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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.45 no.82 São Paulo jun. 2012

 

REFLEXÕES SOBRE O TEMA

 

Uma aproximação da crítica literária à psicanálise na leitura de O filho eterno, de Cristóvão Tezza: relações entre leitor, narrador e personagem

 

An approximation of literary criticism and psychoanalysis in the reading of O filho eterno, by Cristóvão Tezza: relationships between reader, narrator and character

 

Una aproximación de la crítica literaria al psicoanálisis en la lectura de El hijo eterno, de Cristóvão Tezza: relaciones entre lector, narrador y personaje

 

 

Camila Lousana Pavanelli de Lorenzi1

Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este ensaio procura acercar-se da singularidade da voz narrativa de O filho eterno, romance de Cristóvão Tezza de 2007. Para isso, examinase a relação entre narrador e personagem principal, além das relações leitornarrador e leitor-personagem, com base na Teoria da Recepção e na Psicanálise. O narrador do romance encontra-se suficientemente próximo do personagem para ter conhecimento pleno de seu mundo interno; a mínima distância que os separa, porém, permite uma mirada objetiva do narrador. Essa distância e objetividade relacionam-se à ausência de uma moralidade recriminatória na obra, pois o interesse do narrador é pela história de constituição subjetiva do filho e, principalmente, do pai. Este passa por um processo de elaboração do luto de um "ideal de filho", com a inscrição em uma ordem temporal que se abre para o futuro, para o novo e para a alteridade. Ao fim da obra, a elaboração do luto produz uma mudança na relação narrador-personagem, com o deslocamento do olhar do narrador para o filho.

Palavras-chave: Cristóvão Tezza, Teoria da recepção, Narrador, Luto.


ABSTRACT

The present essay aims to approach the singularity of the narrative voice in O filho eterno, a novel by Cristóvão Tezza from 2007. With this objective in view, we examine the relationship between narrator and main character, as well as the relationships between reader-narrator and reader-character, on the basis of Reception Theory and Psychoanalysis. The narrator of the novel is close enough to the character to have full knowledge of his internal world; however, the minimal distance that separates them allows for the narrator's objective point of view. This distance and objectivity are related to the absence of an accusatory morality in the novel, as the narrator is interested on the history of subjective constitution of the son and, mostly, the father. The father mourns an "ideal son", with the inscription in a time order open to the future, to novelty and alterity. By the end of the novel, the successful working through of the mourning elicits a change in the narrator-character relationship, the narrator's focus shifting towards the son.

Keywords: Cristóvão Tezza, Reception theory, Narrator, Mourning.


RESUMEN

El presente ensayo intenta acercarse a la singularidad de la voz narrativa de El hijo eterno, novela de Cristóvão Tezza de 2007. Para tanto, se examina la relación entre el narrador y el personaje principal, además de las relaciones lector-narrador y lector-personaje, con base en la Teoría de la Recepción y el Psicoanálisis. El narrador de la novela se encuentra suficientemente próximo del personaje como para tener pleno conocimiento de su mundo interno; sin embargo, la mínima distancia que los separa permite una mirada objetiva del narrador. Esa distancia y objetividad se relacionan a la ausencia de una moralidad recriminatoria en la novela, pues el interés del narrador está en la historia de constitución subjetiva del hijo y, sobretodo, del padre. Éste vive el proceso de elaboración del duelo de un "hijo ideal", con la inscripción en un orden temporal que se abre para el futuro, para lo nuevo y la alteridad. Al final de la novela, la elaboración del duelo produce un cambio en la relación narrador-personaje, con un desplazamiento de la mirada del narrador hacia el hijo.

Palabras clave: Cristóvão Tezza, Teoría de la recepción, Narrador, Duelo.


 

 

Este ensaio procurará aproximar-se da singularidade da voz narrativa de O filho eterno, romance de Cristóvão Tezza publicado em 2007. Para isso, examinaremos fundamentalmente a relação que se estabelece entre narrador e personagem principal, além das relações leitor-narrador e leitor-personagem. Nossos referenciais teóricos básicos são a Teoria da Recepção, representada aqui por Iser em sua obra The Act of Reading (1976/1980), e a Psicanálise, particularmente os conceitos de luto e melancolia (Freud, 1917/2006) conforme trabalhados por Thomas Ogden (2005; Pavanelli, 2007).

Dado que este ensaio está fundamentado nos pressupostos básicos da Teoria da Recepção, estamos incluindo o leitor em nossa análise – pois, desde esta perspectiva crítica, a obra literária se constitui num complexo entrelaçamento da realidade do texto e da subjetividade do leitor (Iser, 1980). E, a partir do momento em que se considera o trabalho do leitor na constituição da obra literária, é necessário considerar quais elementos do texto suscitam determinadas respostas no leitor.

Considerar o trabalho do leitor não significa colocá-lo como o único determinante dos significados da obra; isso implicaria um subjetivismo do qual a Teoria da Recepção se afasta na exata medida em que rejeita o objetivismo:

tanto as teorias subjetivistas como as objetivistas tendem a distorcer ou ignorar aspectos importantes do processo de leitura … Assim, ao nos livrarmos do conceito de subjetivismo/objetivismo, podemos estabelecer um padrão de referência intersubjetivo. (Iser, 1976/1980, pp. 24-25)2

Não se trata, portanto, de conferir poderes extraordinários ao leitor: a este não é dada a possibilidade de livremente atribuir quaisquer significados ao texto. Se isso acontece, não é de leitura que estamos falando, e sim de projeção. Para haver leitura, de acordo com a conceituação de Iser, é necessário o embate do leitor com a materialidade do texto.

Para que essa reflexão sobre a teoria literária não se distancie muito de nosso objeto de estudo, vale lembrar o quanto ela é relevante para a compreensão do próprio gênero literário ao qual pertence a obra. O filho eterno foi lido, com muita frequência, sob a chave da autobiografia. E não por acaso: o personagem principal compartilha várias características com o autor da obra – dentre elas, ser pai de um menino chamado Felipe, portador de síndrome de Down. Porém, assim como Magalhães Jr. (2010), acreditamos que a obra não pode ser considerada autobiográfica, justamente pela ausência, no texto, de qualquer indicativo de que se trate de autobiografia: a mera concordância de elementos entre autor e personagem principal não basta para isso.

Lejeune (2001/2008), teórico da autobiografia, é quem nos ajuda a elucidar esta questão: segundo o autor, o elemento fundamental que caracteriza uma autobiografia enquanto tal é o pacto autobiográfico. Este consiste não em simples asserção, mas em um ato de linguagem performativo, que faz (institui) o que diz: é justamente ao anunciar que se trata de uma autobiografia que a obra se impõe como tal. E, em O filho eterno, esse pacto não é anunciado/proposto em momento algum.

Com relação à diferença entre narrador e autor, o próprio Tezza (2008) se pronuncia com muita clareza:

eles [autor e narrador] jamais são, tecnicamente e para todos os efeitos, os mesmos, até porque o autor biográfico participa do evento aberto da vida e não Uma aproximação da crítica literária à psicanálise… | Camila Lousana Pavanelli de Lorenzi

está submetido, portanto, à ideia de unidade temática e estrutural (ele não tem a dádiva de um "autor" que lhe dê sentido de fora – exceto Deus, que, momentaneamente, não nos ajuda muito); ele não é um objeto – é um sujeito; ao contrário do narrador, o autor biográfico não sabe o que vai acontecer amanhã; já o narrador é uma voz de artifício que só pode existir sob moldura, isto é, começo, meio e fim. O narrador, assim que se instala e diz o que tem a dizer, destaca-se para sempre de seu criador, o autor biográfico, e passa a viver no mundo relativamente autônomo dos textos. O narrador já não deve obrigações ao autor biográfico – ele sai do evento aberto da vida de onde ele nasceu, para o mundo paralelo do texto, o mundo sob representação. (2008, p. 2)

O autor nunca se confunde, portanto, nem com os personagens nem com o narrador da obra. Voltamos, assim, a Iser:

a obra literária tem dois polos, que podemos chamar de artístico e estético: o polo artístico é o texto do autor, e o estético é a realização empreendida pelo leitor … a obra em si não pode ser idêntica ao texto ou sua atualização, mas deve estar situada em algum ponto entre os dois. Seu caráter deve ser inevitavelmente virtual, já que não pode ser reduzido à realidade do texto ou à subjetividade do leitor, e é desta virtualidade que deriva seu dinamismo. (Iser, 1976/1980, p. 21)3

Com isso, a obra – ou, antes o "polo estético" da obra – deixa de ser propriedade intelectual exclusiva do autor. Este é responsável pelo polo artístico da obra, mas o polo estético é resultado do embate entre o texto e a "realização empreendida pelo leitor".4

Passando, então, à leitura propriamente dita de O filho eterno, acreditamos que a relação estabelecida pelo leitor com o personagem principal é bastante diferente da relação estabelecida com o narrador. Com este, o leitor pode desenvolver uma cumplicidade de quem já sabe o que está por vir, compartilhando com ele um ponto de vista fundado no futuro; com o personagem, o leitor tanto pode empatizar quanto estabelecer uma relação de amigável condescendência. Entre narrador e personagem, por sua vez, existe uma distância que, embora muito bem disfarçada pelo discurso indireto livre, não passa despercebida por uma leitura atenta.

Para deslindar essas relações, contaremos também com o apoio de outras obras ficcionais que Tezza (em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, em 2007) aponta como o tendo influenciado na escrita de O filho eterno. São elas: Uma questão pessoal, de Kenzaburo Oe (1968/1969), Nascer duas vezes, de Giuseppe Pontiggia (2000/2002) e Juventude de J. M. Coetzee (2002).Ao longo do ensaio, serão traçadas algumas considerações a respeito da voz narrativa de tais obras, sempre a fim de esclarecer algum aspecto de nosso objeto de estudo principal.

Seguem, então, algumas considerações sobre a relação do narrador com o personagem principal. O narrador do romance encontra-se suficientemente próximo do personagem para ter conhecimento pleno de seu mundo interno; a mínima distância que os separa, porém, permite uma mirada objetiva do narrador sobre esse personagem a respeito do qual tudo conhece. Partimos da hipótese de que essa distância e essa objetividade relacionam-se à ausência de uma moralidade recriminatória na obra. Não se trata de considerar o personagem (ou mesmo a voz narrativa) amoral, e sim de reconhecer que o interesse do narrador é pelo exame minucioso e honesto da história de constituição subjetiva ali narrada – subjetivação esta que se percebe no filho, mas também, e principalmente, no pai. Com efeito, o leitor nem sempre empatiza com o personagem principal, mas nunca deixa de respeitá-lo – pois, de um lado, o narrador nos revela tudo sobre ele, colocando-o em posição bastante frágil, diametralmente oposta à de alguém que tenta nos convencer de ser algo que não é; e, de outro, o distanciamento narrativo em relação ao personagem permite que ele seja visto como mais um homem no mundo, tão cheio de limitações emocionais como qualquer um de nós. Não só o narrador não julga o personagem, portanto, como não convida o leitor a julgá-lo.

Consideramos a ausência de julgamento moral sobre o personagem uma característica admirável da obra, por acreditar que contribui para a aproximação (não necessariamente empática) entre leitor e personagem principal. Isto é, o romance opta por aproximar o leitor do personagem: acreditamos que, caso a voz narrativa dispensasse a ele uma série de imprecações referentes a seus pensamentos5 (pois é de pensamentos que se trata: dificilmente se poderia acusar o personagem de uma falta ética grave em suas ações), isso provavelmente teria alienado os leitores de uma identificação maior com o personagem. Mas não se trata, tampouco, de forçar uma empatia: não se percebe na voz narrativa uma intenção de que o personagem seja "assimilado" ou amado pelos leitores, mas apenas respeitado. E respeitado por aquilo que ele é: uma pessoa em processo de luto. Não o luto de um ser vivo e concreto, mas de um "ideal de filho" que, até a descoberta da Síndrome de Down do filho, o pai nem desconfiava existir. Mas a falta de acesso de determinado objeto – no caso, o "ideal de filho" – à consciência não significa que sua perda não será sentida.

Neste ponto, será imprescindível retomar a leitura feita por Thomas Ogden (2005) do "Luto e melancolia" de Freud (1917/2006), entremeando-a de alguns comentários sobre O filho eterno quando necessário. O título do artigo por si só já transmite a principal tese do autor: "Uma nova leitura das origens da teoria das relações de objeto".6 Para Ogden, portanto, temos em "Luto e melancolia" uma espécie de "pré-história" da teoria das relações de objeto desenvolvida por Klein: a investigação de uma patologia específica – a melancolia – e do estado psíquico normal a ela correlato – o luto – é o veículo através do qual Freud começa a introduzir uma nova concepção de estrutura da mente (Ogden, 2005, p. 28).

Passando a esta investigação propriamente dita, deve-se notar primeiramente que:

o luto é, em geral, a reação à perda de uma pessoa amada, ou à perda de abstrações colocadas em seu lugar, tais como pátria, liberdade, um ideal etc. (Freud, 1917/2006, p. 103).

O próprio objeto do luto, portanto, pode ser uma abstração, isto é, não consiste necessariamente em uma pessoa real. É o caso do personagem principal de O filho eterno: o objeto perdido não é o filho real e sim um "ideal de filho". Prossigamos.

Freud sintetiza na seguinte frase o trabalho que o luto tem de realizar:

o teste de realidade mostrou que o objeto amado não mais existe, de modo que o respeito pela realidade passa a exigir a retirada de toda a libido das relações anteriormente mantidas com esse objeto. (Freud, 1917/2006, p. 104)

Dinamicamente, portanto, o trabalho do luto pode ser explicado sem grandes dificuldades: trata-se de uma operação de deslocamento da libido, motivada pela soma das satisfações narcísicas que o indivíduo deriva do fato de estar vivo (p. 114). O Eu consente em abrir mão dos laços libidinais com os mortos, em última instância, para manter-se vivo entre os vivos – no caso do personagem principal de O filho eterno, manter-se vivo para o filho real, Felipe. Para Ogden, aliás, é este o conflito central inerente à perda de um objeto: o conflito entre

o desejo de viver a vida entre os vivos – interna e externamente – e, por outro lado, o desejo de existir com os mortos em um mundo objetal interno atemporal, morto e mortificador. (Ogden, 2005, p. 42)

Mas de que modo se desfazem os laços libidinais de que nos fala Freud? Voltemos a ele:

cada uma das lembranças e expectativas que vinculavam a libido ao objeto é trazida à tona e recebe uma nova camada de carga, isto é, de sobreinvestimento. Em cada um dos vínculos vai se processando então uma paulatina dissolução da libido. (Freud, 1917/2006, pp. 104-105)

Como se verá a seguir, o romance descreve um processo que pode ser referido a essas palavras de Freud: a "dissolução da libido" (do pai para com seu "ideal de filho") ocorre a cada vez que se narram as muitas maneiras em que o filho real não corresponde ao "ideal de filho" do pai.

Paralelamente ao processo anteriormente descrito, " … a existência psíquica do objeto perdido continua a ser sustentada" (p. 105). Ao final do processo, " … o Eu se torna efetivamente livre e volta a funcionar sem inibições" (p. 105). Entendemos que esta penúltima frase, dita quase que de passagem – "a existência psíquica do objeto perdido continua a ser sustentada" – é de fundamental importância para compreendermos o processo de luto em Melanie Klein (1940/1984). Para esta autora, o luto não consiste apenas num processo de desligamento da libido – isto é, não se trata apenas de um processo "pulsional" –, mas envolve fundamentalmente a introjeção do objeto perdido no mundo objetal do enlutado. Trata-se, assim, da constituição de uma nova relação de objeto. Freud fornece as bases para esse pensamento ao dizer que a existência do objeto perdido é sustentada ao longo do processo de luto. Em suma, eis a hipótese de Ogden (2005) sobre a história do desenvolvimento das ideias na Psicanálise: aquilo que Freud não disse, e coube a Melanie Klein dizer, é que, ao término do processo, o Eu fica novamente livre e desinibido não apenas porque desligou os laços libidinais com o objeto perdido, mas principalmente porque completou o processo de introjeção desse objeto no psiquismo (Klein, 1940/1984).

Resta-nos, então, descrever com maior nitidez esse "filho ideal" cuja perda dispara no pai um processo de luto que o narrador de O filho eterno se encarrega de narrar. Trata-se de um ideal definido pelo negativo: podemos vislumbrar quem ou como seria o filho ideal do personagem ao entrar em contato com tudo aquilo que o filho real (e, por tabela, o próprio pai) não é / não pode ser. E seus (do filho e do pai) fracassos centram-se fundamentalmente sobre a impossibilidade (vivida por ambos) de situar-se no tempo.

O pai atribui as várias dificuldades cognitivas do filho justamente a essa impossibilidade. (É claro que tal impossibilidade também constitui, em si, uma dificuldade cognitiva; o personagem sabe disso. Interessa-nos, aqui, atentar para como o personagem relaciona o "presente perpétuo" do filho à totalidade da personalidade do menino). Sua lentidão no aprendizado da linguagem está intrinsecamente relacionada à sua falta de memória: Felipe não consegue lembrar-se do cartão com a palavra "laranja" que lhe foi exibido há pouco.

Mas o que se vê, ao longo do romance, é que o próprio personagem principal (o pai) encontra dificuldades tremendas em situar-se no tempo: escolhe uma profissão anacrônica (ironicamente, a relojoaria) e está, ele próprio, sem saber o que fazer de seu passado. De fato, os relatos sobre a adolescência e juventude do personagem parecem, para muitos leitores, desprovidos de sentido no contexto geral da trama. E é isso mesmo: o personagem no tempo-presente não faz uso de nada que tenha aprendido num tempo-passado. Suas experiências na Europa foram apenas isso: experiências passadas, que não resultaram em amadurecimento ou aprendizagem. Não estamos acostumados a isso, em literatura: geralmente, viagens e experiências exóticas em geral são narradas justamente por impulsionarem seus protagonistas a uma profunda transformação interna. Decididamente, não é este o caso do personagem de Tezza, que se comporta como o filho indiferente ao cartãozinho com a palavra "laranja" – sem desconfiar de que ele possa conter algum significado.

Além disso, e ainda mais significativamente, o personagem principal é incapaz de situar-se no tempo presente quando do nascimento de seu filho: o pai recusa-se a entrar no próximo instante, desejando viver eternamente no segundo anterior ao momento em que recebeu a notícia da deficiência de Felipe. Para Ogden (2005), o congelamento temporal – a impossibilidade de aceitar a passagem do tempo e a inevitabilidade da história – é uma das marcas da melancolia:

o melancólico … sobrevive em um mundo objetal interno atemporal e imortal (e, não obstante, morto e mortificador).7 (Ogden, 2005, p. 43 – grifo meu)

A recusa do pai em habitar o momento presente aponta, mais uma vez, para a dificuldade do personagem em desligar-se libidinalmente de um "ideal de filho"– pois somente a partir disso ele poderá ligar-se ao filho real que tem diante de si.

Com relação a este difícil processo de luto, é interessante comparar o processo vivido pelo personagem principal de O filho eterno com o que se passa no romance Uma questão pessoal, que trata do infanticídio. Mais do que abordar a relação de um pai com seu filho deficiente, o romance de Oe narra a relação de um pai com a ideia do infanticídio, já que o pai planeja o assassinato do filho. A fantasia do infanticídio é o tema central da obra – coisa apenas sugerida em O filho eterno, no qual o pai não planeja, mas deseja a morte do filho.

Num exemplo adicional, o pai se angustia com a "afetividade imediata" que parece ser a única possibilidade de contato entre Felipe e as outras pessoas. Mas o próprio pai está representado no romance como alguém inteiramente desprovido de relações afetivas profundas: basta dizer que, em vinte e tantos anos, nunca conversou a respeito de seus sentimentos sobre Felipe com ninguém.

No filho, portanto, o pai vê espelhado seu próprio fracasso – fato, aliás, já anunciado desde a epígrafe de Kierkegaard: "Um filho é como um espelho no qual o pai se vê, e, para o filho, o pai é por sua vez um espelho no qual ele se vê no futuro" (Tezza, 2007).

Voltemos à relação do narrador com o personagem. Aquele se limita a descrever os sentimentos e pensamentos deste último com toda a minúcia, sem caracterizá-los como mesquinhos ou qualquer outro adjetivo desqualificador. Essa recusa em qualificá-los com um sinal positivo ou negativo confere grande liberdade ao leitor: sem um julgamento prévio do narrador no qual se basear, o leitor é obrigado a atentar para a natureza mesma de tais sentimentos e pensamentos. E, com isso, pode descobri-los ou ao menos supô-los em si mesmo. A anteposição de qualificadores morais explícitos à vivência do personagem principal tenderia a aproximar o leitor, pelo contrário, do narrador – ambos em guerra, portanto, com o personagem principal. Em O filho eterno, porém, o narrador é pródigo em demonstrar compaixão pelo personagem – o que não equivale exatamente a desculpá-lo.

Passemos, então, a um caso em que o julgamento de fato está presente. Consideremos uma das obras que Tezza aponta como uma grande influência na escrita de O filho eterno: trata-se do conjunto de ensaios Nascer duas vezes, de Giuseppe Pontiggia (2002). Narrado em primeira pessoa, o livro aborda a experiência de um pai com seu filho deficiente físico. O narrador é implacável em apontar suas próprias mesquinharias, e não se isenta de condená-las; porém, ele está sempre em confronto com personagens (sobretudo homens) ainda mais desprezíveis do que ele mesmo: o diretor de escola mulherengo, o colega de trabalho arrogante, o médico obstetra simplesmente estúpido. Como as críticas são generalizadas, suaviza-se bastante o tom autodepreciativo do texto, que oscila mais obviamente entre o amargo e o cômico.

Aqui, portanto, temos um narrador que julga: como em Nascer duas vezes narrador e personagem coincidem, temos um autojulgamento, mas não apenas isso. Nada escapa ao alvo do personagem-narrador: ninguém está isento de reações ignorantes ou maldosas ao seu filho deficiente. Nesse sentido, o narrador-personagem escapa da melancolia, já que as recriminações são generalizadas. O efeito que isso produz no leitor, relativamente à sua empatia com o personagem principal, é contraditório: estabelece-se uma relação de amor e ódio com ele. Trata-se, sem dúvida, de um personagem cativante, pois suas observações mordazes sobre ele mesmo e sobre os outros são de uma perspicácia fácil de apreciar. Por outro lado, é difícil não odiá-lo quando ele narra um encontro com a amante no qual culpa-a explicitamente pela deficiência do filho – por mais que o personagem se coloque como alguém que sabe do absurdo de sua acusação. Nada mais diferente do que ocorre em cena análoga de O filho eterno:

Numa das crises, ela lhe diz, no desespero do choro alto: Eu acabei com a tua vida. E ele não respondeu, como se concordasse – a mão que estendeu aos cabelos dela consolava o sofrimento, não a verdade dos fatos. Talvez ela tenha razão, ele pensa agora no escuro da sala – é preciso não falsificar nada. Ela acabou com a minha vida – refugia-se no oco da frase, sentindo-lhe o eco, e isso lhe dá algum conforto. (Tezza, 2007, p. 42)

Trata-se de uma passagem privilegiada para pensarmos algumas das questões a que nos propomos neste ensaio. Afinal, trata-se do típico exemplo de uma situação que poderia evocar julgamento e raiva em um narrador parcial (e, a partir daí, no leitor): com que direito o insensível do personagem admite com tamanha caradura que considera a esposa responsável pelo fim da sua vida? Há uma profusão de pressupostos extremamente egoístas aí: não importa a criança, o que está em jogo é a vida do pai; a criança não é vista como uma pessoa, mas como um problema sem solução; o personagem principal coloca-se não só como vítima mas também como "sentido e finalidade última" dos fatos, que só ganham importância à medida que interferem em sua vida; o personagem isenta-se de qualquer responsabilidade sobre o filho; imputa toda essa responsabilidade à esposa (que, ademais, sempre fora seu esteio emocional e financeiro).

E, no entanto, esse julgamento não é automático: de fato, a escrita do parágrafo acima mostrou-se um exercício puramente intelectual, não motivado pela leitura do texto. O que há nele, portanto, que nos afasta de reações como as anteriormente descritas?

Há dois elementos nesse trecho que, a meu ver, estabelecem distância e proximidade do narrador com o personagem. Primeiro, a distância: ao mencionar o "oco da frase", o narrador distancia-se da convicção do personagem de que o raciocínio da mulher está correto. Mas, ao estabelecer que o oco constitui para ele um refúgio, aproxima-se do sofrimento do pai: o personagem concorda com a mulher apenas porque seu sofrimento não lhe permitia/permitiu nenhum outro pensamento além desse. Com isso, mesmo que o leitor não se reconheça inteiramente no pai de O filho eterno, isenta-se de condená-lo.

Para além desse trecho, a expressão "ele ainda não sabia que …" e suas variantes oferecem a medida justa da distância que se interpõe entre narrador e personagem. O advérbio "ainda" indica que, se o personagem não sabia de determinada coisa em determinada época, depois veio a sabê-lo: o narrador acompanha o personagem em diversos momentos temporais, não se prendendo apenas ao presente da narrativa. Esta onisciência sobre a consciência do personagem em diferentes registros temporais é reveladora de uma grande proximidade entre personagem e narrador. De fato, a voz narrativa frequentemente é passível de confusão com o próprio fluxo de consciência do personagem – ambiguidade possibilitada pelo recurso ao discurso indireto livre. Por outro lado, a própria afirmação de que o personagem não sabe algo que o narrador conhece marca irremediavelmente uma diferença entre ambos. Finalmente, o uso do verbo "saber" impede que se atribua ao personagem alguma má-fé intrínseca: simplesmente, ele "não sabia", seja por ignorância ou imaturidade/impossibilidade emocional.

Já que mencionamos o discurso indireto livre, falemos agora, brevemente, do romance que Tezza, em entrevista ao Paiol Literário, aponta como sua principal influência na escrita de O filho eterno: trata-se de Juventude, de J. M. Coetzee. O romance é dotado de um narrador absolutamente implacável com o personagem principal: temos aqui, com mais força ainda do que na obra de Tezza, a sensação clara de que o narrador funde-se à consciência do personagem. Essa fusão é tanto mais perturbadora porque o personagem é extremamente severo consigo próprio.8 Na verdade, uma das riquezas do livro é justamente a impossibilidade de se decidir de onde vem tamanha severidade e fúria condenatória: se do próprio personagem, ou se do narrador que lhe acompanha tão de perto e a cujo respeito tudo sabe.

O narrador está tão colado ao personagem que não há a menor possibilidade de uma visão mais neutra sobre ele; o julgamento moral não pode ser temperado pela distância. A proximidade entre um e outro não é temperada pela distância que permeia o texto de Tezza – que, como vimos, não propõe um pacto autobiográfico.

Analisemos, a partir de agora, a transformação da voz narrativa – ou, mais precisamente, da relação do narrador com o personagem principal – no fim do livro (estamos considerando que o livro entra em sua última parte quando Felipe se aproxima da adolescência). Pela primeira vez em toda a obra, o personagem principal – isto é, o objeto do olhar atento do narrador – passa a ser não mais o pai, e sim o filho. Não se trata, está claro, de um olhar onisciente, mas também não se pode dizer que é um olhar de pura estranheza. Ao longo de todo o livro, pai e filho permanecem personagens isolados. Nas últimas páginas, cada um se abre, à sua maneira, para o outro. Do ponto de vista do pai, o filho passa a ser, pela primeira vez, não a criança com síndrome de Down, mas Felipe: de fato, ali o leitor é exposto a muito mais informações sobre o garoto do que obtivera até então. É apenas no último capítulo, por exemplo, que ficamos sabendo dos hábitos cotidianos e das alegrias de Felipe. Somos informados de que ele, por exemplo, desenha pessoas invariavelmente felizes; que gosta do desenho animado Dexter; que não aprendeu a ler e escrever, mas é capaz de copiar algumas palavras em letras maiúsculas. O menino, por sua vez, mostra-se mais aberto e interessado pelo mundo à medida que cresce seu amor pelo futebol, que enfim ajuda-o a situar-se minimamente no tempo e em sua imprevisibilidade.

Poderíamos tentar estabelecer uma relação de causalidade aqui: teria sido o desenvolvimento cognitivo do menino (i.e. a gestação de uma incipiente noção de temporalidade) o responsável por fazer o pai abrir os olhos para ele enquanto uma pessoa que transcende a condição de portador de síndrome de Down; ou, por outro lado, teria sido justamente a elaboração do luto do "ideal de filho" por parte do pai o que possibilitou a Felipe sua inserção na temporalidade por meio do futebol e uma consequente aproximação maior entre ambos? Qualquer que seja a escolha do leitor, note-se que a inscrição na temporalidade é fundamental a ambas. Inscrição de quem? Do filho, claro, mas também do pai: veja-se o que diz o narrador a respeito do jogo de futebol que ambos começam a assistir juntos: "Nenhum dos dois tem a mínima ideia de como vai acabar, e isso é muito bom." (Tezza, 2007, p. 222 – grifo meu). O tempo cessa de ser uma repetição mortífera do mesmo para conter a possibilidade do novo:9

A noção de novidade: ao contrário do joguinho da FIFA, que ele roda no computador praticamente sem pensar, repetindo milhares de vezes os mesmos lances, uma partida real é (quase) sempre imprevisível, o que dá uma dimensão maravilhosa à ideia de "futuro", não mais apenas alguma coisa que ele já sabe o que é e que vai repetir em seguida, para todo o sempre. (Tezza, 2007, p. 219)

Mas não é o futebol por si só que ajuda Felipe nesse processo: o pai, agora, pode ajudá-lo:

O menino sente muita dificuldade para aceitar novidades ou mudanças de rotina, preferindo sempre o que já conhece, e o pai terá de obrigá-lo a assistir algo novo, junto com ele até o fim, até que descubra que a novidade pode ser interessante. (Tezza, 2007, p. 218)

Ou seja: a noção da imprevisibilidade do futuro, dada a Felipe pelo futebol e pelo pai, também é apreendida pelo pai, que abdica de certezas fixas a respeito da possibilidade de o filho vir a se alfabetizar.

Recapitulando, a distância entre narrador e personagem sofre uma importante modificação no último capítulo, pois o foco do olhar do narrador desvia-se do pai para o filho. Nossa hipótese é de que esse deslocamento pôde ocorrer à medida que se processou a elaboração do luto do "ideal de filho" por parte do personagem principal: ao desfazer a ligação libidinal com o "ideal de filho", o pai pôde estabelecer uma ligação afetiva mais profunda com o filho real, que é agora mostrado em toda sua complexidade e tridimensionalidade,10 como um personagem dotado de particularidades e características próprias (em oposição a "menino genérico portador da síndrome de Down"). Veja-se, por exemplo, a seguinte passagem, em que o filho aparece como personagem principal de sua própria vida; como alguém dotado de ações próprias; como um personagem dotado de agência, enfim:

O mundo se divide em torcedores, e por eles é possível classificar nitidamente as pessoas – sempre que chega alguém desconhecido em casa, ele [Felipe] pergunta seu time. "Fluminense", dirá o visitante. Felipe vai à sua coleção de camisas e volta vestindo uma camisa do Fluminense para abraçar a visita. Diplomacia feita – a operação é sempre um sucesso, ele sabe –, ele voltará à sala depois, é claro, com a camisa do Atlético, em meio a risadas. (Tezza, 2007, p. 220)

Elaborar o luto desse "ideal de filho" implica, conforme vimos em Klein (1940/1984), introjetar esse objeto perdido.11 Implica, portanto, introjetar ("assumir para si") a inscrição em uma ordem temporal que se abre para o futuro, para o novo e para a alteridade – ordem da qual a partida de futebol é metáfora. Veja-se na seguinte passagem como o pai, da mesma forma que o filho, apresenta(va) uma tremenda dificuldade em fazer exatamente isto, abrir-se para o futuro, para o mundo e para os outros:

por muitos anos teve vergonha de se afirmar, intransitivo, um "escritor" …; durante todos esses anos sentiu o peso do ridículo de ser escritor … É simplesmente um fato com o qual temos de lidar sozinhos, ele imaginava, escoteiro, anos a fio, camponês de si mesmo, girando no seu mundo de dez metros de diâmetro … (Tezza, 2007, p. 213)

Nessa passagem, o pai está congelado temporalmente ("anos a fio") em um mundo empobrecido ("de dez metros de diâmetro"), sem possibilidade de relações afetivas tridimensionais com os outros ("camponês de si mesmo").

O filho eterno mostra o fracasso do projeto parental de que os filhos realizem aquilo que eles próprios não puderam fazer. Para ser pai de Felipe, o personagem principal precisou abdicar de um "ideal de filho" e assumi-lo para si. É como se, em uma frase, o pai tivesse podido dizer: "não é meu filho quem precisa aprender a se situar no tempo: quem deve fazê-lo antes de tudo sou eu, relojoeiro falido". E, ao fazê-lo, ficamos sabendo pelo narrador que também o filho começa a empreender uma caminhada semelhante.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Camila Lousana Pavanelli de Lorenzi
R. Agente Gomes, 315 ap. 12 – Jardim São Paulo
02040-090 São Paulo, SP
Tel: 11 7862-8956
E-mail: camilalpav@gmail.com

Recebido em: 15/05/2012
Aceito em: 27/6/2012

 

 

1 Doutoranda no Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
2 "subjectivist and objectivist theories both tend to distort or ignore important aspects of the reading process … Thus by ridding ourselves of the concept of subjectivism/objectivism we can establish an intersubjective frame of reference". (Todas as traduções presentes neste ensaio são de minha autoria).
3 " … the literary work has two poles, which we might call the artistic and the aesthetic: the artistic pole is the author's text, and the aesthetic is the realization accomplished by the reader… the work itself cannot be identical with the text or with its actualization but must be situated somewhere between the two. It must inevitably be virtual in character, as it cannot be reduced to the reality of the text or to the subjectivity of the reader, and it is from this virtuality that it derives its dynamism."
4 A clínica analítica nos oferece uma boa metáfora para compreender esse fenômeno. Pode-se dizer que, quando o analista enuncia uma interpretação verbal, ele é seu autor do ponto de vista "artístico" – no sentido de que foi ele, indivíduo empírico, que a proferiu. Mas, do ponto de vista "estético", se pode argumentar que uma interpretação nunca é (ou, idealmente, deveria ser) de autoria exclusiva do analista, pois enquanto fenômeno vivo a interpretação existe apenas no embate entre a "interpretação-texto" do analista e a apropriação que dela pode ser feita pelo analisando.
5 Este elemento – a ausência de recriminações do narrador sobre o personagem – já nos dá um bom indício de que não é de melancolia que sofre o personagem principal. A melancolia se caracteriza por auto-recriminações (isto é, recriminações internas ao Eu); pensamos que a estrutura melancólica (uma parte do Eu depreciando outra) poderia ser transmitida no texto literário por meio de críticas depreciativas do narrador ao personagem principal – é exatamente o que ocorre, aliás, em Youth, de Coetzee, do qual trataremos mais adiante (sem nos aprofundarmos, porém, nesta "estrutura melancólica" que embasa o romance).
6 "A new reading of the origins of object relations theory".
7 the melancholic … survives in a timeless, deathless (and yet dead and deadening) internal object world.
8 A fúria condenatória, aqui, é reminiscente das auto-recriminações melancólicas.
9 Note-se também que este é um raro momento no livro em que o narrador desfere um julgamento claro sobre o que o personagem está vivendo, e esse julgamento coincide com o do personagem (narrador e personagem estando, portanto, bastante próximos).
10 Penso a tridimensionalidade, aqui, em oposição ao que Ogden afirma sobre o melancólico: " … a experiência do melancólico de identificação com o objeto abandonado possui uma qualidade magra e bidimensional, em oposição a um sentimento de tons vivos e robustos" (2005, p. 33)– " … the melancholic's experience of identifying with the abandoned object has a thin, twodimensional quality as opposed to a lively, robust feeling tone".
11 Além da introjeção do objeto perdido, todo novo luto envolveria também uma reintrojeção dos objetos primários (Klein, 1940/1984, p. 353). O exame dessa reintrojeção, porém, não nos ajuda a pensar o texto literário específico que temos em mãos.