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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.45 no.83 São Paulo dic. 2012

 

Entrevista: por uma formação em psicanálise de criança, adolescente e adulto integrada

 

 

amf: É uma honra poder conversar com a senhora e conhecer melhor algumas de suas ideias sobre psicanálise.

Florence Guignard: Para mim é também uma honra e um grande prazer fazer essa entrevista com vocês. Gosto muito de falar com os analistas em formação, porque afinal são eles a psicanálise de amanhã.

amf: Gostaríamos de propor como primeira questão o tema do atual número do Jornal: "Com quem aprendemos psicanálise?"

Florence Guignard: Bem, essa é uma questão difícil. Penso que na sua própria análise pessoal e com os analistas com quem fazemos supervisões e seminários clínicos. Também com aqueles com quem fazemos seminários teóricos e de técnica, pois devemos ser ajudados por alguém, ou por muitas pessoas, para sermos um pouco guiados em nossas leituras. A literatura psicanalítica é muito abundante e deve-se aproveitar dos colegas mais experientes que possam nos aconselhar. Mas podemos também lhes perguntar se leram esse ou aquele livro que acaba de ser publicado, pois isso permite uma abertura para os analistas mais antigos que nem sempre tem tempo e oportunidade de ler tudo que aparece.

amf: Na sua opinião quais seriam as dificuldades na transmissão da psicanálise?

Florence Guignard: Muitas! Mas acho que preferiria falar sobre as condições da transmissão da psicanálise. Acredito serem essas antes de tudo condições humanas, que se conjugam a um caráter científico importante. A psicanálise é então uma ciência humana, e assim sendo, devemos ser capazes de partilhar um determinado ponto de vista sobre uma metodologia psicanalítica. Esse é um ponto muito importante para mim.

amf: De que modo exatamente você compreende a metodologia psicanalítica?

Florence Guignard: Isso é uma coisa pouco abordada pelos psicanalistas, e para mim é de grande importância. Há muitos anos faço pesquisa em psicologia clínica, desde o tempo em que fazia minha formação em Genebra, onde nasci. Fiz lá minha análise com Raymond de Saussure durante oito anos e meio; e trabalhei por mais de dez anos, tanto na formação de psicólogos clínicos, quanto em pesquisa. Recebi uma bolsa de estudos do Fundo Nacional Suíço de Pesquisa Científica para um trabalho sobre os problemas da simbolização. Também fiz uma pesquisa com Julian de Ajuriaguerra sobre a linguagem na criança, de modo que para mim a metodologia é algo essencial. A psicanálise tem a sua própria, assim como há também uma metodologia na sua transmissão: não podemos dizer, pensar ou fazer o que for, nem transmitir qualquer coisa. Existem certas categorias de noções, saberes e habilidades que devem ser transmitidas, e é por conta disso que na transmissão é importante saber em que registro está se falando: falamos no de modelos psicanalíticos? Estamos falando no da estrutura do psiquismo? Ou do desenvolvimento cognitivo? Ou ainda, no registro do desenvolvimento das relações de objeto? Estamos falando de identificações? É importante saber a partir de onde estamos falando, caso contrário, corremos sempre o risco de responder a uma questão situada dentro de um campo de trabalho com uma resposta situada em outro, e isso não contribui em nada.

amf: Isso é comum quando não se sabe exatamente de onde se parte.

Florence Guignard: Gostaria apenas de acrescentar que a questão central em Psicanálise é a questão da causalidade. Há uma grande tentação na Psicanálise de se contentar com aquilo que chamo de causalidade curta. É, por exemplo, dizer que uma criança é psicótica por que seus pais se divorciaram. Isso é muito errado. Chamo isso de respostas à la Molière, por que Molière escreveu, entre outras, uma peça que vocês devem seguramente conhecer, que é Le médecin malgré lui. Trata-se de um ébrio que finge ser médico e uma moça que finge ser muda, por que não quer se casar com um velho barão, que lhe foi destinado como marido. O falso médico dá explicações sobre a mudez da moça, mas é claro que são explicações falsas, e o tempo todo ele repete "eis por que sua filha está muda!''. E, em psicanálise, existem pessoas que dão explicações do mesmo jeito. Para mim é como se dissessem: "eis por que sua filha está muda!''.

amf: A senhora poderia nos falar um pouco sobre a formação de analista de criança e adolescente? Na sua opinião, como deveria ser essa formação?

Florence Guignard: Bem, eu vou falar daquilo que gostaria que existisse e que não existe na França, pois não temos formação em psicanálise de criança nas sociedades que fazem parte da ipa. Por conta disso que Annie Anzieu e eu criamos uma Associação para a psicanálise de criança e adolescente, primeiro uma francesa, e depois uma segunda europeia, e formamos psicoterapeutas psicanalíticos fora das instituições oficiais. Lebovici e Diatkine tinham um centro em Paris, Michel Soulé, Misès e também Edouard Claparède em Neuilly. Todos esses centros existem até hoje, mas sempre estiveram fora das Sociedades Psicanalíticas vinculadas à ipa. Bem, e como eu concebo uma formação? Em primeiro lugar uma análise pessoal, que já esteja acontecendo por pelo menos um ano antes do início da formação, isso é importante. Em seguida, penso que seria desejável que a formação em psicanálise de crianças e adolescentes fosse integrada a uma formação em psicanálise de adultos. Poderíamos começar seja por um caso de adulto, seja por um de criança ou adolescente, e ir fazendo a formação pouco a pouco, em espiral, por assim dizer. Isso implicaria, evidentemente, em mais casos de supervisão, mas também em uma integração da clínica infantil na clínica de adultos, e da clínica de adultos na clínica infantil. Penso que isso seria o ideal. É o que está sendo pensado atualmente na ipa, graças ao comitê criado pela Virgínia Ungar do qual faço parte e no qual se estuda a possibilidade de propor uma formação integrada adulto/criança às sociedades que se interessem. Pessoalmente, penso que a psicanálise de crianças sofre por ser colocada em guetos em todos os lugares. Então, ou se diz que é apenas a psicanálise de adultos que é a "verdadeira" psicanálise - e "as crianças brincam no quintal", como se diz - ou que se pode muito bem ser um psicanalista trabalhando exclusivamente com crianças, o que é muito dito especialmente na América do Norte.

amf: Como seria essa integração entre uma formação de adultos e de crianças?

Florence Guignard: Para mim a psicanálise é uma só e indivisível e penso que todo ensino teórico-técnico deveria ter em conta todas as idades; quanto aos seminários clínicos, poderíamos muito bem considerar supervisões para dois casos de criança/adolescente e dois casos de adulto, o que permitiria integrar clínicas diferentes. Elas enriquecem-se mutualmente e isso evitaria muitas disputas inúteis. Acredito que se trabalhamos verdadeiramente a clínica, temos a possibilidade de reconhecer quais as teorias que nos ajudam, que abrem, e quais teorias que não nos ajudam, que fecham a reflexão. Não posso evidentemente lhes dar um programa já pronto, mas espero chegarmos a ele um dia.

amf: Quais seriam as disputas inúteis às quais a senhora se referiu?

Florence Guignard: Penso que tudo aquilo que seja uma visão unilateral da psicanálise é inútil. Ou seja, quando tratamos só da linguagem, só do desenvolvimento, só das pulsões, só as relações de objeto, só do ego ou do self etc. É como quando vemos a lua, vê-se apenas uma face, não o outro lado! Em nossa profissão devemos integrar diversas abordagens. A dificuldade surge quando estamos excessivamente convencidos de ter razão; é sempre a "crença" que nos causa dificuldades. Nós temos e devemos ter crenças, caso contrário não podemos funcionar, mas devemos ter crenças que sejam colocadas em questão o tempo todo e é por conta disso que o trabalho clínico é maravilhoso. Todos os dias nossos pacientes nos colocam em questão, portanto, obrigada pacientes!

amf: Qual a importância de trabalhar com crianças para a formação dos psicanalistas?

Florence Guignard: É essencial. Tenho a impressão de que certos colegas que trabalham exclusivamente com adultos têm medo das crianças, têm medo sobretudo de seus próprios aspectos infantis. Escrevi um livro sobre o infantil, que está traduzido para português. Aliás, sua primeira tradução foi feita aqui no Brasil1. Temos sempre uma parte infantil em nós, que é a parte mais viva, mais criativa e, com grande frequência, essa parte amedronta, por que funciona muito em processo primário, por assim dizer, não está completamente submetida à lógica secundarizada. Então, às vezes alguns colegas que trabalham apenas com adultos pensam que trabalhar com crianças não é muito interessante, mas na verdade isso é uma defesa!

amf: Na sua opinião, como seria um programa integrado na formação dos analistas? Como isso está sendo pensado pela ipa? Seria um programa voltado para todos os institutos?

Florence Guignard: Não necessariamente para todos os institutos, apenas para aqueles que o quiserem. Mas esperemos que apresente vantagens suficientes para constituir uma escolha possível entre outros caminhos oferecidos por uma Sociedade aos seus analistas em formação. De um modo geral, penso que poderíamos elaborar um programa com uma parte teórica comum na formação dos analistas de adultos, crianças e adolescentes. No âmbito da técnica, repito que é importante organizarmos seminários clínicos com casos de diferentes idades, para que os analistas se deem conta dos pontos comuns e das diferenças da técnica de acordo com a idade, bem como de acordo com a patologia dos pacientes. Foi o que tentamos fazer nos painéis apresentados ontem2, mas evidentemente um painel é algo de apenas uma hora e meia, com centenas de pessoas, não se pode trabalhar de modo mais detido. Outro instrumento de trabalho que vocês mesmos, entre candidatos, poderiam organizar, seria formar pequenos grupos de trabalho e fazer o que chamamos de intercontrole. Ou seja, um de vocês apresenta um caso de adulto, outro um caso de criança e outro de adolescente. Vocês verão por si mesmos as questões que surgem no grupo, e depois podem apresentar essas questões aos coordenadores.

amf: Em certas instituições é preciso fazer observação de bebês antes de começar a formação, o que a senhora pensa disso?

Florence Guignard: Acho uma boa formação, mas há também outras situações muito interessantes. Por exemplo, ir a uma creche, observar e, em seguida, discutir em grupo. As crianças entre um e três anos, e mesmo na escola maternal, entre três e cinco, são extremamente apaixonantes. Creio ser essa a metodologia da qual falava agora a pouco. Não é sempre, mas às vezes os psicanalistas de adultos que não têm experiências, por exemplo, com pacientes psicóticos, autistas ou psicossomáticos, não adquirem o hábito de observar aquilo que é não-verbal. Observar o corpo, os movimentos, os mimetismos. É por conta disso que a observação de bebês é tão importante, mas há outras situações em que também encontramos isso. Podemos observar em creches, escolas e, em seguida, tentar escrever sobre o que vimos, e isso é difícil! Quando temos que escrever sobre o que vimos, podemos depois nos dar conta que esquecemos toda uma parte da observação. É interessante analisar por si mesmo o porquê desse esquecimento. E se não temos o costume de observar, corremos mais o risco de nos deixarmos guiar por ideias feitas quando estamos com os pacientes, com preconcepções que não provocam efeito algum. Enquanto que se tivermos esse costume, teremos também o costume de conviver com o inesperado, com algo que não esperávamos e que aparece de surpresa, e isso é muito interessante.

amf: Como a senhora entende o fim de uma análise de criança? Há um fim ou uma "cura"? Em um tratamento qual é o seu objetivo?

Florence Guignard: Bem, vou lhe responder o que um dia me respondeu Donald Meltzer, com quem trabalhei bastante. Ele me disse sobre o fim de uma análise: "sabe, existem pessoas que precisam de um guia para ir de Londres até a China. E assim a viagem começa, e quando eles chegam, digamos, a Atenas, nos dizem 'muito obrigado, foi o suficiente'".

amf: A senhora poderia nos falar um pouco mais sobre essa ideia de defesa dos analistas de adulto com as crianças?

Florence Guignard: Acho que devemos ser modestos, os analistas de criança também têm defesas! Sabe, sofre-se muito quando se faz uma análise e tenho a impressão que certas pessoas guardam uma lembrança ruim ou bem de sua própria infância, ou bem da análise de sua neurose infantil e, uma vez terminada a análise, não querem voltar a esses lugares. Meltzer dizia que existem certas pessoas mais dotadas para análise de criança, e outras mais dotadas para análise de adulto. Creio que isso seja verdadeiro, tem pessoas que quando as colocamos com uma criança não compreendem absolutamente nada. Por isso também que a observação é importante. É um exercício metodológico que evita nos fecharmos demais em uma relação de linguagem muito secundarizada, verbal, enquanto a linguagem dos jogos e dos desenhos seria mais próxima dos processos primários. Então, se tivermos a capacidade e a sorte, podemos fazer uma ponte entre os dois.

amf: Em análise de criança, com frequência se coloca uma questão sobre a interpretação e o poder do brincar em si mesmo, seu poder terapêutico. O que a senhora pensa sobre essa polêmica entre interpretações que utilizam a linguagem verbal e as que utilizam o brincar?

Florence Guignard: Sua questão é tanto válida para as crianças, quanto para os adultos. Quer dizer, interpretamos apenas o conteúdo ou interpretamos alguma outra coisa? E se for outra coisa, o que será que interpretamos? Pois bem, o jogo nos permite brincar com a interpretação. Por exemplo, uma colega analista relatava muitas brincadeiras em que chorava colocando-se no lugar do bebê que era maltratado pelo paciente. Depois de escutá-la fiquei pensando que seria também interessante brincar com o sadismo da criança, dizer: "sim, vamos matá-la, fazer picadinho dela, continue, vamos lá!", sempre dentro do brincar. E por quê? Porque é muito importante para o desenvolvimento do ego alcançar uma boa integração do sadismo primário. Foi Melanie Klein quem estudou bastante essa questão, e eu também a retomo em meus trabalhos. Se no brincar o analista coloca muita ênfase no sofrimento que a criança submete aos seus brinquedos, chorando pelas vítimas de seu sadismo, a criança sente-se cada vez mais culpabilizada. Portanto, é importante sustentarmos esse sadismo, até o momento em que a própria criança possa ver o outro lado de si mesma e dizer "mas é terrível ter matado esse bebê, e me sinto tão mal por isso". Tudo isso pode ser feito no brincar. Com uma criança de três anos dificilmente lhe diríamos "você se sente culpada porque sua mamãe etc...", isso nunca iria funcionar. Um dia tive uma supervisão com Herbert Rosenfeld e lhe contei o caso de uma paciente adulta muito histérica e muito agressiva, que tinha me contado um sonho em que havia um leão. Não sabia o que fazer com isso, pois ela era inteligente o bastante para saber que esse leão tinha vontade de me comer. Enfim, tudo aquilo que poderia ser dito com palavras não lhe serviria de nada. Bem, Rosenfeld então se pôs a rugir como um leão e disse: "Arrrgh!". (risos) E, no entanto, era uma paciente adulta! O brincar é nosso aliado mesmo com adultos. Penso que com o complexo de Édipo é a mesma coisa, não vale a pena interpretá-lo, pois o paciente geralmente o interpreta sozinho. Conheço um menininho de quatro anos que não come frutas e não suporta que seus pais as comam, no café da manhã. Ele fica em outra sala e só volta quando eles terminaram de comer, e não há mais frutas sobre a mesa. Um dia, fui até ele e disse "mas sabe, não é comendo frutas que se fazem bebês!". E sabem o que ele me respondeu? Ele me disse: "eu sei, mas tenho medo mesmo assim". Se eu tivesse dito "quando a sua mamãe e seu papai comem frutas, você imagina que eles fazem um bebê, blá-blá-blá...", isso teria sido superegoico e traumatizante. Ele entendeu seu movimento psíquico, pois me disse "eu sei, mas tenho medo assim mesmo". Não se trata de uma fobia estruturada como a do "Pequeno Hans", pois há um espaço de jogo: ele acredita sem acreditar.

Vejam só, uma vez escutei meu analista me dizer durante uma sessão: "isso que você falou é bem edipiano!". O que você quer que eu faça com isso? Absolutamente nada, isso não é uma interpretação. Temos muitos colegas italianos, como o Antonino Ferro, que inventaram algo maravilhoso a partir da linguística italiana, a linguística revisitada por Umberto Eco. Eles usam muito a criação de uma narrativa. A narrativa também é um modo de brincar, ou seja, não fazemos uma interpretação do tipo "você é assim, porque aquilo lá", não há causalidade curta, apenas um diálogo, uma narrativa de sonho a dois. Por exemplo, Ferro conta que em sua primeira sessão de análise disse: "sonhei com um lobo usando óculos". E seu analista, que usava óculos, então lhe respondeu: "deve dar muito medo ter atrás de si um lobo usando óculos!" (risos). Essa é uma interpretação melhor aceita do que se ele tivesse dito: "eu uso óculos, você tem medo de mim por que estou atrás de você". Portanto, o brincar, assim como a narrativa, é um elo maleável e dinâmico entre o processo primário e o secundário. Não devemos ter o culto à linguagem verbal secundarizada, mesmo com os pacientes adultos, sobretudo com os adultos.

amf: É o brincar que integra a psicanálise de adultos e de crianças?

Florence Guignard: Sim, e é nisso que os analistas de crianças podem contribuir para a análise de adultos. Tem analistas de adultos mais dotados para o humor do que outros, por exemplo. Mas curiosamente, quando estou assim viajando pelo mundo, tenho muito mais facilidade de me comunicar com analistas de criança, mesmo que sejam de escolas bem diferentes. Já trabalhei com grupos lacanianos, junguianos, e sempre encontro pontos em comum mais facilmente entre aqueles que trabalham com crianças.

amf: A senhora poderia nos falar um pouco mais sobre seu percurso na psicanálise?

Florence Guignard: Bem, nasci em Genebra e fiz metade da minha formação na Suíça. Como havia dito, fiz minha análise com Raymond de Saussure, e minhas primeiras supervisões e seminários foram com René Spitz, que morou em Genebra por seis anos, bem como Olivier Flournoy, René Henny, Michel Gressot e outros. Havia muitos médicos e psicólogos estrangeiros em Genebra, sobretudo portugueses, espanhóis e italianos, que estavam lá para fazer a formação, pois na época não haviam Sociedades de Psicanálise em seus respectivos países. Tínhamos também uma influência da América Latina, porque Raymond de Saussure trouxe para Genebra Marcelle Spira, que havia feito sua análise em Buenos Aires e trabalhado especialmente com E. Pichon-Rivière. Por outro lado, como trabalhava com Ajuriaguerra, tive também a chance de conhecer analistas franceses que vinham todo mês à Genebra para oferecer seminários e supervisões. Foi assim que trabalhei regularmente com Serge Lebovici e René Diatkine. Também com Michel Fain, que reencontrei em Paris e que foi meu supervisor quando emigrei e tive que recomeçar toda minha formação na Société Psychanalytique de Paris (spp). Naquela época uma formação feita no estrangeiro não era reconhecida; acho que hoje em dia está um pouco diferente. Em Paris trabalhei com diversos analistas da spp e rapidamente tornei-me membro titular responsável pela formação. Fala-se bastante dos modelos de formação analítica Eitingon, uruguaio e francês, e talvez lhes interesse saber que o modelo francês nasceu a partir da revolução de maio de 68. Brevemente, essa revolta que começou nas classes operárias, rapidamente alcançou as classes intelectuais e os estudantes apoderaram-se dela para fazer uma revolta contra um certo conformismo intelectual tradicional. A spp não escapou dessa tormenta. Emergiu dela com critérios de formação mais flexíveis: três sessões semanais ao invés de quatro nas análises de formação, escolha quase livre dos seminários que os candidatos frequentariam para se formar etc. Desde então, algumas dessas liberdades de escolhas foram revistas, pois os cursos de formação estavam se tornando intermináveis. Portanto, fiz minha formação nesse modelo francês, sempre trabalhando, parcialmente no instituto Edouard Claparède e parcialmente em meu consultório, enquanto também criava meus filhos.

Nunca deixei de fazer psicanálise de criança e de me esforçar para ser aceita em minha Sociedade (spp) a ideia de organizar um ensino nesse campo. Como nem Annie Anzieu na Association Psychanalytique de France (apf), nem eu na spp, conseguíamos que tal formação fosse instituída em nossas Sociedades, nos juntamos para criar uma pequena Associação, a Association de Psychanalyse de l'Enfant (ape), que organizava finais de semana de trabalho e seminários clínicos e teóricos-técnicos. Essa Associação durou dez anos e teve um sucesso tão grande que em 1995 criamos uma segunda Associação, essa europeia, a Société Européene pour la Psychanalyse de l'Enfant e de l'Adolescent (sepea). Oferecemos já há três anos um programa de formação em psicoterapia psicanalítica de criança e adolescente. É algo que me exigiu muito tempo e trabalho, e algo que gosto muito. Fui presidente muitas vezes e até o ano passado. Atualmente sou a vice-presidente e responsável pela equipe da formação, o que de todo modo significa muito trabalho. Fora isso, no âmbito da ipa, sou Chair do Committee on Child and Adolescent Psychoanalysis (cocap), e lá também me esforço para reunir os psicanalistas de criança a cada congresso regional. Nilde Parada Franch, que é Co-chair da cocap para a América Latina, queria fazer esse encontro dos psicanalistas de criança aqui no congresso da fepal, como o fez há dois anos em Bogotá, e como fizemos em seguida em Londres, e depois em Paris nos congressos europeus. Mas ela não pôde realizar esse projeto aqui pois havia muitos painéis em atividade. Por outro lado, é a ela que devemos os painéis que vocês assistiram, com um caso clínico de criança comentado por um analista de crianças e outro de adultos, e vocês viram o sucesso que isso teve, a ponto de termos que abrir uma sala anexa à que apresentávamos!

amf: A proposta principal desse comitê seria a de uma formação integrada?

Florence Guignard: Sim, se propusermos um programa bem feito, isso será possível. Algumas pessoas dizem, "mas isso vai exigir uma supervisão a mais, quantas supervisões teremos que fazer!". Mas acredito que não exista nenhum analista no mundo que tenha feito somente duas supervisões em toda sua vida, todos buscam se aperfeiçoar.

amf: Para terminar, a senhora gostaria de dizer alguma coisa para os analistas em formação na sbpsp?

Florence Guignard: Em primeiro lugar, dizer que gosto muito da Sociedade de vocês, que já conheço há muito tempo, e onde tenho cada vez mais amizades. Penso que, de um modo geral, a América Latina tem sorte, porque existem formações muito boas em suas Sociedades. É claro que vocês conhecem em detalhes a formação daqui e certamente têm críticas a fazer. Felizmente as têm, deve sempre haver críticas para que possamos melhorar. Mas mesmo assim, acho que vocês têm sorte pela formação daqui, pois traduzem muitos autores estrangeiros de diversas escolas diferentes, e isso lhes permite abrir para essa pluralidade. Acontece o mesmo em outras Sociedades latino-americanas, não as conheço todas, mas sei que é o caso do Uruguai e da Argentina, pois já tive a oportunidade de trabalhar com colegas desses países. Na Europa encontramos a mesma configuração na Espanha, Portugal e Itália. São Sociedades mais jovens do que as Sociedades francesas, e que também têm a modéstia de buscar autores de outras culturas para se nutrir. Se existe uma coisa importante, do meu ponto de vista, é a de buscar e nunca parar de buscar. Jamais pensar que já encontramos, essas seriam talvez as minhas últimas palavras.

amf: Muito obrigado pela sua gentileza e por nos transmitir sua experiência.

Florence Guignard: Eu que agradeço, fiquei muito contente com nosso encontro!

 

 

Florence Guignard é psicanalista da spp (Sociedade Psicanalítica de Paris), atual Chair internacional do cocap (Comitê de Psicanálise de Crianças e Adolescentes) da ipa, e autora de diversos livros, entre eles O Infantil ao vivo e Cartas ao Objeto, ambos publicados no Brasil pela Imago. A entrevista foi concedida à Associação dos Membros Filiados (amf) e ao Jornal de Psicanálise durante o 29º Congresso da fepal em São Paulo, no dia 12 de outubro de 2012. Participaram da entrevista Alexandre Socha, Cynthia Peiter, Maria do Carmo Meirelles Davids do Amaral, Rejane Câmara Cutrim, Rita Andréa Alcântara de Mello e Yeda Alcide Saigh.

 

 

1 O infantil ao vivo: reflexões sobre a situação analítica. Rio de Janeiro: Imago, 1997.
2 No Congresso fepal 2012, Florence Guignard participou de dois painéis, aos quais aqui se refere: um, onde analistas de crianças comentavam um caso adulto, e em seguida outro em que analistas de adultos comentavam um caso infantil.