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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.45 no.83 São Paulo Dec. 2012

 

REFLEXÕES SOBRE O TEMA

 

Contando do começo

 

Talking from the beginning

 

Contando desde el inicio

 

 

Vera Lucia Colussi Lamanno Adamo

Membro efetivo e analista didata da SBPSP e do GEPCampinas

 

 


RESUMO

A partir de uma experiência clínica realizada durante o processo de formação em psicanálise, a autora discorre sobre com quem vem aprendendo psicanálise. Mais especificamente, com quem vem aprendendo a articular medo, morte, paixão e criatividade.

Palavras-chave: transmissão da psicanálise, medo, morte, paixão, criatividade


ABSTRACT

Through a clinical experience occurred during psychoanalytic training the author discusses about with who she has been learning psychoanalysis. More specifically, with who she has been learning how to articulate fear, death, passion and creativity.

Keywords: psychoanalytical transmission, fear, death, passion, creativity


RESUMEN

A partir de una experiencia clínica que sucedió durante el proceso de formación en psicoanálisis, la autora discurre el tema sobre como viene aprendiendo psicoanálisis. Más específicamente, con quien viene aprendiendo a enlazar miedo, muerte, pasión y creatividad.

Palabras claves: transmisión del psicoanálisis, miedo, muerte, pasión y creatividad


 

 

Ela se chamava Ana. Uma mulher de 37 anos. Parecia ser uma mulher tranquila e em paz consigo mesma. Seus filhos cresciam, o marido retornava à casa na hora certa. Ana dava conta de tudo - casa, marido, filhos.

No entanto, certa hora da tarde era perigosa. Certa hora da tarde, tudo o que havia construído ria dela. Quando nada mais precisava dela, inquietava-se.

Mudara muito desde que se casara e tivera filhos. Antes de virar mulher, na adolescência, uma exaltação perturbadora, uma turbulência insuportável. Apesar da mudança havia ainda a hora perigosa. Para precaver-se dela saía, fazia compras no supermercado, levava os objetos para consertar. Quando voltava seus filhos já estavam por chegar e só restava cuidar deles até que a noite chegasse com sua tranquila vibração.

Um dia, um pouco cansada e com as compras já feitas, numa daquelas horas instáveis do final da tarde, enxergou um homem no ponto do ônibus. O homem estava parado, imóvel. Era um homem cego. Então ela viu: o homem cego mascava chiclete.

Não conseguia tirar os olhos de cima dele. Não conseguia deixar de olhá-lo profundamente. O coração batia espaçado, forte. As compras caíram de suas mãos. Ana deu um grito. Tentava se aprumar, pálida. Uma sensação, uma expressão de rosto há muito não usada, há muito não sentida, ressurgia-lhe incompreensível.

Os ovos haviam quebrados todos. As gemas amarelas e viscosas purgavam. O mal estava feito. Por quê? Teria se esquecido de que havia cegos?

Por um momento não conseguia se orientar, havia passado a rua da casa, parecia ter saltado no meio da noite. Seu coração batia de medo, em vão tentava reconhecer os arredores. Com muito custo retornou à casa. O filho se aproximou correndo, Ana apertou-o com força: "não deixe mamãe te esquecer", disse-lhe.

Depois veio o marido, jantaram e chegou a noite. Ana conseguiu por fim dormir. De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres.

Alguns poderão ter reconhecido Ana, é a personagem do conto "Amor" de Lispector (1993). É uma adaptação livre, um trecho da estória narrada por Lispector assim como me foi introduzida num encontro analítico. Após alguns minutos de silêncio minha analisanda disse que estava tão bem, mas que assim que se deitou no divã começou a sentir raiva. Achava que era raiva, mas não tinha muito certeza disso. "Parecia tudo tão bem e agora essa sensação ruim", disse. Depois de uma pequena pausa perguntou: "Por que estou me sentindo assim?". Disse a ela que se assustava sair da tranquilidade. "Se eu deixar sair tudo o que está aqui dentro, nem sei o que aconteceria", respondeu.

Depois, se manteve em silêncio. Seu corpo estava imóvel no divã, percebo que apertava com força os braços cruzados sobre o peito. Foi então que ela recorreu à Lispector para falar de sua hora perigosa, sobre a mulher que de repente perdeu a serenidade. Ela que havia cuidado tanto para não explodir, ela que tentava vigorosamente manter tudo em tranquila compreensão, de repente, tudo isso sendo rompido para dar lugar à cegueira. Cegueira curiosa, mascando chiclete. O que o cego provocou parecia não caber nos seus dias, no seu corpo teso. Esgotou-se o cotidiano, o igual ao mesmo.

E Lispector nos brinda de forma muito especial com personagens que nos revelam o caos, o terror e o êxtase presentes num estado de expansão. A vida psíquica negada que, de repente, explode é um traço comum nas personagens de Lispector, há ódio, amor, ternura, medo, desamparo e alegria anestesiados pelo silêncio e que subitamente latejam e purgam.

Após introduzir o seu duplo especular, personagem de Lispector, Ana ficou em silêncio por algum tempo. Em seguida perguntou: "Clarice Lispector se suicidou?".

Lembro-me de ter conversado com ela, nessa ocasião, sobre essa pergunta que continha várias outras dentro de si. Seria possível experimentar o desejo, a necessidade e o vazio e continuar viva? Seria possível suportar tamanha tensão? Preferível a morte? Preferível a vida psíquica congelada mesmo tendo como consequência a cabeça oca e uma miserável solidão? Então ela me disse: "acho que é por isso que muitos artistas se suicidam, é quase sempre impossível tolerar essa coisa, essa explosão, mas talvez é por tolerarem tudo isso é que são artistas".

- Ou criam ou morrem. Murmurou.

Já escrevi sobre este meu encontro com Ana, numa outra ocasião (Lamanno, 1998), mas agora, lançada a questão - com quem aprendemos psicanálise - tomo a experiência clínica com Ana como um fato selecionado (Bion, 1965/1983). Um fato que agrega elementos dispersos que dizem respeito sobre com quem venho aprendendo psicanálise. Mais especificamente, com quem venho aprendendo a articular medo, morte, paixão e criatividade.

Sempre que penso em Ana, lembro-me claramente desse momento: ela me perguntando "Clarice Lispector se suicidou?" Então o silêncio e depois o seu murmúrio: "Ou criam ou morrem".

Lispector não se suicidou: "quase vivo, quase morro, confessou, quase poderia me lançar pela janela do meu sétimo andar, mas não me lanço". (Waldman, 1993, p. 20)

Lispector escrevia: "escreve-se porque se sente sozinho no mundo, o que não é uma verdade de fato, mas uma verdade íntima. Minhas intenções se tornam mais claras ao esforço de transpô-las em palavras. Escrever é compreender melhor. Escrevo porque o que é que eu faria dessa onda de amor que às vezes existe em mim? Escrevo por amor? Escrevo porque amo e odeio o mundo? Escrevo porque se dói muito escrever, não escrever dói também mais. Escrevo para saber porque nasci". (Waldman, 1993, p. 21)

Ana me procurou em meados de 1988. Lembro-me pouco do que me disse neste primeiro encontro, mas me entusiasmei por cuidar dela, percebi uma profunda angústia em seu olhar, parecia estar fechada em si mesma numa espécie de clausura. Mas Ana não tinha, naquele momento, consciência da solidão e do desamparo em que vivia. Seu olhar era apagado, parecia viver num mundo nebuloso e indefinido.

Ao longo de nossos encontros, Ana foi mostrando suas oscilações entre um psiquismo anestesiado e imobilizado e a satisfação de se sentir viva, de existir, de estar sendo.

Entre estas duas posições o coração de Ana hesitava, às vezes questionava inquieta: "quando é que eu vou deixar de pensar que o bom é ficar sem vida, estagnada?". Outras vezes, parecia fascinada por um estado mental adormecido, imóvel, anestesiado.

Um dia ela me perguntou: "você já fez galinha dormir, Vera?"

Quando eu era criança, contou, eu e meus irmãos brincávamos de circo no quintal, eu tinha uma especialidade que era só minha: fazer galinha dormir. À princípio, disse, eu fazia só uma galinha dormir, mas depois com o tempo, fui me tornando uma verdadeira expert no assunto, não era mais uma, mas duas, três e, às vezes, até cinco galinhas dormindo ao mesmo tempo. Elas não podiam acordar, nenhuma delas, quando uma dava sinal de vida, Ana saia correndo para coçar a cabeça da galinha, para colocá-la dormindo novamente.

Semelhante ao que fazia com as galinhas, Ana fazia também com o que desse sinal de vida em seu interior. No decorrer de sua existência, foi desenvolvendo uma verdadeira arte de adormecer o seu psiquismo, de fazer dormir os seus conflitos, desejos e necessidades. Ao longo de nossos encontros, vivenciamos inúmeros acordar e dormir, despertar e anestesiar.

Durante a análise, Ana residiu no exterior por um ano e resolvemos neste período nos corresponder por carta. Numa delas, Ana relatou ter acordado de madrugada, nevava muito, estava muito frio e sentia-se muito só. Desceu para a sala, abriu a cortina e se pôs a observar os flocos de neve caindo sem parar: naquele momento, escreveu, pensei em você e aquele sentimento horrível começou a diminuir. A neve caindo, prateada por causa da luz da sala, a lembrança de você sentada atrás de mim e eu deitada no divã, tudo isso me acalmou.

Foi uma carta bonita, fiquei emocionada e me pus a escrever:

Ah! Saudade
Sentimento colorido
Nem cinzento cor da despedida
Nem dourado cor do reencontro
Prateado

Nem dourado cor do reencontro, dourado é a cor real da posse, do gozo. Nem cinzento cor da despedida, cinzento é triste, diz respeito à perda, à separação. A saudade habita entre os dois, uma mistura do cinzento e do dourado, uma coincidência de choro e de sorriso, por isso: prateado.

Numa outra ocasião, já de volta ao Brasil e durante as minhas férias, Ana começou a apresentar alguns episódios somáticos: tremores no queixo e movimento involuntário da língua e das mãos. Durante a sua juventude, quando se mudou para uma outra cidade para fazer cursinho e prestar vestibular, havia tido episódios de leves convulsões que foram diagnosticados como disritmia. Agora, no momento em que enfrentava novamente angústias relativas à aquisição de um senso de existência, Ana apresentava os mesmos sintomas. Me relatava seus medos de se tornar uma inválida, incapaz de produzir, incapaz de cuidar de seus filhos e de sua casa. Parecia que Ana tinha perdido o ritmo de sua vida e de sua consciência. Seu corpo tremia sobre o divã, parecia um recém-nato descontrolado, tomado por convulsões.

Havíamos chegado na sua hora perigosa mencionada anos atrás. Despertando do seu mundo anestesiado pelos calmos deveres, sentia perder o controle, estava frágil e aterrorizada. Tal como a Ana, de Lispector, a Ana, minha analisanda, começava a perceber que

há muito passara do seu ponto de descida, na fraqueza em que estava, tudo a atingia com um susto ...por um momento não conseguia orientar-se, parecia ter saltado no meio da noite. (Lispector, 1993, p. 34)

Neste período, árdua e persistentemente, Ana colocava suas "galinhas para dormir". Movida por forças alienantes, o seu imobilismo psíquico tinha como função negar e anular a ação, o movimento, a inovação e a mudança. E me lembrei de uma ocasião, quando me relatou que se imobilizava porque essa era a única forma de se manter inteira. Se desse vazão aos seus sentimentos, perderia pedaços de seu corpo: "é como se eu fosse perder pedaços do meu corpo, minha perna, meus braços".

Na ocasião, me ancorei no conceito de Green (1988) sobre o narcisismo negativo ou de morte, uma busca ativa não da unidade, mas do nada, isto é, de uma redução das tensões ao nível do zero, que é a aproximação da morte psíquica. Esta petrificação do eu visa a anestesia e a inércia na morte psíquica.

Acompanhando a voz fraca e trêmula de Ana, sua face empalidecida pelo medo da loucura, me fiz também acompanhar por Anaïs Nin (A casa do incesto, 1991). Na casa do incesto tudo tinha sido feito para ser imóvel, uma vez que todos tinham medo do movimento e do calor.

é o mundo dos maravilhosos silêncios dos gêmeos, o mundo em que todos os sentimentos parecem brotar da mesma fonte, o mundo onde se perde as identidades separadas...embriaguez de rotação, plenitude. (Nin, 1991, p. 67)

Ana teria que atravessar o túnel que a levaria da casa do incesto para um mundo habitado por uma psique com vida. O interior da casa do incesto, escreveu Anaïs:

é o espaço da dançarina dançando a dança da mulher sem braços, como se fosse surda e não acompanhasse o ritmo da música, movida por alucinações que ninguém mais via...uma mulher de castanholas soando como os passos de um fantasma. (Nin, 1991, p. 68)

Ana foi minha primeira analisanda, minha primeira experiência com o trabalho psicanalítico. Foi a paciente que escolhi para fazer a minha primeira supervisão oficial. Judith Andreucci foi quem me acompanhou neste processo. Lembro-me que, na época, muito tocada e curiosa pelas ideias que Judith engendrava, a cada supervisão, me pus a ler todos os seus trabalhos. Um deles, realmente, me encantou: Aquele Olhar (1979). Um texto psicanalítico em forma de poesia, pensei. Hoje diria um pouco diferente: a construção poética de uma psicanálise e de uma escrita analítica.

Um dia disse a Judith o quanto havia gostado daquele seu texto - Aquele Olhar - e ela me contou que não queriam publicá-lo, porque aquilo não era um texto psicanalítico, aquilo era poesia. Mas publicaram.

Como figura de fundo: minha análise didática. Eu às voltas, junto com a minha analista, companhia viva, com o "ou criar ou morrer", e um crescente desejo de desvendar os enigmas da criação. O que ocorre na mente quando escrevemos, pintamos, poetizamos?

Escrevi alguns ensaios e os entreguei a Judith. Algum tempo depois ela comentou: "Vera, o que você quer desvendar é um enigma que tem estimulado a curiosidade do homem desde que ele conseguiu se debruçar sobre si mesmo. Filósofos de Platão a Kant tentam desvendar este mistério: como se deu o grande salto da matéria à imaginação?"

Após um pequeno silêncio e com muita delicadeza, Judith sugeriu que eu escrevesse um texto adicional, e que eu poderia intitulá-lo: o corredor do silêncio. Neste texto eu poderia, por exemplo, tecer considerações sobre como o ato criador desliza continuamente num corredor silencioso, corredor de miragens, onde o desejo de decifrar enigmas não é jamais realizado por inteiro.

Mas o desejo persiste, movimentando o invisível moinho da criação. Intitulei, Encantos de vida em cantos de morte, o relatório da minha experiência analítica com Ana. Sobre a escolha deste título escrevi:

Quando pensava que palavras poderiam melhor sintetizar e trazer à luz o fenômeno psíquico que mais caracterizava um determinado funcionamento psíquico de Ana, subitamente me deparei com a palavra canto. Dessa palavra não consegui mais me desvencilhar, talvez, pelo seu duplo sentido. Expressão melodiosa de acordo com um determinado ritmo. Significa também, ângulo de encontro entre duas paredes, duas ruas, dois caminhos. Encantos de vida em cantos de morte, mas também o contrário: encantos de morte em cantos de vida. Ambas as possibilidades. Encantos de vida em cantos de morte me ajuda a entender um pouco melhor como a vida que parece existir por si só, com todos os seus encantos, ser o que é de mais natural, como ela é, na verdade, tensionada por todos os lados. Podemos nos encantar com os cantos que abrigam a morte. Aqueles cantos (cantos da sereia) que encantam pelo seu estado imóvel, pela imobilização no zero, pela indiferenciação. Nesses cantos a vida, por vezes, se encanta com a morte e sua figura de ser absoluto. Ali, nos cantos de morte reside a última defesa. Quando não há nada mais à disposição, decretada a falência de todas as demais defesas, a vida se encanta, acuada nas suas trincheiras, com a inexistência.

Ou criamos, ou morremos, murmurou Ana, naquele final de tarde. No nosso último encontro, Ana me entregou num pequeno pedaço de papel, uma poesia sua. Era dezembro.

Como negar a dor da despedida,
se já aprendi a doer?
Por que o medo da solidão, se por nascer somos todos sós?
Como não admitir a alegria do crescimento,
se agora tenho um caminho a trilhar?

Num voto de fé,
que minha casa tenha portas sempre abertas
e a dor e o prazer eu possa abrigar;
que à tristeza da despedida
resista o sabor do encontro.

 

Referências

Andreucci, J. T. C. (1979). Aquele olhar: vivências psicanalíticas com alguém que não podia ver. Revista Brasileira de Psicanálise, 13(3),345-354.         [ Links ]

Bion, W. (1983). Transformações: mudança do aprendizado ao crescimento. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1965)        [ Links ]

Green, A. (1988). Narcisismo de vida - Narcisismo de morte. São Paulo: Escuta.         [ Links ]

Lamanno Adamo, V. L. C. (1998). O material clínico e o ato criador. Jornal de Psicanálise, 31(57),129-136.         [ Links ]

Lispector, C. (1993). Amor. In C. Lispector, Laços de Família. Rio de Janeiro: Francisco Alves. (Trabalho original publicado em 1960)        [ Links ]

Nin, A. (1991). A casa do incesto. Rio de Janeiro: Rosa dos Ventos.         [ Links ]

Waldman, B. (1993). Clarice Lispector: A paixão Segundo C. L. São Paulo: Escuta.         [ Links ]

 

 

Recebido em 1/11/2012
Aceito em 21/11/2012

 

 

Vera Lucia Colussi Lamanno Adamo. Av. João Mendes Jr. 180/17 | Cambuí 13024-030 Campinas, SP. Fone: 19 3254-0824. vera.adamo@ig.com.br