SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.45 issue82Process-orientated psychoanalytic work in the first interview and the importance of the opening sceneReview: adoption - Making and breaking affectional bonds author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.45 no.82 São Paulo June 2012

 

BREVES ESCRITOS

 

Legado de André Green: recordar, elaborar, assumir

 

The legacy of André Green: remembering, working through, assuming

 

Legado de André Green: recordar, elaborar, asumir

 

 

Fernando Urribarri1

Associação Psicanalítica Argentina

Endereço para correspondência

 

 

Palavras pronunciadas no funeral de André Green, no dia 27 de Janeiro de 2012, na cidade de Paris, França.

Faz poucos dias que perdemos André Green. Faz menos tempo ainda que me fora revelado seu desejo testamentário - escrito no ano de 2008 - de que nesta despedida tomasse eu a palavra, em terceiro e último lugar.

Com esse gesto foram-me legadas as tarefas de testemunhar sobre uma história compartilhada e assumir seu porvir.

"O afeto – disse ele – é um movimento em busca de uma forma». Pergunto-me: Como dar uma forma transmissível ao legado de uma relação de mais de vinte anos? Como traduzir nossos extensos e intensos diálogos neste breve e solitário discurso? Como dar testemunho da generosidade e coerência do seu fazer e pensar, em público e em privado, que outorgavam o fundamento ético e afetivo à sua obra? Como Santo Agostinho perante a questão do tempo: "Se ninguém me perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, quando me perguntam, já não sei."

Para tentar sair do labirinto recorro à ajuda de J. L. Borges, um amigo em comum. Citá-lo-ei: "A amizade é a paixão que salva os argentinos". Esse é o ponto de partida. A amizade como paixão cosmopolita. A improvável amizade entre um portenho, bisneto de bascos e judeus russos, filho do movimento psicanalítico argentino, com um judeu nascido no Cairo descendente de espanhóis e egípcios que decidiu seu desejo de ser um grande psicanalista francês. Uma paixão freudiana com sede em Paris. E pontes com Buenos Aires.

Quando digo paixão tenho certeza que todos nos lembramos dele. A mim me transporta a uma viagem de táxi percorrendo Buenos Aires juntos em 1996, por ocasião da sua segunda visita à Universidade de Buenos Aires que eu organizara, depois de uma magnífica, polêmica e vibrante conferência, na qual André exibiu toda sua capacidade oratória. Digo-lhe, então, de seu estilo no palco, que o imagino forjado na sua experiência com o grupo de teatro da Sorbonne. Com um olhar sério e tom cúmplice respondeu-me: "Meu estilo é a paixão pela verdade".

Ao escutá-lo no táxi fico contente de ter podido diligenciar o outorgamento do título de Professor Honorário2 da Universidade de Buenos Aires. Ele está feliz, grato, orgulhoso. Confessa-me que nem tanto pelos vários "Prêmio Nobel" com os que comparte essa distinção, mas porque isso o aproxima um pouco mais, mais uma vez, de Borges. Esse amigo literário a quem, em duas oportunidades inesquecíveis, visitara em sua casa de Buenos Aires.

Amizades literárias, intelectuais, psicanalíticas. Amizades inspiradoras e entranháveis. Havia em André Green uma paixão pela amizade que marcou sua vida, sua obra, sua relação comigo.

Por acaso não fui o escolhido por ele para falar hoje perante vocês porque mais do que amigos fomos mestre e discípulo, e no fundo, talvez, como pai e filho? Isto é tão verdadeiro quanto o fato de que para entender o que estou dizendo deve-se evitar o lugar comum, conservador, que opõe as figuras do mestre e do pai à do amigo. Ao contrário, é preciso apreciar a consistência que há entre as ideias do André Green sobre o pai enquanto terceira figura (e terceirizante), com sua prática da análise, da transmissão e da amizade.

Evoquemos sua elucidação da função do pai marcada por suas teorias do trabalho do negativo e da terceiridade. Ou seja: do pai como motor da subjetivação, como origem do trabalho do negativo e fundamento da posição terceira do analista.

Ao lado do pai edípico (e poderíamos dizer também: antes e depois) Green postula outra figura do pai. Retoma o Freud da "Psicologia das massas" que propõe uma identificação primária com o pai admirado, tomado como modelo e não como rival. Sustenta que a relação com esse pai idealizado e inspirador é a origem da ideação, da simbolização, da sublimação, do pensamento. Esse pai motor de subjetivação é origem da alteridade: como abertura amistosa ao outro semelhante, mas também à relação consigo mesmo.

É esta figura terciária do pai a que dá suporte à posição transformadora do analista. Posto que o assunto fundamental é: de que é modelo o pai da identificação primária? A letra e o espírito da obra de André Green respondem que se trata de um modelo de autonomia subjetiva.

Advertimos que sua paixão pela verdade era também uma paixão pela alteridade. Ambas associam-se em uma espécie de princípio freudiano contemporâneo: a psicanálise é um projeto que apenas pode sustentar-se e impulsionarse em uma paixão pela autonomia – inseparavelmente individual e coletiva.

Esses princípios foram assumidos na prática, dentro e fora do consultório, por André Green. Constatamo-lo no seu percurso intelectual, e especialmente a partir do que chamamos "a virada do ano 2000". Desde o próprio título do livro que inaugura essa etapa: "Orientações para uma psicanálise contemporânea". Seu autor se propõe a reescrever todas suas principais ideias no interior do projeto coletivo de uma renovação pluralista da psicanálise, que procura superar a crise dos modelos pós-freudianos dogmáticos. O projeto de uma psicanálise contemporânea da sua própria prática, estendida e transformada; assim como contemporânea do mais avançado saber do seu tempo.

Vocês sabem: André Green se lança nesse projeto no momento mesmo em que está sendo consagrado como o mais reconhecido dos autores da comunidade psicanalítica internacional. Isto é, em vez da sua própria teoria e seu nome próprio, prioriza a construção de um novo paradigma freudiano, aberto, hiper-complexo, especificamente contemporâneo. Um novo programa de investigação clínico-teórico no interior do qual suas próprias ideias possam intervir e promover um diálogo pluralista, um pensamento crítico e criativo.

Não acredito que tenhamos mensurado ainda a transcendência histórica (ao mesmo tempo ética e epistemológica) dessa inédita posição freudiana pluralista construída por André Green. Possivelmente é o primeiro Grande Autor da história da psicanálise que milita contra o estabelecimento de uma corrente militante, de um enésimo discurso dogmático, identificado com seu nome.

Quase poderíamos dizer que, reconheçamos ou não, graças a ele todos nos tornamos (ou poderemos nos tornar) psicanalistas contemporâneos. Já que transitamos no campo que ele tem mapeado como ninguém, enfrentando os problemas que ele tem esclarecido e nomeado. Sua obra é uma bússola que indica o futuro da psicanálise.

Tendo colaborado com André Green em cada um dos seus principais livros e projetos dos últimos dez anos, tive a oportunidade de experimentar na intimidade seu comprometimento com a verdade e sua comovedora abertura ao outro. Desde seu convite para ajudá-lo na preparação das "Orientações" (2001) compartilhando uma semana juntos, gravando nossas conversas para depois elaborá-las e reescrevê-las como um livro. Até o ano passado, quando encaramos o trabalho de selecionar e discutir seus artigos inéditos para compilar os dois volumes que serão publicados em breve. Passando, claro, por seus convites para escrever o Posfácio de "Ilusões e desilusões" (2010), e o Prefácio de "Do signo ao discurso" (2011). Em cada oportunidade perguntei-lhe qual era sua expectativa, o que ele gostaria que eu aportasse ou priorizasse quanto à forma ou conteúdo. Em cada oportunidade deu-me a mesma resposta: "Meu querido Fernando, é a sua vez de fazê-lo".

Hoje, mais do que nunca, me parece necessário compartilhar essa experiência. Queridos amigos e colegas de André Green, agora é a nossa vez de fazê-lo. É a nossa vez de recordar, elaborar e assumir. É a nossa vez de tornar seu fecundo legado em pensamento vivo.

 

 

Endereço para correspondência
Fernando Urribarri
Av. Callao 1960, 4º
1021-Recoleta, Buenos Aires
E-mail: zonaerogena@yahoo.com

 

 

Tradução: Abigail Betbedé
Revisão: Beatriz Helena Peres Stucchi e Suzana Kiefer Kruchin
1 Psicanalista da Associação Psicanalítica Argentina. Desde 2001 colaborou com André Green em seus diversos projetos e na elaboração de seus livros, desde Orientações para uma psicanálise contemporânea (2002) até seus dois últimos livros que serão publicados postumamente em 2012.
2 N.T. "Doutor Honoris Causa".