SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.45 issue82Attention-deficit hyperactivity disorder (ADHD): increasing the understandingProcess-orientated psychoanalytic work in the first interview and the importance of the opening scene author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.45 no.82 São Paulo June 2012

 

FORMAÇÃO PSICANALÍTICA

 

Transmissão da psicanálise e universidade1

 

Psychoanalysis transmission and university

 

Transmisión del psicoanálisis y universidad

 

 

Ana Maria Loffredo2

Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
Editora da revista Psicologia USP
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo apresenta brevemente as reflexões freudianas relativas à inserção da psicanálise na universidade para destacar as mudanças que se evidenciaram, desde então, na relação entre ambas, no sentido de recortar como objeto de investigação a importância significativa que é conferida pela instituição psicanalítica, nos dias atuais, à sua interlocução com a universidade.

Palavras-chave: Sigmund Freud, Psicanálise, Transmissão da psicanálise, Psicanálise e universidade, Instituição psicanalítica e universidade.


ABSTRACT

The article briefly presents Freud's reflections concerning the presence of psychoanalysis at the University to highlight the changes that showed, since then, the relationship between both of them, in order to investigate the importance conferred by the psychoanalytic institution, nowadays, to its interaction with the University.

Keywords: Sigmund Freud, Psychoanalysis, Transmission of psychoanalysis, Psychoanalysis and the university, Psychoanalytic institution and university.


RESUMEN

En el artículo se presentan brevemente algunas reflexiones realizadas por Freud sobre la inserción del psicoanálisis en la universidad objetivando resaltar los cambios que se evidenciaron, desde entonces, en la relación entre ambos, a fin de delimitar como objeto de investigación la importancia significativa que es conferida por la Institución Psicoanalítica, en los días de hoy, a su interlocución con la Universidad.

Palabras clave: Sigmund Freud, Psicoanálisis, Transmisión del psicoanálisis, Psicoanálisis y universidad, Institución psicoanalítica y universidad.


 

 

Introdução

A perspectiva de que a produção de sentido é fruto da relação da figura com seu fundo,3 ou seja, é contextual, enunciado fundamental da psicologia gestáltica, dá suporte a uma boa estratégia metodológica. É assim que o ponto de vista historiográfico nos propicia um pano de fundo por meio do qual pode ser mais bem apreendido o sentido das figuras que dão contorno para nossos interesses atuais, no campo complexo relativo à questão da transmissão da psicanálise, que desse modo se recorta, ele próprio, como objeto de investigação. Também a palavra "complexo" bem se presta ao nosso diálogo neste momento, na medida em que aponta para uma rede cujos componentes nos importa destacar, no melhor estilo das concepções e do método analítico proposto por Freud. Justamente voltado à decomposição dos elementos pertinentes a esse conjunto, de modo que novas gestalten de produção de sentido possam ser construídas.

É assim que entendo a importância do evento intitulado "Jornada Transmissão da Psicanálise: Universidade-SBPSP", organizado neste momento da história dessa instituição. Creio que esse é o "trabalho" que nos importa realizar no âmbito dessa temática, cada um se ocupando de recortes específicos animados por motivações singulares, a partir de seu próprio trajeto na psicanálise. Sem nos esquecermos do estatuto de certa forma conceitual que o termo "trabalho" adquiriu no pensamento freudiano. Então aí vai, a partir dessa ideia de um fundo historiográfico, um rápido passeio às origens, nesta comemoração dos 60 anos da SBPSP na IPA, para observar como o cenário das origens pode iluminar esta reflexão.

Não é por acaso que o título do breve texto de Freud, publicado em 1919, abre para uma interrogação: "Deve-se ensinar a psicanálise nas universidades?" (Freud, 1919/2010). Esse pequeno trabalho, como se sabe, foi provavelmente escrito em 1918 e publicado pela primeira vez em uma tradução para o húngaro e pode ter sido escrito por ocasião do 5º Congresso Internacional de Psicanálise, realizado em Budapeste. Como nos informa Strachey (1990), houve nessa época uma razoável agitação entre os estudantes de medicina dessa cidade, no sentido da inclusão da psicanálise no currículo. É nesse contexto que, em março de 1919, Ferenczi foi, de fato, nomeado professor de psicanálise na universidade, quando os bolcheviques assumiram por um tempo o poder na Hungria.

A discussão efetuada naquele texto dá encaminhamento à questão que é formulada, tanto no âmbito da psicanálise como no da universidade. Escreve Freud:

No tocante à psicanálise, sua inclusão no currículo acadêmico seria motivo de satisfação para um psicanalista, mas, ao mesmo tempo, é evidente que ele pode prescindir da universidade, sem prejuízo para sua formação. (Freud, 1919/2010, p. 378, grifos meus)

Isso quer dizer que as sociedades psicanalíticas teriam todas as condições para suprir as exigências pertinentes à formação de um psicanalista, do ponto de vista teórico e de experiência prática.

Questão crucial para nós neste momento; continua assim, ou não tanto assim? Isto é, nos dias de hoje, quais seriam as consequências dessa eventual autonomia das instituições psicanalíticas em relação às universidades? Bem se vê que assim introduzimos uma linha interessante nessa malha complexa que aponta para um elemento no registro propriamente político.

Continua Freud:

A existência de uma tal organização[instituição psicanalítica] se deve justamente ao fato de a psicanálise estar excluída das universidades, e ela continuará a exercer uma função decisiva enquanto se mantiver essa exclusão. (Freud, 1919/2010, p. 378, grifos meus)

Creio que não é demais destacar essa ênfase na articulação entre "exclusão" e manutenção de sua "função decisiva", como dois significantes interessantes para nossa discussão contemporânea. Inclusive pela simples razão de que a psicanálise não só faz parte como, de certa forma, inunda os currículos dos cursos de graduação de psicologia.4

Essa questão abre mais uma linha em nossa rede, se compararmos sua presença nos cursos de Psicologia, em geral, em relação aos cursos de Medicina, nos quais sua presença é variável, linha a partir da qual se desdobra outra vertente interessante de análise, relativa à porcentagem de médicos e psicólogos que procuram, atualmente, tanto a formação analítica como os cursos de pós-graduação na perspectiva da pesquisa em psicanálise.

Voltemos a Freud. Naquela época, tratava-se de situar a importância atribuída à psicanálise pela universidade na formação de médicos e cientistas e, nessa linha, Freud (1919/2010) enumera as razões que fundamentariam sua inserção nos currículos: a lacuna de uma atenção aos fatores psíquicos articulados às diversas funções vitais, bem como às enfermidades e seus tratamentos. Como consequência disto, de um lado se estimularia um "desinteresse pelos problemas mais interessantes da vida humana, seja sadia ou enferma, e, por outro, a inabilidade ao tratar o paciente, de modo que até mesmo charlatães e curandeiros terão mais influência sobre este" (p. 379). Embora reconheça que essa lacuna tenha levado à inclusão de cursos de psicologia fundados na perspectiva da psicologia acadêmica ou experimental, o problema não teria sido resolvido, pois essa orientação não permite o contato do estudante com os problemas humanos gerais bem como aqueles emergentes do exercício de sua profissão. É justamente aqui que se recortaria o espaço a ser ocupado pela psicanálise e então a pergunta que se colocaria nesse ponto seria a seguinte: de que forma a psicanálise seria introduzida nesse contexto?

Deveria haver um curso em caráter introdutório, que preparasse o caminho para as peculiaridades da psicanálise, no qual se discutissem as "relações entre a vida psíquica e a somática, fundamento de qualquer psicoterapia" (p. 379) e se apresentassem os procedimentos sugestivos, de modo que fosse possível demonstrar, ao final, como à psicanálise cabe um lugar proeminente e de coroamento entre essas intervenções terapêuticas, pois "mais do que outros métodos, de fato, a psicanálise é adequada para ensinar psicologia ao estudante de medicina" (p. 379).

O ensino deveria se desdobrar em duas etapas: um curso elementar para todos os estudantes de medicina e um curso especializado só para estudantes de psiquiatria. Nesse sentido, a psicanálise também teria o caráter de uma preparação para o estudo da psiquiatria, na medida em que esta prioriza uma abordagem descritiva e "não proporciona o entendimento dos fatos observados, algo que apenas a psicologia profunda pode fazer" (p. 380). Então Freud faz referência à presença da psicanálise, "a primeira tentativa de psicologia profunda", na América, na qual várias escolas de medicina inseriram cursos de psicanálise como introdução ao estudo da psiquiatria.

Como o método próprio à psicanálise na investigação de processos psíquicos e funções intelectuais não se limita ao estudo dos distúrbios psíquicos, mas se estende e também pode contribuir a questões pertinentes à arte, à filosofia e à religião, esse curso geral também poderia ser interessante para estudantes das áreas de história da literatura, mitologia, história das civilizações e filosofia da religião. Escreve Freud:

A fecundação dessas outras disciplinas pela psicanálise certamente contribuirá para forjar um vínculo mais sólido entre a medicina e os ramos de saber da filosofia e das artes, no sentido de uma universitas literarum. (Freud, 1919/2010, p. 381)

Ou seja,

uma universidade só teria a ganhar com a inclusão do ensino da psicanálise em seu currículo. É verdade que este ensino somente poderia ser ministrado de forma dogmática, em aulas teóricas, pois quase não haveria oportunidade para experimentos ou demonstrações práticas. Para a pesquisa que o professor de psicanálise deverá realizar, bastaria ele ter acesso a um ambulatório com pacientes "neuróticos", e, quanto à psiquiatria psicanalítica, um serviço de internação também deveria estar disponível. (Freud, 1919/2010, p. 381)

Parece que não havia expectativa de ganho para a disciplina psicanalítica, enquanto corpo teórico-metodológico, pois esse ensino dogmático, no sentido de ser eminentemente expositivo, deveria se encaminhar, fundamentalmente, como divulgação. Mas não podemos esquecer que isso, naquele contexto, não era pouco.

Dessa forma, reconhece Freud, o estudante não aprenderá de fato a psicanálise, se considerarmos seu efetivo exercício, "mas para os propósitos em vista é suficiente que ele aprenda algo sobre e com a psicanálise" (p. 381). Critério esse que vale para qualquer especialidade, pois o estudo universitário não é suficiente para garantir a excelência em nenhuma delas.

Nesse ponto, podemos dar um salto para o fundamental "Esquema de psicanálise", escrito vinte anos depois, em cujo "Prólogo" encontramos a seguinte afirmação, enunciada em estilo dogmático:

O propósito deste breve trabalho é reunir os princípios da psicanálise e expô-los, por assim dizer, dogmaticamente – da maneira mais concisa e nos termos mais inequívocos. Seu intuito não é, naturalmente, o de compelir à crença ou o de provocar convicção. Os ensinamentos da psicanálise se baseiam em um número incalculável de observações e experiências, e só quem haja repetido essas observações em si mesmo e em outros indivíduos está em condições de formar um julgamento próprio sobre ela. (Freud, 1940/1989, p. 139)

Se o termo "psicanálise", como o definiu Freud se reporta a uma articulação entre pesquisa, tratamento e produção teórica, as interferências recíprocas entre esses três eixos são o cerne da especificidade epistemológica dessa disciplina e, dessa forma, assim se circunscreve o espaço restrito que caberia à investigação psicanalítica, fora de seu nicho de origem e de crescimento, que é a situação analítica.

 

Psicanálise na universidade

Como se vê, já estamos longe da maneira com que Freud encarava a inserção da psicanálise na universidade, embora ainda se mantenha como questão relevante mapear os modos de operação da psicanálise no contexto universitário, no sentido das contribuições recíprocas que possam circular de ambos os lados. Mas já não faz mais sentido encaminhar a reflexão sobre a relação psicanálise-universidade segundo os parâmetros em que foi desenvolvida na proximidade dos anos 1920, principalmente pela ênfase de um ensino universitário da psicanálise cuja produção de conhecimento só poderia se desenvolver na exterioridade da investigação acadêmica.

Creio que, ao contrário, o que definiria, nos dias atuais, uma das peculiaridades da interlocução entre a psicanálise e a universidade, e que se recorta mesmo como objeto de interesse, é a articulação da pesquisa em psicanálise inserida na universidade com a instituição psicanalítica. Caminhemos um pouco nessa direção.

A essa altura, são evidentes os frutos de dupla mão obtidos pela presença da psicanálise na universidade, pelo contato com os vários domínios de produção de conhecimento que essa favorece e pela efetiva contribuição que a psicanálise traz para as outras áreas, que não só a recortam como objeto de investigação como a incluem como disciplina complementar em seus currículos. Bem na linha, portanto, das expectativas enunciadas por Freud sobre a extensão da fecundidade de seu método.

Nesse quadro, embora não haja dúvida que a situação analítica é a matriz privilegiada da pesquisa psicanalítica, a relação da psicanálise com a pesquisa que se desenvolve na universidade tem sido visivelmente incrementada entre nós, especialmente nas últimas décadas. Mas, nesse contexto, devemos lembrar dos cursos de Laplanche que convergiram para os clássicos "Problemáticas" (Laplanche, 1987, 1988, 1989, 1992), publicações relativas a suas aulas na Universidade Paris VII, no decorrer dos anos 1970, embora já estivessem sendo ministradas desde a década anterior.5 O que nos leva para um espaço compreendido em torno de mais ou menos cinquenta anos

Como sabemos, no decorrer desses cursos e, mais explicitamente, em suas várias introduções, apresenta-se uma reflexão contínua sobre o que significa "ensinar a psicanálise na Universidade" (Laplanche, 1992, p. 1), tendo como fio condutor o enunciado de caráter metodológico presente na "Advertência" que serve de prefácio a essas obras:

abordar a própria teoria levando em conta o método analítico, de modo a fazer ranger determinadas articulações e a derivar certos conceitos. Através deste modo de tornar problemática a doutrina, mas também a história e a clínica, esboça-se a configuração de uma outra temática. (Laplanche, 1987)

Como bem sintetiza Mezan (1993), na proposta de Laplanche está contida a ideia de que

falar da psicanálise na universidade não é propor um atalho nem um ersatz à formação do analista, mas isso não significa que se trata de algo menor, menos digno ou mesmo indigno da atenção do psicanalista. A oposição entre um saber já sedimentado, a ser divulgado nos cursos universitários, e uma verdade pessoal e intransferível, a ser descoberta por cada um em sua própria análise, revela-se, sob escrutínio, uma falsa alternativa; nem o saber psicanalítico é tão sedimentado assim, nem a verdade pessoal cantona-se na esfera do inefável, do insight obtido no divã ou no elevador do psicanalista. (Mezan, 1993, p. 53)

Além disso, há uma enorme literatura psicanalítica que é preciso estudar e para a qual uma abordagem expositiva, nos moldes universitários, está longe de ser inadequada ou inútil, desde que entrar em contato com o patrimônio acumulado é o primeiro passo para o estudo em qualquer disciplina (Laplanche, 1992, p. 8); há também uma variedade de tendências na psicanálise pós-Freud, além da complexidade e vastidão da própria produção freudiana.

Creio que nesse panorama se insere a importância dos estudos no campo da História e Epistemologia da Psicanálise na formação dos psicanalistas, pois fornecem instrumentos não só para problematizar os fundamentos da clínica freudiana como a produção psicanalítica pós-Freud. Trabalhos que têm sido desenvolvidos, por exemplo, por filósofos alheios à instituição psicanalítica e que têm o que oferecer à pesquisa em psicanálise, oriundos da produção interdisciplinar facilitada pelo espaço acadêmico.

No Brasil, a presença da psicanálise nos cursos universitários e a valorização de seu estudo nos moldes acadêmicos têm evidente repercussão nos órgãos de fomento à pesquisa, que têm dado suporte financeiro regular para pesquisas na área, desde as investigações na graduação, pertinentes aos projetos de Iniciação Científica. Deve ser observado também que, além dos recém-graduados, psicanalistas provenientes das várias filiações teóricas, procuram os vários programas de pós-graduação por se beneficiarem dos parâmetros que sustentam a pesquisa na universidade, que oferece uma ambientação promissora para sistematizar seu patrimônio acumulado de experiência clínica. Ao mesmo tempo, essas pesquisas permitem que a universidade cumpra seu papel fundamental, que é garantir a produção de conhecimento alinhada às demandas concretas da comunidade, em suas vertentes de ensino, pesquisa e extensão.

Esse contexto confere sustentação para uma pluralidade de pesquisas na área, alojadas em inúmeros laboratórios de psicanálise, nos quais se observa a interlocução da psicanálise com o direito, a literatura, a educação, a neurociência e com as várias especialidades da clínica médica, em sua relação com a emergência, nos dias atuais, de distintas modalidades de sofrimento psíquico que se remetem ao corpo biológico.

A literatura disponível e o volume de teses e dissertações a que se pode ter acesso eletronicamente atestam esse espaço ocupado pela psicanálise na pesquisa acadêmica. Esse quadro também estimula a psicanálise a mais bem delinear seus contornos identitários como disciplina e a criar repertórios de comunicação que permitam o diálogo com outras áreas, num momento em que a demanda pelos trabalhos multidisciplinares se torna imperativa. Creio que, nos dias de hoje, essa questão é crucial, desde que os psicanalistas não se intimidem pelo apelo de financiamentos para projetos de pesquisa que, eventualmente, não se coadunem às especificidades de seu método de produzir conhecimento.

É evidente que esses eventuais impasses se enlaçam com a questão da cientificidade da psicanálise, temática que a atravessa desde suas origens e que não é foco de minha atenção agora.6 Basta, para meus propósitos nesse momento, destacar, embora muito brevemente, a importância da tese radical proposta por Lebrun (1977), expressa em seu artigo "L'idée de épistémologie" e apresentada por Mezan (2002), segundo a qual deve-se distinguir entre a ciência e as ciências, enunciando um espaço de positividade às "racionalidades regionais", próprias a cada disciplina. Isto quer dizer que

cada ciência constrói a sua própria racionalidade, e que isso se diferencia profundamente da ideia de uma razão universal que se expressaria em todas as construções intelectuais realizadas pelo homem. (Mezan, 2002, p. 438)

Como escreve Lebrun:

A racionalidade de uma ciência se enraíza num sistema autóctone de decisões e de escolhas, que para os contemporâneos frequentemente pareceu o cúmulo da arbitrariedade. (Lebrun, 1977, p. 12, citado por Mezan, 2002, p. 438)

Assim,

É o caráter autóctone dessa montagem que permite determinar objetos até então inéditos, tornando-os passíveis de serem conceituados por noções igualmente inéditas, as quais se disporão em enunciados cujo conjunto forma as teorias próprias àquela disciplina. (Mezan, 2002, p. 438)

Trata-se de ter acesso à originalidade de um saber, que supõe uma racionalidade própria, em termos das estruturas que nele operam. Para tanto, esclarece Mezan, é necessário realizar tanto a descrição epistemológica de uma dada ciência, que pretende mostrar como funciona seu sistema de enunciados, como a análise epistemológica, que mostra como se constrói esse sistema e que " lances" ele exclui de seu horizonte (p. 439). Por sua vez, a abordagem histórica pretende elucidar as condições, seja de constituição de uma disciplina, seja de períodos de seu percurso e prepara o terreno para as questões pertinentes ao campo da investigação epistemológica.

Se observarmos a variedade da produção psicanalítica, poderemos mapear tanto um conjunto de pesquisas que têm como objeto o aparelho conceitual da psicanálise, no campo das diversas maneiras de se estudar a história da teoria (p. 441) e no âmbito da análise epistemológica, como as desenvolvidas do ponto de vista da prática psicanalítica, que pode se desdobrar em três planos: o estudo do processo terapêutico stricto sensu, o estudo do próprio movimento psicanalítico e, finalmente, o estudo do contexto social e cultural no qual está inserida essa prática.

De modo que a pesquisa em psicanálise, ainda segundo Mezan (1993), encaminha-se para duas direções: um eixo que se articula a sua inclusão nos programas universitários e o eixo relativo ao "modo de produção" dos conhecimentos psicanalíticos, inseridos no coração da pesquisa psicanalítica, que é a situação analítica. Para o autor, são "vertentes que, embora não passíveis de sobreposição, podem revelar-se paralelas ou entrecruzadas" (p. 51). E que, em nossa discussão sobre a interlocução universidade-instituição psicanalítica, se recorta como um conjunto de parâmetros essencial.

Podemos observar, facilmente, a presença dessa variedade de temáticas tanto na literatura psicanalítica brasileira como na internacional e, ainda, como esses estudos são incentivados tanto no âmbito das instituições acadêmicas como das associações psicanalíticas.

Portanto, a relação psicanálise-universidade e, assim, a pesquisa e transmissão de conhecimento que são passíveis de concretização neste contexto, é uma realidade inquestionável e legitimada. Não se configura mais como uma questão, nem para a universidade nem para a psicanálise enquanto disciplina, no sentido de algo que está em tensão e que merece uma análise particular, como na época de Freud, ou mesmo nos anos sessenta do século anterior, com a tematização metódica e metodológica, por parte de Laplanche, do significado do ensino universitário da psicanálise.

 

Instituição psicanalítica e universidade

Mas parece que a temática da relação da psicanálise com a universidade se mantém como questão relevante, prioritariamente, no âmbito da instituição psicanalítica. É então interessante retomarmos os enunciados freudianos apresentados no início e formularmos a seguinte questão: poderia a psicanálise, no contexto atual, prescindir da universidade, e, nesse caso, o que significaria essa valorização de que é alvo a universidade por parte da instituição psicanalítica e que se contorna como um fenômeno, de certa forma recente, pelo menos no âmbito de nossa sociedade?

Então, é nesse ponto que devemos aterrissar para refletir não mais sobre a relação da psicanálise, no geral, com a universidade, mas, sim, especificamente, sobre a relação da instituição psicanalítica com a universidade. Por que tantos psicanalistas com formação prévia vêm procurando os cursos de pós-graduação acadêmicos?

Não é mais necessário abrir espaço para a psicanálise na universidade e essa disciplina, um dia, autóctone, deixou de provocar estranheza. A acomodação da estranheza pode ser estratégia de expressão de resistência, mas, também, cabe vitalizar a criação conceitual, tornando os conceitos sensíveis às demandas que não cessam de se apresentar, nas várias modalidades de expressão que marcam as especificidades do mal-estar na atualidade.

É assim que a universidade deve acolher e permitir que se transforme em projetos concretos de pesquisa a diversidade de questões que se colocam para os psicanalistas na contemporaneidade.

Se a resistência à psicanálise é ressonância da dor que provoca, (Freud 1917/ 2010), então, uma vez nomeada essa pulsação de resistência, de ordem estrutural e não conjuntural, é parte integrante do trabalho do psicanalista, nos vários âmbitos em que se apresente, percorrer suas formas multifacetadas. Inclusive nesse convite inspirador de Herrmann (2003), para que se tome a própria "história da psicanálise como resistência à Psicanálise" (p. 79, grifos meus), presente no artigo "Duas notas sobre o itinerário da psicanálise", publicado na revista Psicologia USP.

Então, o que estaria em questão no momento?

Na linha desenvolvida por Herrmann e que é útil para esta etapa de nossa reflexão, importa destacar os desdobramentos de sua afirmação segundo a qual

é evidente que a questão contemporânea, e na realidade dominante em todo o mundo psicanalítico, no desenvolvido ou no dependente, reside no naufrágio da clínica padrão. (Herrmann, 2003, p. 86)

Embora já tenha se passado quase uma década desde então, o exame dessa temática ainda não está desprovido de interesse.

Nesse caso, a questão de que se trata é de como viabilizar a extensão do saber psicanalítico para onde uma demanda de escuta se apresente, de modo a que seu método seja convocado, o que envolve pesquisa, necessariamente, no plano da elasticidade da técnica e da plasticidade do setting.

Creio que podemos acrescentar a essa dimensão propriamente clínica, questões prementes, pelo menos em nossa sociedade, relativas às concepções que regem a formação analítica, em cujo contexto se recorta, por exemplo, o debate recorrente em torno do número da sessões da análise didática. Temática que pode gerar amplo debate dentro como fora da instituição, mas cujo destino, evidentemente, é reduto decisório, por excelência, da instituição psicanalítica. Mas se espera que a porosidade das fronteiras provoque efeitos dentro como fora das instituições, tanto acadêmicas como psicanalíticas.

Quais poderiam ser os desdobramentos desta afirmação de Hermann?:

o desenvolvimento de uma clínica extensa dar-se-á, quase com certeza, fora das instituições oficiais, enquanto, por sua parte, a alta teoria que necessariamente lhe corresponde deverá ser desenvolvida, também parece provável, em âmbitos muito restritos e sem debate internacional. (2003, p. 87)

Sob esse ponto de vista, podemos recortar o papel específico que a pesquisa universitária tem condições de assumir, pois ela está particularmente instrumentalizada para tanto, em sua missão de articular docência, pesquisa e extensão. Desde que esta última esteja atenta, por princípio, às demandas que se apresentem, sensibilizando os outros dois eixos no sentido de sua atualização constante. Aliás, papel que já vem cumprindo faz um bom tempo, como testemunham os trabalhos apresentados na Jornada "Transmissão da Psicanálise: Universidade-SPBSP", para a qual convergiram estas reflexões.

Pelo exposto até aqui, podemos observar que, assim como a história ou a antropologia, por exemplo, a psicanálise não se faz questão para a universidade, como na época de Freud; e também a universidade não é um problema para a disciplina psicanalítica. Ao contrário, ela é passível de estudo, inclusive, por parte de pesquisadores que sequer deitaram um dia num divã.

Mas, ao que tudo indica, conforme apontaria o título deste evento, o cerne da questão repousa na importância evidente, e mesmo crucial, que a relação com a universidade passou a ter para a instituição psicanalítica.

Esperança, garantia, expectativa, horizonte ou respiradouro para as intrincadas modalidades de entrecruzamentos transferenciais que permeiam o trajeto histórico e teórico-metodológico de uma disciplina, já madura em seus contornos identitários, e tão bem implantada institucionalmente?

 

Referências

Freud, S. (1989). Esquema del psicoanálisis. In S. Freud, Obras Completas (J. L. Etcheverry, trad., Vol. 23, pp. 133-209) Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1940[1938]         [ Links ])

Freud, S. (2010). Deve-se ensinar a psicanálise nas universidades? In S. Freud, Obras Completas (P. C. Souza, trad., Vol. 14, pp. 377-381). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1919 [1918]         [ Links ])

Freud, S. (2010). Uma dificuldade da psicanálise. In S. Freud, Obras Completas (P. C. Souza, trad., Vol. 14, pp. 240-251). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1917 [1916]         [ Links ])

Herrmann, F. (2003). Duas notas sobre o itinerário da psicanálise. Psicologia USP, 14 (3), 79-88.         [ Links ]

Laplanche, J. (1987). Problemáticas I: a angústia. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Laplanche, J. (1988). Problemáticas II: castração-simbolizações. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Laplanche, J. (1989). Problemáticas III: a sublimação. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Laplanche, J. (1992). Problemáticas IV: o inconsciente e o id. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Lebrun, G. (1977). L'idée d'épistémologie. Manuscrito, 1, 12-17.         [ Links ]

Loffredo, A. M. (2006). Parábolas freudianas: as narcísicas feridas e o arqueólogo. Jornal de Psicanálise, 39 (70), 289-307.         [ Links ]

Mezan, R. (1993). Que significa "pesquisa em psicanálise? In M. E. L. da Silva (Coord.), Investigação e psicanálise (pp. 49-89). Campinas: Papirus.         [ Links ]

Mezan, R. (2002). Sobre a epistemologia da psicanálise. In R. Mezan, Interfaces da psicanálise (pp. 436-519). São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

Strachey, J. (1990). Nota introductoria. In S. Freud, Debe enseñarse el psicoanálisis em La universidad?. In S. Freud, Obras Completas (J. L. Etcheverry, trad., Vol. 17, pp. 167-8) Buenos Aires: Amorrortu.         [ Links ]

Wertheimer, M. (1938). Gestalt Theory. In W. D. Ellis (Ed.), A sourcebook of Gestalt psychology. Londres: Routledge & Kegan Paul.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Ana Maria Loffredo
Rua Padre Bento Dias Pacheco 33 | Pinheiros
05427-070 São Paulo, SP
11 3815-0833
E-mail: analoffredo@usp.br

Recebido em: 29/2/2012
Aceito em: 24/5/2012

 

 

1 Trabalho elaborado para a mesa redonda "Psicanálise na Universidade I", na Jornada "Transmissão da Psicanálise: Universidade – SPBSP ", realizada na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, em 18 e 19 de novembro de 2011. Agradeço à Comissão Organizadora pelo convite e aos colegas pela discussão que desenvolvemos nessa ocasião.
2 Doutora em Psicologia Clínica, Docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, editora da revista Psicologia USP e membro filiado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.
3 Sobre isto, ver Wertheimer, M. (1938).
4 Por exemplo, no Instituto de Psicologia da USP, "Introdução à psicanálise" é uma disciplina obrigatória do primeiro ano e em "Introdução à pesquisa em psicologia", obrigatória do mesmo semestre, há uma vertente específica dedicada à pesquisa em psicanálise. Daí para a frente a psicanálise comparece até o quinto ano em disciplinas obrigatórias e em uma grande variedade de disciplinas optativas.
5 A partir de 1962, na École Normale e, desde 1969, na Unité d'Enseigment et Recherche (UER) des Sciences Humaines Cliniques, na Sorbonne - Université Paris VII. Esses cursos foram publicados, inicialmente, no Bulletin de psychologie e, depois, na revista Psychanalyse à l'Université. (Laplanche, 1987, "Advertência").
6 Sobre isto, ver Loffredo (2006).