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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.45 no.82 São Paulo jun. 2012

 

REFLEXÕES SOBRE O TEMA

 

A autoria de Sabina Spielrein1

 

Sabina Spielrein's authorship

 

La autoría de Sabina Spielrein

 

 

Renata Udler Cromberg2

Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A autoria de Sabina Spielrein ficou esquecida e recalcada por quase sessenta anos. No entanto, ela revela seu pioneirismo e sua importância como clínica inovadora, escritora e criadora de conceitos inéditos no campo psicanalítico, no período de 1910 a 1931. Seus ensaios iniciais, de 1910 e 1912, que apresentam a análise da fala esquizofrênica e introduzem o conceito de pulsão de morte, além de seus ensaios sobre a origem da linguagem infantil e da formação de símbolos na criança têm uma grande importância na atualidade.

Palavras-chave: Pulsão de morte, Pulsão sexual, Angústia, Simbolização, História da psicanálise.


ABSTRACT

The authorship of Sabina Spielrein was forgotten and repressed for almost sixty years. However, it reveals her pioneering and importance as a innovative, creative writer and clinician of unpublished concepts in the psychoanalytic field during the period of 1910 to 1931. Her initial essays, dated from 1910 and 1912, which present the analysis of schizophrenic speech and introduce the concept of death instinct, by addition to her essays on the origin of child language and the formation of symbols in children, have a great significance in present times.

Keywords: Death drive, Sexual drive, Anguish, Symbolization, History of psychoanalysis.


RESUMEN

La autoría de Sabina Spielrein quedó olvidada y reprimida durante casi sesenta años. Sin embargo, su obra revela su pionerismo e importancia como clínica innovadora, escritora y creadora de conceptos inéditos en el campo psicoanalítico, durante el período 1910 a 1931. Sus ensayos iniciales, de 1910 y 1912, que presentan el análisis del discurso esquizofrénico e introducen el concepto de pulsión de muerte, más allá de sus ensayos sobre el origen del lenguaje infantil y la formación de símbolos en el niño, son de gran significado en la actualidad.

Palabras clave: Pulsión de muerte, Pulsión sexual, Angustia, Simbolización, Historia del psicoanálisis.


 

 

Neste artigo pretendo examinar a constituição da autoria de Sabina Spielrein, autoria esquecida e recalcada junto com o reconhecimento dela como pioneira da psicanálise por quase sessenta anos. Desde o início do século XXI, Sabina tem aparecido em algumas obras culturais, filmes,3 peças teatrais e musicais, que ressaltam a sua importância enquanto primeira paciente de psicanálise de Carl Gustav Jung e como sua amante logo depois de seu tratamento, bem como o papel que teve na ruptura entre Freud e Jung. Sua importância como clínica inovadora, escritora e criadora de conceitos inéditos no campo psicanalítico é ignorada ou quando não o é, é apenas mencionada como curiosidade histórica póstuma. No entanto, a riqueza de seu pensamento teórico e clínico, a sua participação no movimento psicanalítico instituinte como uma novidade radical na psiquiatria, sua participação inovadora no estudo do desenvolvimento da linguagem infantil e da formação do símbolo, assim como nas práticas psicanalíticas e educacionais com crianças justificaram, para mim, um aprofundamento reflexivo em seu pensamento que tem uma grande atualidade. Sua obra completa em alemão, composta de 30 artigos, foi publicada apenas em 2002. A partir deste ano, ela está sendo publicada na íntegra em três volumes organizados por mim, com tradução direta do alemão por Renata Mundt e editados por Aluizio Leite, comentados a partir das reflexões que resultaram em minha tese de doutoramento. Será a primeira publicação de sua obra completa em língua não germânica até o momento. A redescoberta da sua autoria compõe um momento da minha própria autoria.

Os trabalhos de Spielrein puderam ser conhecidos através de Aldo Carotenuto, analista junguiano, que em outubro de 1977 publicou as suas cartas a Jung e Freud e os diários, documentos que tinham permanecido em uma caixa desde 1923 nos porões da Biblioteca do Instituto de Psicologia da Universidade de Genebra. Nela estavam: a correspondência entre Sabina Spielrein e Jung, 46 cartas de Jung e 12 cartas de Sabina; a correspondência entre Sabina Spielrein e Freud, 21 cartas de Freud e 2 de Sabina; o diário de Sabina Spielrein de 1909 a 1912; além de cartas de Bleuler, Rank, Stekel e pessoas menos conhecidas. Todo esse material era completamente desconhecido. A edição parcial dos documentos, já que as cartas de Freud tiveram a permissão para serem publicadas em 1981 e as de Jung só recentemente (2002), e as reflexões de Carotenuto resultaram no livro Diário de uma secreta simetria (Carotenuto, 1984), o qual foi o marco inicial das pesquisas sobre Sabina Spielrein. Esses documentos transformaram-se em um achado arqueológico.

Eles produziram um primeiro efeito de surpresa e fascínio pelo que havia de "picante" nessa história de um psicanalista, Jung, que corresponde à paixão de sua analisanda, Sabina, e vive com ela "poesie" (metáfora utilizada por Sabina Spielrein para significar a relação sexual amorosa com Jung), uma relação com todos os seus inerentes tumultos. No entanto, ainda que a verdade disso tenha sido esmiuçada, analisada, contestada, confirmada etc., desde então, ainda que isso tenha tido o primeiro efeito positivo de recuperação de uma memória afetiva fundamental, esse efeito de fofoca vem produzindo uma nova operação de velamento resultando que a sua obra escrita seja ignorada.

A obra de Sabina Spielrein é constituída de 30 artigos publicados. Ao menos seis artigos se destacam como pioneiros: em 1911, Sobre o conteúdo psicológico de um caso de esquizofrenia, a primeira tese universitária sobre psicanálise e a primeira a usar o termo esquizofrenia, cunhado por Bleuler, e sequer publicado ainda por ele. Em 1912, a publicação de A destruição como causa do devir, texto visionário, onde postula pela primeira vez, na mesma época que seu colega Stekel, o conceito de pulsão de morte, que Freud formularia à sua maneira nove anos depois. Em 1912, publica também Contribuições para o conhecimento da psique infantil que foi o segundo artigo sobre a psique infantil, depois da publicação de Freud sobre o pequeno Hans e depois da publicação de Conflitos da alma infantil de Jung. Em 1920, apresenta um trabalho absolutamente pioneiro A origem das palavras infantis mamãe e papai – sobre o problema da origem e desenvolvimento da linguagem. Continua suas importantes reflexões num texto de 1923, Algumas analogias entre o pensamento da criança, o do afásico e o pensamento subconsciente. Através de Sabina Spielrein, deu-se a conhecer as origens psicanalíticas do pensamento de Jean Piaget. Em 1923, publica um artigo sobre o tempo, O tempo na vida psíquica subliminar. Apesar de existir apenas um texto da época russa, sabemos de todo o seu pioneirismo em relação à psicanálise russa, sobretudo à psicanálise com crianças. Em relação à formação psicanalítica e sua difusão, teve um papel proeminente seja como docente da universidade de Moscou onde era chefe do Departamento de Pedologia, seja em sua participação de uma experiência insólita de um primeiro Jardim de Infância psicanalítico. Foi uma das fundadoras da Sociedade Psicanalítica de Moscou tendo sido uma das primeiras analistas didatas.

 

A vida de Sabina Spielrein

Rostov sobre o Don, cidade onde Sabina Nikolajevna Spielrein nasceu em 1885, e onde morreu provavelmente em 1942, fica na Rússia, às margens do Mar Negro. O pai, Nikolai Arkadjevitch Spielrein, era um entomólogo e comerciante de grãos além de proprietário de terras, que administrava sua própria frota mercante e viajava muito. A mãe, Eva Marcona Lujublinskaya, era uma dona de casa que havia recebido instrução universitária como dentista, uma das primeiras mulheres russas a fazê-lo; exerceu a profissão até 1903, interrompendo a atividade para cuidar de seus filhos. O avô e o bisavô maternos eram rabinos muito estimados na família e na comunidade Jekaterinstadt, onde exerciam o sacerdócio. Sabina era a filha mais velha, seguida de três irmãos, Isaak, Jean e Emil e de uma irmã mais nova, Emilia, que morreu de tifo aos seis anos de idade, em 1901, quando Sabina tinha quinze anos. Isaak e Jean se tornam eminentes cientistas em suas especialidades, um, psicólogo inventor dos testes psicotécnicos, o outro, físico-engenheiro. Os pais deram a seus filhos uma ampla educação com a qual chegaram a dominar vários idiomas: latim, inglês, francês, alemão, polonês e russo. Um valor especial era conferido à educação das crianças que tinham, além de uma babá, um tutor privado que as preparava para o Ginásio, e um professor de música. Por isso Sabina tocava piano muito bem e estudou composição. Aos cinco anos, os pais a enviaram a Varsóvia e internaram em um colégio que tinha um plano piloto baseado no jogo como motor principal para o desenvolvimento de atitudes naturais nas crianças. Aos onze, já estava no ginásio de Rostov e terminou o bacharelado no ginásio feminino de sua cidade, em 1904, com a honra mais alta, uma medalha de ouro pelo primeiro lugar. Ela queria estudar medicina. Seu avô rabino lhe deu a bênção para ser doutora, mas na Rússia, como judia e mulher, ela não conseguiria achar lugar para estudar. Não pensava em se casar, então foi mandada a Varsóvia para ficar com a família polonesa. Aos dezoito anos, não sabia que direção dar a si e à sua vida. Então cai num grave estado psicológico. Ao voltar para casa, a situação da família com a jovem se tornou intolerável e decidiu-se buscar ajuda no exterior.

Sabina, acompanhada pela mãe e seu tio materno Lublinsky, foi internada para tratamento no Instituto Burghölzli, em Zurique, em 17 de agosto de 1904, às 22.30 horas, aos 19 anos. Ela não estava louca, insistia em dizer: não podia suportar pessoas ou barulhos. No entanto, ria e chorava numa estranha mistura, girava a cabeça, pondo a língua para fora, sacudia as pernas e se queixava de dor de cabeça. O Instituto Burghölzli era dirigido por Eugene Bleuler. Ela foi indicada, por este, para tratamento com Jung, um jovem médico, dez anos mais velho que ela, vindo da alta sociedade da Basileia. Jung a tratou por dez meses, de agosto de 1904 a junho de 1905. Depois de se tratar, assumiu seu desejo inicial de entrar na faculdade de Medicina, o que fez em 1905, contando para isso com a indicação de Bleuler. A Universidade de Zurique foi uma das primeiras da Europa a legalizar o estudo para mulheres. Em 1906, tornou-se um misto de paciente e amiga de Jung e, em 1908, sua amante até 1909/10, quando escreveu a Freud pedindo que interferisse em todo imbróglio com Jung. Este informara Freud sobre esse caso, de 1905 a 1909, sem revelar o nome de Sabina Spielrein.

Ela finalizou a faculdade com uma dissertação que é publicada em 1911 – O conteúdo psicológico de um caso de esquizofrenia (dementia praecox) com a ajuda e incentivo de Bleuler e de Jung. A tese foi publicada naquele mesmo ano no Jahrbuch (Anuário de investigações psicanalíticas e psicopatológicas). Bleuler a convidou para trabalhar como sua assistente em Burghölzli. Viajou nesse mesmo ano para Viena, após a abrupta interrupção de sua relação com Jung, onde se encontrou com Freud e participou das reuniões da Sociedade Psicanalítica de Viena. Em outubro, foi aceita como membro da Sociedade e em novembro de 1911, como segunda psicanalista a ser admitida no círculo freudiano, apresentou em uma reunião da Sociedade Psicanalítica de Viena o seu texto A destruição como causa do devir, que publicou em 1912. Nesse ano, retornou à sua cidade natal e se casou com Pawl Naumowitsch Scheftel, um judeu aristocrático quase vinte anos mais velho. O casal foi morar em Berlim, em 1913, quando ela deu à luz sua filha Irma Renata. Ao deixar Viena, em direção a Munique, Freud pediu a ela que seus trabalhos fossem publicados com exclusividade nas revistas da Associação Psicanalítica. Entre 1912 e 1920, publicou Contribuições ao conhecimento da psique infantil, onde aparecem análises de seu próprio mundo fantasmático infantil, pequenos artigos sobre o sentimento de vergonha nas crianças, o complexo de Édipo na infância, o tempo na vida psíquica subliminar, a simbologia animal e as fobias das crianças etc. Teve uma carreira bem sucedida como psicanalista, sobretudo de crianças.

Entre 1913 e 1918, no entanto, praticou cirurgia médica para sobreviver, pois decidira estudar composição musical e dar aulas de música, pretendendo mudar de carreira profissional. Seu marido fora convocado como médico, na frente de guerra da Rússia e ela ficou sozinha com a filha vagando pela Europa, fugindo da guerra e do antissemitismo. Depois da guerra, convocada por Freud, em 1919, fundou, em Lausane o grupo de estudos psicanalíticos "Círculo Interno" e voltou novamente para a psicanálise. Juntou-se a Piaget e Claparède em Genebra, por volta de 1920. Eduard Claparède, que havia fundado em 1912 o Instituto de Psicologia Experimental e de Investigação do Desenvolvimento Infantil Jean Jacques Rousseau, convidou-a a dar um curso e ser sua assistente. Assim, a psicanálise, apesar de já ser um interesse do diretor, foi introduzida nesse Instituto através dela. Também Jean Piaget em 1920, aos 23 anos, havia sido convidado a participar do Instituto Rousseau ao mesmo tempo em que fora aceito pela Sociedade Suíça de Psicanálise. E em 1921, todos os dias durante oito meses, com exceção dos domingos, às oito horas da manhã ele tinha sua sessão de análise com Sabina Spielrein. Em 1920, ela compareceu ao VI Congresso Internacional de Psicanálise de Haia, onde apresentou um texto sobre o desenvolvimento da linguagem nas crianças, que publicou, em 1922, A gênese das palavras infantis Mamãe e Papai, que Piaget citou antes do mesmo ser publicado. Em 1922, Piaget apresentou no VII Congresso Internacional de Berlim O pensamento simbólico e o pensamento da criança, texto princeps de seu primeiro livro Linguagem e pensamento da criança, de 1923, no qual se refere às ideias de Spielrein. Nesse congresso, o segundo e último que frequentou, ela apresentou um trabalho sobre o tempo. Jean Piaget e Sabina Spielrein desenvolveram um trabalho conjunto sobre as origens do pensamento e da linguagem com muitas convergências, embora tenham seguido mais tarde objetivos diferentes, se engajaram em uma elaboração conjunta de uma teoria da simbolização que nunca foi escrita. A sociedade psicanalítica local, sob a direção de Claparède, chamava-se Grupo Psicanalítico de Genebra e se encontrava informalmente no laboratório de psicologia de Claparède. Estava aberta a todos que a procurassem e nunca se fez qualquer tentativa de vê-la aceita pela Associação Psicanalítica Internacional. Mas dentro dessa sociedade informal, havia um grupo que pertencia à Sociedade Suíça de Psicanálise, filiada à IPA, fundada em março de 1919. Ele incluía alguns dos principais luminares do Instituto, Raymond de Saussure, filho do famoso linguista, Gustav Bally, linguista suíço, e Jean Piaget, o novato promissor que desejava enquanto grupo de Genebra, se tornar parte da IPA. Spielrein agregou-se a esse grupo. Parece que a estada de Spielrein contava com o financiamento de um fundo administrado pelo comitê secreto que visava mesmo que o grupo local pertencesse à Sociedade Psicanalítica Suíça.

Em 1923, Sabina partiu de Berlim, aos 39 anos – onde morara, porque Freud havia insistido e Abraham a convencido de que, apesar da intensa vida intelectual e acadêmica desenvolvida em Genebra, ela era necessária em Berlim – despedindo-se de Karl Abraham, de Max Eitington e de seu irmão Jean. Retornou à Rússia, aparentemente por um ultimato de seu marido que queria o divórcio, caso ela não retornasse.

Sendo russa, judia e com enorme prestígio intelectual, recebeu tratamento de eminência pelas autoridades do Partido que, por meio dos assessores de ciência e cultura de Trotsky, haviam recebido a ordem de convidá-la a incorporar-se à aventura socialista. Vera Schmidt, fundadora da clínica psicanalítica para crianças, o famoso jardim da infância psicanalítico, a esperou e foi-lhe oferecida a direção desta, bem como assegurada uma cátedra na Universidade de Moscou, no Departamento de Psicologia da Criança. Em 1925, participou de um congresso ali realizado. Desde o primeiro momento, Sabina se incorpora à vida cultural de Moscou. Rapidamente se converteu em polo de atração para os psicanalistas russos com os quais chegou a formar a associação psicanalítica mais numerosa de sua época. Fundou juntamente com Dimitrievitch Ermakov e Moshe Wulff a primeira Sociedade Psicanalítica na Rússia que prosperou com a proteção de Trotsky. Foi analista didata nesse instituto. Iniciou Vigotsky nas investigações sobre o pensamento e a linguagem que depois serão continuadas por Leontiev. Influenciou Luria. Em 1924, deu à luz sua segunda filha, Eva, mesmo nome de sua mãe que havia falecido antes de sua chegada à Rússia.

Com a ascensão de Stalin, em 1926, e o ataque aos lugares psicanalíticos, a dissolução da Sociedade Psicanalítica Russa, em novembro de 1929, mês e ano do desterro de Trotsky, voltou à sua cidade natal. Em 1930, estabeleceu sua prática privada e ensinou psicanálise na Universidade de Rostow até a proibição oficial da psicanálise por Stalin, em 1936. Em 1929, acompanhou seu marido para o enterro da mãe dele, em Berlim. Ao regressar, seus passaportes ficaram nas mãos da KGB e já não puderam mais sair da URSS. Viveu na casa de sua família até ser desalojada e instalada na cobertura de uma casa. Trabalhou como médica na Oficina de Defesa da Pátria. Após a repressão stalinista, seu nome apareceu pela última vez na lista de membros da Sociedade Russa, em 1936. Os dois irmãos de Sabina e outros familiares seus sucumbiram em 1937 ao Gulag (um sistema de campos de trabalhos forçados para criminosos e presos políticos vítimas das perseguições de Stalin da URSS, à semelhança dos campos nazistas, que funcionou de 1918 a 1956).

Sabina Spielrein tornou-se professora de música, área pela qual era apaixonada, tendo sido compositora. Em 27 de julho de 1942, as tropas de Hitler ocuparam Rostov sobre o Don. Há várias versões para o fim trágico de Sabina Spielrein. A mais citada é a de que esses soldados, ao fazer uma ronda, sequestraram os judeus e os levaram a uma sinagoga onde mataram todos. Entre eles estava Sabina, então com 56 anos, e suas duas filhas, Renata, 28 anos, e Eva, 18 anos.

Roudinesco, em 1997, assim descreve a morte de Sabina:

Em 1942, comandos da morte executaram dezenas de milhares de habitantes e agruparam os judeus em colunas, para exterminá-los. Em 27 de julho de 1942, Sabina Spielrein foi massacrada com suas duas filhas na ravina de Viga da Serpente, em meio a cadáveres cobertos de sangue.
(Plon & Roudinesco, 1998, pp. 725-727).

 

A autoria de Sabina Spielrein

Primeiros diários e cartas

A) Diário escrito em russo em 1905

Este diário foi escrito em russo, aparentemente como uma forma de não compartilhar todos os seus pensamentos com Jung, com quem convivia intensamente em Burghölzli. Ambos estabeleceram fortes laços profissionais e pessoais, além de terapêuticos, durante e após sua análise. No diário registra inclusive suas reflexões sobre suas aspirações no momento de entrada na faculdade de medicina da Universidade de Zurich. Continua a descrever suas tentativas e triunfos à medida que progride em seus estudos médicos que a entusiasmam cada vez mais e cresce tanto emocional como intelectualmente à medida que sua amizade com Jung se aprofunda.

A única coisa que eu agora possuo é minha liberdade e eu defendo esta última conquistada possessão com toda minha força. Não posso suportar o menor julgamento sobre a minha personalidade, mesmo quando dado sob a forma de simples instrução, pode se transformar num atormentador sermão … e me deixa furiosa (eu não sei por que isso acontece). Eu só posso permitir tudo de Jung. (Covington & Wharton, 2003, p. 171)

B) Extratos de um diário de Sabina Spielrein de 1906-1907

Jeanne Moll, psicanalista, que foi a tradutora francesa do diário, nomeou este escrito de Spielrein de Amor, morte e transformação. Ele foi localizado em um sótão onde permaneceu por setenta e cinco anos. Nele, a jovem russa, de aproximadamente vinte dois anos, dirige-se, em alemão, de uma forma pitoresca e vigorosa a um correspondente cuja identidade é logo vislumbrada como sendo a de Jung. A apaixonada jovem de apenas 21-22 anos, afirma seu direito de pensar e amar abertamente diante de um homem que a humilha para se defender. Ele constitui uma espécie de matriz de seu texto de 1911, A destruição como causa do devir. Sabina aborda a diferença fundamental entre o homem e a mulher no que se refere ao amor. Parece que o abominável do amor está ligado à diferença sexual na relação que cada sexo tem com o amor, o que traz um desencontro ameaçador, já que o amor buscaria unicamente o encontro, inclusive das percepções em uníssono do que ele é. Por esse fragmento de um diário ficamos sabendo que Spielrein iniciou seu pensamento formulando uma teoria da transformação na qual opunha duas forças em conflito: a força da inércia e a pulsão de transformação. A pulsão sexual, uma pulsão que está lá para renovar a personalidade como um todo, é um caso parcial da pulsão de transformação. O que a impressiona como a mais alta forma de unidade que pode ser obtida é o poder de inércia e a pulsão de transformação. (Covington & Wharton, 2003, pp. 15-31).

C) Diário de 1909 a 1912

Este diário é escrito durante e após o momento de amor erótico entre Sabina Spielrein e Carl Gustav Jung, após a entrada de Sigmund Freud, solicitada por carta, por ela, como mediador na tumultuada relação entre os dois que se agravou com a tentativa desastrada e desonesta de Jung terminá-la. A "poesie" continuou por um tempo depois dessa tempestade, como demonstram os diários de Spielrein de 1909 a 1912. No diário é possível perceber o caminho de transformação sublimatória do amor a Jung na criação de seu próprio trabalho intelectual, bem como o desejo de deslocamento do amor por Jung para outro homem, ao mesmo tempo em que a relação entre os dois sofria picos de encontro e intenso amor erótico, pelo menos até 1910. (Carotenuto, 1984)

D) As cinco cartas de Sabina Spielrein a Jung entre 1911 e 1912

As cartas estão ligadas ao processo de escrita e entrega (como valor psíquico de um filho simbólico dos dois) do ensaio A destruição como causa do devir para publicação na revista dirigida por Jung, com todas as angústias de perceber que Stekel havia pensado no problema da pulsão de morte ao mesmo tempo em que ela (Carotenuto, 1984).

E) As duas cartas de Sabina a Freud de 1909

São as cartas em que pede a intervenção de Freud em todo o imbróglio com Jung, explicando detalhadamente os vários níveis de relação que teve com Jung, como paciente, como colega, como amiga e como amante. A partir destas cartas é que Freud saberá, pela revelação confirmatória de Jung, de que ela havia sido a primeira paciente de psicanálise de Jung, aquela sobre quem havia escrito como exemplo da etiologia sexual das neuroses, na primeira vez que a psicanálise foi apresentada num congresso de psiquiatria e neurologia (Carotenuto, 1984).

F) As sete cartas da correspondência intelectual com Jung de 1917-1919

Em carta de 1914, Freud pede para que Spielrein viesse se analisar com ele para livrar-se do amor a Jung e liberar seu ódio em relação a ele. Ela, porém, preferiu afastar-se da prática como psicanalista, dedicar-se à música e a cirurgia médica e corresponder-se intensa e intelectualmente com Jung de 1917 a 1919, dando a impressão de terminar sua análise com ele. Nesta correspondência quer mostrar como as ideias do amigo não são tão diferentes das de Freud e quer que eles se reconciliem. Deseja ainda fazer Jung reconhecer a originalidade do pensamento conceitual dela própria e, sobretudo, saber o que ela significou para ele. Na penúltima carta que escreve a ela, porém, ele continua falando do amor dela por ele que o fez chegar a algo que previamente tinha apenas suspeitado vagamente, "nomeadamente um poder no inconsciente que molda nosso destino, um poder que mais tarde o levou a coisas da maior importância". Somente no meio da carta diz que a relação, e não o amor dela, "teve de ser ‘sublimada' porque de outra forma poderia ter levado à ilusão e à loucura, enquanto concretização do inconsciente" (Covington & Wharton, 2003, p. 57).

Os diários e as cartas apresentam ao leitor, de uma maneira rara, as circunstâncias afetivas e pulsionais e as motivações que levaram Spielrein à escritura de seus dois primeiros ensaios.

 

Primeiros ensaios publicados

Sobre o conteúdo psicológico de um caso de esquizofrenia

Este ensaio (Spielrein, 2002b), que é fruto de sua tese de especialização em Psiquiatria, traz o relato detalhado da fala de uma paciente esquizofrênica tratada psicanaliticamente por ela, em Burghölzli, e da interpretação minuciosa de cada parte de seu discurso, na tentativa de traçar sua origem na repressão de ideias de conteúdo sexual de origem atual e infantil. Até então, a demência precoce só havia sido abordada num viés que levava em conta a psicanálise em dois escritos, um de Jung e um de Abraham. O próprio Bleuler, só publicaria seu famoso livro Manual das esquizofrenias, após o artigo de Spielrein. O ensaio é publicado no terceiro volume do Jarburch juntamente com o Caso Schreber e os Dois princípios do suceder psíquico de Freud e com a primeira parte de Transformações e símbolos da libido, de Jung, onde ele também faz considerações teóricas a partir do estudo detalhado de um caso de esquizofrenia. O que estava materializado nesta reunião de ensaios abordando as agora chamadas psicoses, esquizofrenia e paranoia, era a consolidação da progressiva implantação da psicanálise no coração da psiquiatria, que se deveu a Abraham, Bleuler, Jung e Spielrein que veio a ser conhecida como a Escola de Zurich. Esta implantação tirou a psiquiatria do niilismo terapêutico em que esta se encontrava, confinada às descrições classificatórias dos quadros clínicos que foram um passo decisivo, mas não suficiente para a abordagem clínica e terapêutica da loucura. Foi a partir da incorporação entusiasmada da psicanálise feita por Bleuler na primeira década do século XX, como diretor da clínica Burghölzli, que a psicanálise acrescentou à psiquiatria a compreensão dinâmica do paciente que, com o nome de bleulerismo, imperou até os anos 1970 no campo da psiquiatria, quando então veio a perder progressivamente a hegemonia para a visão farmacológica, biológica e organicista, que surgiu com a oportuna descoberta dos medicamentos antipsicóticos nos anos 1950 (Plon & Roudinesco, pp. 78-80).

A destruição como causa do devir

A segunda publicação, A destruição como causa do devir, de 1912 (Spielrein, 1981a), vem trazer um novo conceito, o de pulsão de destruição ou pulsão de morte. É por ele que Sabina Spielrein pode ser considerada a visionária introdutora do conceito de pulsão de morte em psicanálise. São as observações clínicas do sofrimento esquizofrênico e os problemas teóricos decorrentes da insuficiência da dualidade pulsional freudiana da época (pulsões de auto-conservação versus pulsões sexuais) para dar conta deles que levam Spielrein a formular o conceito de pulsão de destruição.

À medida que estamos pesquisando a causa movens de nosso Eu consciente e inconsciente, eu acho que Freud tem razão quando supõe o anseio pela obtenção do prazer e pela supressão do desprazer como fundamento de todas as produções psíquicas. O prazer remonta a fontes infantis. Agora, no entanto, surge a questão se toda nossa vida psíquica consiste nessa vida do ego. Não existem forças instintivas em nós que colocam nosso conteúdo psíquico em movimento sem se preocupar com o bem estar e o sofrimento do Eu? Será que as pulsões básicas conhecidas, a pulsão de autopreservação e de preservação da espécie, também significam para toda a vida psíquica aquilo que significam para a vida do Eu, ou seja, a fonte do prazer e desprazer? Eu decididamente tenho de defender a visão de que a psique do Eu, inclusive a inconsciente, é guiada por moções que se encontram ainda mais profundas e não se ocupam nem um pouco com nossas reações emocionais às demandas impostas por elas. O prazer é simplesmente a reação afirmativa do Eu a essas demandas originárias do âmago e nós podemos ter prazer diretamente a partir do desprazer e prazer pela dor, a qual, tomada em si mesma, é fortemente carregada de desprazer, pois a dor corresponde a um prejuízo do indivíduo, contra o qual o instinto de autopreservação em nós se opõe. Portanto, em nosso âmago há algo que, por mais paradoxo que isso possa soar a priori, quer esse auto prejuízo, pois, afinal, o Eu reage a ele com prazer. O desejo do auto prejuízo, o regozijo pela dor é, no entanto, completamente incompreensível se considerarmos apenas a vida do ego, a qual só quer ter prazer.4 (Spielrein, 2002b, p. 105)

Tomando o paradigma da esquizofrenia e da neurose, ela vai examinar os fenômenos da arte e do amor e da criação narcisista que renuncia à sexualidade. Para ela o artista e o amante têm sucesso onde o esquizofrênico e o neurótico fracassam; um pelo excesso de fragmentação, o outro por excesso de rigidez do eu. Este ensaio remete-nos também aos fragmentos de seu diário de 1906-1907, nomeado Amor, morte e transformação (Spielrein, 2003a). No diário, parece que a tirania do amor é ameaçadora, quando existe o desencontro da diferença sexual que é a regra; e ela postula um trabalho para que se realize um encontro não só sexual, mas amoroso, um trabalho que transforma e desenvolve o próprio ser humano. No texto de 1912, A destruição como causa do devir, a tirania do Eu é ameaçada pelo amor, o que traz angústia sexual para ambos os sexos. Spielrein considera a transformação como efeito de uma pulsão sexual ou da preservação da espécie às voltas com a destruição do antigo e com a construção do novo. Pulsão de destruição ou pulsão sexual de morte fundida à pulsão sexual de vida causando o movimento de devir. O efeito psíquico de aniquilamento das representações do Eu que a realização do ato sexual amoroso e desejado traz é tematizado por ela. O retorno fusional arcaico aparece como gerador de angústia, gerando sintomas como destino dela. A ousadia fundamental de Spielrein foi tornar a entrega amorosa sexual e o feminino, em ambos os sexos, problemas teóricos a serem pensados.

Contribuições para o conhecimento da psique infantil

Essa (Spielrein, 2002b) é a primeira contribuição sobre a psique de crianças na história psicanalítica, após o pequeno Hans de Freud e a pequena Anna de Jung, onde aparecem análises de seu próprio mundo fantasmático infantil, publicada no terceiro número do Zentralblatt, em 1912. Apenas dez anos depois apareceu a primeira comunicação de Anna Freud, que se tornou membro da Sociedade Psicanalítica de Viena em 13 de junho de 1922, apenas uma semana antes de Lou Andreas-Salomé. Sete anos depois de seu texto houve a primeira comunicação de Klein.

A sogra

Neste pequeno texto de 1913, (Spielrein, 2003b) ela apresenta a importância da maternidade e da filiação para a constituição do feminino. Aquilo que ela havia pensado sobre a fusão arcaica como sendo um processo de identificação primária com a mãe nos primórdios da vida, no ensaio anterior, de 1912, é pensado de um novo ângulo neste artigo, como a capacidade de identificação da mulher com o outro, a habilidade de viver através de outra pessoa, como parte de sua função social pela maternidade. Ela não diz que a função social da mulher é a maternidade, mas que esta só pode se tornar constitutiva da trama social de humanização pela capacidade de identificação com o outro. No entanto, ela diz que essa capacidade torna a mulher menos hábil, na vida real, para satisfazer seus próprios desejos pessoais e para criar, uma vez que, para fazê-lo, deve-se objetivar a própria experiência na de outro, de forma que possa ser assimilada de maneira impessoal, conforme o mundo de fora, para só então poder se falar em uma forma de representação que expresse a essência do trabalho de criação, e aqui ela está falando da criação artística. Para Spielrein, a maior significância social distintiva da mulher deve ser encontrada na habilidade de viver através de outra pessoa, e ela não sabe até que ponto seria desejável incorporar às mulheres aspectos do sentir masculino da mais "alta" qualidade. No seu papel materno, ela faz um uso tão grande do sentimento empático, que pode arranjar apenas uma parte de seus próprios sentimentos na sua objetivação.

Nesse sentido, podemos entender a virada que seu percurso teórico dá nos anos 1920 e a sua preocupação, pela vivência de sua própria maternidade, em observar, refletir e transmitir, de maneira sensível e detalhada, cada nuance e cada etapa dos primórdios da interação mãe-filho que, a partir da intuição, do desejo e da interpretação maternos dão surgimento às várias linguagens que compõem aquilo que é singular no processo de humanização de cada ser. Talvez por isso o filho seja uma obra e, também, a obra teórica possa ser entendida como filho, o Siegfried – personagem mítico que aparece na ópera O anel dos Nibelungos de Wagner, que ela e Jung apreciavam muito – no caso de seu texto princeps, A destruição como causa do devir. A corporeidade feminina é pensada entre o ser obra e tornar-se autora: Siegfried, conservado dentro de si como fruto de sua análise, sua criação psíquica, geradora de novas criações em seu processo singular e autônomo, pode conviver e enriquecer a vivência com sua filha recém-nascida, filha-obra.

Os ensaios sobre a origem da linguagem na criança

A importância e o pioneirismo dos três artigos de Spielrein entre 1922 e 1923, A origem das palavras infantis Papai e Mamãe – algumas observações dos diferentes estágios do desenvolvimento da linguagem, 1922 (Spielrein, 1981b), O tempo na vida subliminar da alma, 1923 e Algumas analogias entre o pensamento da criança, com o dos afásicos e com o pensamento subconsciente, 1923, (Spielrein, 2002a) traduzem-se pela colaboração que ela traz da linguística nascente para a psicanálise, fazendo surgir uma teoria sobre a origem psíquica da linguagem. A origem das palavras infantis mamãe e papai – sobre o problema da origem e desenvolvimento da linguagem, apresentado no Congresso de Psicanálise de 1920, traça uma origem positiva para a linguagem, a partir da corporeidade do encontro boca – seio, uma teoria da constituição do primeiro objeto, o seio da mãe, separado do eu, que se constitui ao lhe fazer resistência, a origem do objeto externo e as três formas de linguagem: autista, mágica e social. Sua concepção antecipa todos os conceitos de "manhês," prosódia e lalação que vem sendo utilizados nos últimos vinte anos na pesquisa de ponta sobre autismo infantil. Algumas analogias entre o pensamento da criança, o do afásico e o pensamento subconsciente reflete a pesquisa conjunta com Piaget sobre linguagem, pensamento e simbolização e reafirma uma teoria da origem das sensações, percepções, representações e ideias que relaciona afetividade, linguagem, pensamento e inteligência e coloca as imagens cinestésicas na origem do símbolo e, portanto, na base do pensamento. Em O tempo na vida psíquica subliminar, através de pesquisas metodicamente executadas seguindo as explorações de Freud da linguagem pré-consciente em A Interpretação dos sonhos, ela dedicou-se sistematicamente ao estudo do pensamento pré-consciente e infantil, tendo como base a observação da linguagem simbólica subliminar, a linguagem infantil, os resultados de estudos linguísticos e os distúrbios de fala patológicos. Ela busca a formação do conceito de tempo na criança, que só surge após o desenvolvimento do conceito de espaço e de causalidade. Essas três chamadas categorias do pensamento não são conceitos a priori, como queria Kant, mas sim a posteriori.

Sabina Spielrein, em suas pesquisas e seus escritos participa dos pensamentos sobre a aquisição da linguagem e do pensamento pela criança e acaba pondo em contato as questões sobre a emergência da linguagem e do pensamento simbólico em Freud e Piaget. O seu pioneirismo reside no desenvolvimento de uma conceituação própria que insiste na importância do fator afetivo e do mundo inconsciente na determinação da emergência e do funcionamento da linguagem e do mundo simbólico, procurando ressaltá-lo, acrescentando-o ao campo da psicologia estritamente lógica que se desenvolvia no Instituto Rousseau. Sabina Spielrein foi a primeira psicanalista, entre homens e mulheres, a articular uma tentativa de relacionar a linguagem e a teoria das pulsões. Fonagy (1970, citado por Guibault & Nobécourt, 1981, p. 377) a anuncia como tal: "Os fenômenos psico-fonemáticos foram examinados pela primeira vez de um ponto de vista analítico por Sabina Spielrein, em 1922. Ela supõe o mamar como um fato que desencadeia os ‘moe' e ‘poe' associados à nutrição e à mãe". No caminho à realidade, um sistema fonemático se interpõe, no início determinado por si mesmo.

Pequenos ensaios clínicos de exemplos de sexualidade infantil e sonhos

Nestes escritos ela responde ao pedido particular de Freud para que ela escrevesse e publicasse nas revistas de psicanálise e a uma exortação que ele faz para que os psicanalistas registrassem e publicassem exemplos que comprovassem a teoria psicanalítica da sexualidade infantil.

 

Para concluir

Sabina Spielrein é uma teórica inovadora em psicanálise e uma pioneira na análise de crianças, no uso do conceito de esquizofrenia, na escrita de uma tese sobre psicanálise em uma universidade, na formulação do componente destrutivo da pulsão e da presença de uma força além do princípio do prazer, que busca o desprazer.

A metapsicologia singular de Sabina Spielrein, baseada principalmente na teoria psicanalítica freudiana, mas fertilizada também por Bleuler, Jung e, posteriormente, por Piaget é composta de:

1. uma teoria pulsional que introduz a pulsão de morte;

2. uma teoria dinâmica da angústia e do conflito psíquico ligados à oposição Eu versus pulsão sexual e aos seus destinos na patologia, na sublimação e no amor;

3. uma teoria tópica, com três instâncias – eu, nós e eles – e quatro áreas psíquicas:

a) o pensamento consciente, dirigido, dominado pelo plano visual;

b) o pensamento subconsciente ou consciente secundário, que se expressa pela linguagem simbólica subliminar. Esta conecta os estados corporais, as experiências culturais e da espécie e o pensamento pré-consciente;

c) o pensamento pré-consciente produzido pela censura aos pensamentos que vêm da vida pulsional e ficam recalcados enquanto desejos e fantasias sexuais infantis;

d) o pensamento inconsciente formado pelo recalcado da vida pulsional. Ainda na teoria tópica há a postulação de uma cisão do eu que produz um eu consciente e um eu inconsciente, que se fixa e se conecta ao pulsional recalcado;

4. uma teoria sobre a origem psíquica da linguagem em três estágios: autista, mágico e social;

5. Uma teoria da origem das sensações, percepções, representações e ideias que relaciona afetividade, linguagem, pensamento e inteligência e coloca as imagens cinestésicas na origem do símbolo e, portanto, na base do pensamento;

6. Uma teoria da constituição do primeiro objeto, o seio da mãe, separado do eu, que se constitui ao lhe fazer resistência;

7. Uma teoria sobre a formação do conceito de tempo na criança.

Em meu trabalho de reflexão, a história de vida de Sabina Spielrein em seu percurso psíquico, emocional, profissional e social, e as condições históricas, sociais, institucionais e culturais de seu tempo, que estão envolvidas no esquecimento de sua obra e de sua importância para a psicanálise proporcionaram a moldura daquilo que pretendi destacar: a importância de sua obra teórica pioneira. Tornar-se autora, ser escritora da própria vida implica uma transformação da pulsão e das marcas erógenas: deixar de ser corpo-objeto da escrita do pai para ser escritora da própria vida. A função abstrata do pai pode aparecer, quando se pode escrever em nome próprio, assumindo a própria vida, ecoando a própria palavra internamente e para a geração seguinte, possibilitando subjetivação, diferenciação e singularização.

 

Referências

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Covington, C. & Wharton, B. (Orgs.) (2003). Sabina Spielrein, Forgotten Pioneer of Psychoanalysis. Nova York: Brunner-Routledge.         [ Links ]

Fonagy, I. (1970). Les bases pulsionelles de la phonation. In Les sons. Revue Française de Psychanalyse, 34, 101-136.         [ Links ]

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Endereço para correspondência
Renata Udler Cromberg
Rua Atlântica, 776 – Jardim América
01440-000 São Paulo, SP
Tel: 11 3816-2184
E-mail: renatauc@uol.com.br

Recebido em: 10/05/2012
Aceito em: 6/6/2012

 

 

1 Este artigo foi baseado na tese de doutoramento "O amor que ousa dizer seu nome – Sabina Spielrein, pioneira da psicanálise" para o Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia da USP, em abril de 2008 e no livro que dela se originou e que já está no prelo.
2 Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
3 Ich Hiess Sabina Spielrein. Direção: Elisabeth Márton. Jornada da Alma. Direção: Roberto Faenza. A Dangerous Method. Direção: David Cronenberg.
4 Tradução inédita de Renata Mundt, a partir de Spilrein (2002), a ser publicada em Sabina Spilrein – vida e obra de uma pioneira da psicanálise, vol. I, no prelo.