisamos remover uma vaca de um canto onde ela está, porque o pasto ali está contaminado. Vamos com o barco dele. Penso: "puxa! Por que ele está fazendo isso só por uma vaca?" Temos que pegar a vaca, carregar e por no barco. E o que ela vai pensar? Será que ela vai entender que é para o bem dela? Fazemos isso. Eu carrego um ovo na mão. Olho para o pasto e o capim começa a ficar preto, por causa de radioatividade, era um capim venenoso. Aí vamos para um outro campo.

Eu fiquei muito tocada pelo sonho. Fomos conversando sobre ele, associando, trabalhando em íntima colaboração por um bom tempo. Sua maior surpresa era por que esse homem tão importante se ocupa de uma coisa tão menor, ele que é tão famoso. Eu falo em compaixão por parte do cientista e digo que a vaca atolada é a parte sua que se sente tão incapaz de se mover, num campo envenenado pelas mentiras, documentos sumidos, manobras, e que precisa ser ajudada a sair desse estado.

Ele concorda: "o pasto é a situação em que eu estou agora, sempre esperando que alguém me tire daqui. Um animal se vira muito bem em condições normais, mas não excepcionais." Pensa que a vaca também faz pensar na sua mãe, tão quieta e parada. Diz que na Índia a vaca é um animal sagrado.

Eu digo que o cientista é alguém que ele vê como um modelo, um ideal: muito inteligente, muito corajoso, alguém que foi muito longe, até a lua, realizado profissionalmente e afetivamente (é casado), um homem completo. Diz ele: é, é como um super homem.

País árabe tem a ver com a origem do pai. Ele diz que o cientista é o contrário do pai dele e que ele agora está enxergando as coisas que o pai faz, mas é como se ele não devesse falar sobre o que está vendo. "Como eu posso pensar isso do meu pai?"

Digo-lhe que para ele, criticar o pai é a mesma coisa que matá-lo.

Ele, muito angustiado, diz: "Se eu pudesse não vê-lo mais … Meu pai realmente me derrubou".

A conversa corria o risco de se perder em conversa e eu digo que este é um sonho muito inteligente, de muita clareza sobre um desastre nuclear que aconteceu em sua vida. Desde muito pequeno ele se sente frágil, amedrontado, encalhado num lugar de onde não consegue sair.

Angustiado: "ou eu mudo ou …" e não consegue completar a frase. Eu pergunto: "o que você achou dessa palavra que eu usei – inteligente".

Ele não parece compreender: "Como assim?"

Eu: "Teu sonho é como um exame de imagem de como você é por dentro: um ultrasom, uma ressonância, um raio X, uma fotografia de uma cena dentro de você".

Não me respondeu. Aparentemente é como se não tivesse havido ressonância, mas … será mesmo? Penso que nesse momento eu tenha ficado ansiosa sentindo que o contato estava se perdendo e por isso eu pus tanta ênfase e usei tantos sinônimos para os exames. Ele deve ter ficado encurralado e com medo, paralisado diante da minha intensidade.

Mas depois, curiosamente, disse que a análise era o barco. Eu disse que nós dois estivemos fazendo pesquisa intensamente ali durante esta sessão e que ele esperava que este barco o levasse a algum lugar melhor.

Continuamos a tratar do sonho nas sessões que se sucederam. Nunca abordamos direito o detalhe do ovo. Seria algo que nunca pôde nascer? Algo que foi abortado pelo pai e pelo médico? Médicos/analistas podem praticar atrocidades? Foi um tempo de questionamentos angustiosos sobre o trabalho e foi ficando mais claro que nunca a situação dramática de paralisia, o atoleiro insuportável em que se encontra: o pai não acredita na capacidade dele, o consultor de empresas não acredita, eu mesma por vezes não acredito. Está se avolumando um conjunto de evidências nesse sentido.

Tem um impedimento grave em relação ao conhecimento. Ele não se atreve a fazer uma real pesquisa de mim como objeto, de me examinar. Nem do pai, pela culpa e pelo temor de matá-lo, nem da mãe que é uma vaca sagrada intocável.

E agora, o pai com 86 anos, desinteressado de tudo, só quer receber o seu dinheiro, não faz nenhum movimento de passar a direção da empresa ao meu paciente e este se vê diante da encruzilhada de o que vai fazer de sua vida: não aguenta mais trabalhar com o pai, se sente muito maltratado, desqualificado e não reconhecido e, ao mesmo tempo, fica apavorado de sair para o mundo. Nunca trabalhou em nenhum outro lugar, não sabe fazer nada, não tem nenhuma iniciativa. Ele não é tão louco quanto a paciente do Ron, Miss A, de seu artigo Nomear e Conter, mas é uma variante da mesma condição.

Que cenário se abre diante dele? Ficar sem o trabalho que faz há quase 40 anos? O que vai ser dele? O que vai fazer? Como vai sobreviver? Não sabe trabalhar em nenhum outro lugar. Tem medo de, ao se livrar do pai, perder a mulher que não quereria mais viver com ele.

Construir a saída é um processo. Se ele fosse uma pessoa com um nível maior de inteligência, ele teria que se haver com o pai que tem. Neste momento ele está diante dessa situação dolorosa, impossível: o medo de se reconhecer como incapaz.

O rebaixamento intelectual promove a paranóia, porque a pessoa não percebe o conjunto da sua experiência, a totalidade da situação, não identifica de onde vem o perigo. Então, ele vem de toda parte. E uma coisa remete à outra: sua paranóia é uma grande estrutura defensiva cuja principal função é impedir que ele se admita como deficiente. Nesta circularidade, neste seu aprisionamento, um ponto importante é quanto o pai é um psicopata, mau caráter, perigoso, e quanto tudo é aumentado por sua baixa inteligência e incapacidade.

Há um tema em sua análise: a hora H. Tem essa expressão em português – hora H é a hora de agir. Ele mesmo chamou a atenção para o fato de que H é a inicial do seu nome. E quando chega a hora H, ele se encolhe e fica quieto. Estamos numa hora H.

Com o passar do tempo, começou a dizer que pensar demais faz mal e que não consegue fazer as duas coisas ao mesmo tempo: pensar e agir – ou pensa ou age. E ficar na análise é só pensar. Ele é fóbico de pensar, não sabe verdadeiramente o que é essa coisa de pensar. E é justamente o que ele mais precisa.

Senti um grande desânimo e descrença. Ter um objeto interno não confiável é estar condenado a uma eterna e extremada solidão. Para que ele se desenvolvesse satisfatoriamente eu teria que me tornar um objeto pensante internalizado, e não apenas um objeto que lhe presta serviços.

Encerro minha intervenção retomando uma vez mais a frase de Goethe, tornada inesquecível por Freud e que, espero, faça pleno sentido aqui: "O que herdaste de teus pais, conquista-o para fazê-lo teu" (Freud, 1913/1953, p. 158). Ron Britton faz jus a essa ideia. Espero ter oferecido o exame de uma situação clínica que ilustra a concepção de Britton sobre o espaço triangular e a terceira posição, além do objetivo principal de oferecer um percurso que, a meu ver, levou-o a se tornar um verdadeiro autor psicanalítico.

 

Referências

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Pamuk, O. (2010). Outras Cores. São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

Spitzer, L. (1948). Linguistics and literary history. In L. Spitzer, Linguistics and literary history. Princeton: Princeton University Press.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Liana Pinto Chaves
Rua José de Freitas Guimarães, 304 – Pacaembu
01237-010 São Paulo, SP
Tel: 11 3871-5458
E-mail: lianapchaves@gmail.com

Recebido em: 13/05/2012
Aceito em: 6/6/2012

 

 

1 Palestra proferida no simpósio Ron Britton Today, em homenagem aos 80 anos do autor, realizado de 9 a 11 de dezembro de 2011, no University College, Londres.
2 Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP.