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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.45 no.83 São Paulo Dec. 2012

 

REFLEXÕES SOBRE O TEMA

 

Aquele olhar: vivências psicanalíticas com alguém que não podia ver1

 

That look: psychoanalytic experiences with somebody who couldn't see

 

 

Judith T. C Andreucci

Analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP

 

 


RESUMO

É nosso objetivo comunicar, através deste trabalho, os diversos e estranhos estados de mente expressos sobretudo pelo olhar da paciente.
Imobilizada, pela situação dramática que sua mente criou e usou como modelo em relação às diversas cissuras que a vida necessariamente apresenta, esta jovem arruinou todo o seu processo de crescimento, impedindo qualquer movimento mental criador. Imolou-se e cegou-se para o mundo real e para a realidade interna para impedir o desastre terrível que configurou como sendo a vida com seu movimento, sequência de inícios e fins, do nascimento à morte.
Através da vivência analítica, conseguiu modificar até certo ponto esta visão deformada e caminhou até onde seus olhos suportaram a luz da verdade.


ABSTRACT

Our scope is to present the various and peculiar states of mind showed mainly by the patient's looks.
This young girl ruined her development process avoiding all mental creative movements because she was immobilized by the dramatic situation created by her mind and used as a model to configure the different "fissures" that life offers.
To prevent the terrible disaster that she imagined as being life with its movements, sequences of beginnings and endings from birth to death she became immobilized and apparently blind.
Through analytical experience she was able to modify till a certain degree this deformed vision and finally could improve to the point that her eyes could bare the lights of truth.


 

 

Não sou, realmente, um homem de ciência, não sou um observador,
não sou um experimentador, não sou um pensador.
Nada sou, senão, um conquistador por temperamento, um aventureiro,
se quisesse traduzir a palavra com a curiosidade, a rudeza e a tenacidade
que compõem essa espécie de ser.
S. Freud

Aquele olhar foi o que me intrigou ao fitar a paciente pela primeira vez.

Moça de feições bonitas, ou melhor, lindas, mas que se diluíam com o impacto que causavam seus olhos, azuis, opacos, fechados, parados, olhos cegos sem expressão, olhos mortos...

Pareciam implantados no rosto, quais olhos de vidro.

Não me viam, não viam nada, não deixavam ver.

Os cegos não veem, mas expressam-se pelo corpo inteiro. Têm mil olhos.

A jovem, a quem me refiro, não era fisicamente cega, mas seu olhar parecia conter todas as cegueiras.

À medida que a ia observando, parecia-me que toda ela era velada, pétrea, impassível.

A voz, sem timbre, dava-me a impressão de um crepitar de folhas secas num chão ressequido.

Não havia entonação, era igual, no mesmo diapasão, voz sem vida...

Um arremedo de sorriso, ou antes, uma fissura estranha, por vezes, entreabria-lhe os lábios finos, sem expressão.

Toda ela tinha o ar imóvel, hirto, de uma estátua de granito fincada num mausoléu.

Apenas um movimento: sentava-se no divã (somente se deitou no último período da análise), na posição de um buda, mascando chicletes, com os quais fazia bolas com a boca e as estourava num crepitar monótono, incessante.

Havia saído há pouco de um sanatório ou não havia saído?

Não fazia, aparentemente, diferença...

A boca soltava sons de borracha, os olhos haviam-se apagado, a face era muda também.

Passei muito tempo a perguntar como poderia aventurar-me naquela imensa mudez.

E voltava a buscar uma fenda, uma fissura, sutil, através daquele olhar que atraía minha curiosidade e que me repelia com sua violenta opacidade.

Tenho visto muitos olhares de loucura onde o ódio explode, olhares de desprezo, nojo, fúria assassina, dor, medo...

Mas jamais vi algo como aqueles olhos.

Dizia-lhe que percebia o medo que teria de ver, sentir o que se passava ali comigo e o que havia dentro da sua escuridão.

Em outros momentos, quando o estalar das bolas de chiclete se acentuava, enchendo o silêncio, dizia-lhe que parecia sentir-se vazia como as bolas que se inflavam e se desfaziam...

Se, então voltava para mim, o olhar apagado, falava-lhe que me sentia uma bola vazia também, que nada lhe poderia dar.

Pareceu-me, certa vez, que procurava fazer as bolas bem grandes e aventurei-me a dizer-lhe que sonhava com um seio bem grande que tivesse sempre na boca que nunca lhe falhasse e eu estava tão distante...Movimentou desta vez a cabeça, o olhar vazio pousou em mim.

Pareceu-me ter havido algo, ou melhor, tê-la tocado num ponto sensível.

Quão longe estava eu, entretanto, àquelas alturas, de entender que não seria, propriamente, um seio que ela buscava alucinatoriamente, mas um interior de mãe onde ela pudesse sentir-se, existir.

Somente, muito tempo depois, pareceu-me ter isto traços de verdade, quando suas associações me permitiram suspeitar que o grande desastre teria acontecido, talvez, antes da primeira cissura, em termos de sensações terríveis, impossíveis de sentir e verbalizar.

Agora, junto dela, continuava a fitar aqueles olhos, a observar se algo de mim mesma, neles, encontrava eco: uma sombra de interesse, de compreensão, de ajuda. Mas eles não me responderam por um longo período.

A neblina espessa parecia impenetrável.

Certo dia, para surpresa minha, ela entrou na sala com um quase imperceptível brilho no olhar. Uma gota de luz.

E começou a falar, ou antes, a contar o que aqueles olhos de pupilas opacas, voltadas para dentro, começam a vislumbrar.

A princípio, descrição de palácios, depois, de forma curiosa, passou a narrar, minuciosamente, a história antiga de países longínquos, onde dizia haver estado, precisando, dias, meses, anos, com exatidão impecável.

Colocava-os numa ordenação temporal.

Olhar de catalogador ou de colecionador de fotografias, virando, apressadamente, as folhas de um álbum...

Observei que me falava de imagens visuais, algumas muito nítidas, outras meio veladas.

Entre elas, havia hiatos, fotografias brancas.

Era quando ela se quedava em silêncio.

Pensei que naqueles momentos ela não via nada com suas pupilas-lentes, pois me dizia: "não tenho nada na cabeça, ficou tudo branco...".

As pupilas-lentes só fotografavam quando não havia sol, não havia afetos, não havia luz.

As fotografias nítidas não lhe tocavam os sentimentos, não a perturbavam.

As brancas, as cegas, teriam sido, talvez, o resultado de explosões terríveis, num espaço mental onde os fragmentos se esfumaram, diluíram a tal ponto que perderam o sentido e a configuração.

O que teria acontecido a esta jovem mulher que não podia ver o mundo exterior e não suportava o conhecimento da sua realidade interna?

Seria para ela a loucura saber algo deste mundo que se ocultava atrás das paredes espessas dos seus olhos?

Agora, o olhar funcionava, selecionando fotografias que não a fizessem assustar, idealizando-as, transformando-as através das histórias de aventuras heróicas, da posse de tesouros maravilhosos.

Aos poucos, porém, a paciente passou a ajuntar as fotografias, fatos mais pessoais, da sua própria história ou, antes, fantasias que criara em relação a si mesma e ao seu mundo de objetos.

Fantasias essas que teriam raízes profundas, talvez em vivências, jamais possíveis de serem conhecidas, mas que deixaram modelos, rastros implacáveis.

O olhar apresentava, nestes momentos, lampejos, nos quais eu percebia que me via, sentia que me tomava como alguém que a podia entender em sua solidão.

"Sabe, lembro de uma coisa que perturbou toda minha infância como um pesadelo...

Até hoje não me deixa.

Minha mãe vivia lamentando o ter-me concebido.

Repetia, mil vezes, que sofreu horrores, vomitou os nove meses até o dia de eu nascer.

Padeceu dores tão medonhas que teria preferido a morte...

Vivia ameaçada de aborto.

Afirmava que tais foram os seus padecimentos que, após o meu nascimento, amarrou as trompas para não mais gerar. Acho que não foi mãe para mim, porra..."

Formulei-me perguntas: como poderia esta paciente ter criado um modelo de um bebê mal acabado, sempre prestes a ser expelido pela mãe, ainda, sem condições de vida? Surgiu-me a hipótese de que sensações profundas de morte, possivelmente, teriam contribuído para a paciente, desde o início da vida, configurar o mundo interno e o real como um útero assassino, desligando-se deles para refugiar-se num mundo de fantasias onde havia palácios repletos de tesouros maravilhosos que não findavam nunca.

O que haveria de tão tenebroso, em níveis da sua mente, que agora não podia ver, pensar, passar de um estado de mente para outro, enfrentar a mínima mudança, aceitar a vida com seu movimento, sequência de inícios e fins?

Será que esta jovem já nascera cega para a vida, para a luz, para o conhecimento ou se fora cegando aos poucos?

Algum fiapo de verdade teria contribuído para as fantasias ligadas às queixas repetidas da paciente como um cantochão: "Eu não tenho mãe, ela quis matar-me, ela me abafa, não vejo mãe...".

Desejo enfatizar que não quero afirmar que o episódio dramático a que a paciente se refere esteja, diretamente, ligado a uma situação real ameaçadora pré ou pós nascimento, mas que, se uma tal situação dramática é criada por uma mente, que pode ser usada como modelo, arruinando qualquer progresso futuro, qualquer movimento mental criador.

Disse à paciente que ela talvez não tivesse uma ideia de mãe, e, portanto, não poderia ter ideia dela como filha, criança, nem como pessoa adulta.

Precisava assinalar, com tanta precisão, datas, tempo, espaço, para poder marcar a sua presença indecisa, a sua passagem pela vida que temia tanto que não se sentia viver.

Com o passar do tempo, o seu olhar passou a adquirir, a espaços, alguma transparência, lampejos de expressão, quando buscava o meu.

"Sabe? Minha doença começou com o aborto. Não me sai da cabeça este aborto...

Até então eu vivia como uma criança obediente, boa demais.

Parecia despreocupada, desligada.

Mas um dia, não sei por que, entreguei-me a um homem que mal conhecia.

Parece-me que o vira apenas na véspera.

Era-me indiferente.

Entreguei-me uma só vez e fiquei grávida.

Era quase uma menina.

Minha mãe quando soube ficou alucinada.

Eu iria desmoralizar a família.

E assim como engravidei, abortei.

Ela levou-me no dia seguinte a um médico, sem me consultar.

Não a perdoo, nunca".

Perguntei-lhe se, realmente, quisera tanto o bebê, ou se haveria algo desconhecido, responsável por todo aquele ódio à mãe e ao mundo, que sentia nas suas palavras naquele momento.

Respondeu-me: "Não a perdoo por não me ter consultado, tratado como gente".

Disse-lhe que me parecia verdadeiro o seu desejo de ser tratada como gente, aceita como ser humano, principalmente por ela própria e por mim.

Estaria confundindo aquele aborto com abortos imaginários que a mãe teria efetuado, quando ela foi gerada.

Parecia-lhe a confirmação de uma monstruosidade que, na realidade, não sucedera, pois estava ali, comigo.

Contou-me que passou, desde então, a buscar homens que a maltratavam.

Apegava-se viscosamente a eles, até ser abandonada.

Pareceu-me que repetia, assim, os abortos através das sucessivas cissuras que realizava para não pensar.

Percebi que esta mulher não possuía a mínima auto-estima.

Tratava-se como um objeto inútil, incômodo, que os homens atiravam fora.

Confiou-me que, algum tempo depois do aborto, sofreu a primeira internação.

Permaneceu, longos meses, completamente desligada da realidade, num jorrar de fatos desconexos, entremeados de crises de fúria.

Movia-se sem parar na cela onde a isolaram e, só então, em meio da loucura, referiu-se ao aborto como a uma criança assassinada.

Foi depois desta crise que a conheci, quando me procurou, enviada pelo psiquiatra, com aquele olhar morto de pupilas apagadas.

Nada mais queria ver.

Muito tempo se passou para que nos pudéssemos aproximar.

E um dia seus olhos choraram.

Espantou-se. "Eu nunca chorei...".

Respondi-lhe que se estava sentindo gente junto a mim e gente sofria, chorava, mudava...

Estava naquele momento tendo essa experiência.

Fechou-se, imediatamente, para, pouco a pouco, tentar novas aproximações.

Percebi que se apegava a mim.

Confiava.

Interessava-se pelo que íamos descobrindo, retraindo-se e cada nova experiência reveladora.

A realidade objetiva foi-lhe muito adversa durante a análise.

Perdeu os dois únicos irmãos homens, sucessivamente, de forma violenta: desastre e morte súbita.

Casou-se e teve um filho.

Aparentemente, suportou todos estes fatos com equilíbrio.

Desejava, a todo custo, manter o casamento, porém o marido, alcóolatra e irresponsável, não o permitiu.

Foi uma nova cissura violenta.

Após a separação, caiu em depressão e sobreveio a crise.

"Tudo desmoronou, fiz o possível, mas foi em vão...".

Saiu do hospital e voltou à análise.

Já então, consciente da sua doença, das suas dificuldades e dos seus valores, da sua fraqueza e da sua força.

E, desta vez, veio disposta a ver, decidida a remover a catarata terrível que a cegara a vida inteira.

Iniciamos um período frutífero, no qual os olhos da paciente pareciam enxergar. Aprendia da experiência analítica, crescia.

Olhos que entendiam, olhos que sofriam, olhos que choravam.

A paciente saiu da sua imensa inatividade, para fazer algo, trabalhar na análise e na vida real.

Olhos que trabalhavam, olhos aflitos, medrosos, que queriam ver mas tinham medo da loucura.

Trabalhar lá fora já lhe era possível, com sucesso.

Conseguiu ser uma bibliotecária bastante eficiente.

Apegou-se ao filho, dedicava-se a ele, sorria, cantava.

Olhos que sorriam, olhos que se enterneciam.

Conhecer-se, porém cada vez mais, profundamente, na análise, assumirse em todos os aspectos, que iam sendo revelados, constituía uma ameaça crescente.

Certa vez, disse-me de forma inesperada:

"Não quero sair do meu trabalho de fichário e manter contacto com aquelas crianças abandonadas, repelentes, sujas, débeis, ranhentas, lá do orfanato.

São monstruosas, disformes. Uma, então, é imóvel, tem uma cabeça enorme, com um olhar parado, apagado...Sinto horror só em saber que existem." Disse-lhe que era demasiado para ela olhar-se por dentro, reconhecer-se nas crianças miseráveis.

Respondeu-me: "Sim, é demasiado. Tenho medo, não suporto. Já vi muito de mim, aqui na análise. Já posso viver. Preciso de uma pausa. Voltarei mais tarde quando me for possível. Já voltei de outras vezes...".

Percebi, naquele momento, num suceder vertiginoso, o pânico no seu olhar, centelhas de ternura e um apelo de compreensão.

Senti que não lhe seria possível ir adiante, pelo menos por ora.

Talvez voltasse, talvez não voltasse jamais...

Havia visto muito na análise, até onde os seus olhos penumbrentos conseguiam ver.

Talvez precisasse ser meio cega para sobreviver.

Desta vez, porém, fora ela quem decidira, pela primeira vez, assumir a cissura, pois parecia que esta teria, agora, um sentido diferente; um sentido de vida.

E assumiu a interrupção do nosso trabalho que consistia em tornar aquela realidade oculta através das suas pupilas opacas, cada vez mais límpida em sua verdade.

Naquele instante, em que nos separamos, pareceu-me que, para ela, continuar o caminho para a luz seria o desastre; interrompê-lo, a sobrevivência.

Obrigada, minha corajosa paciente, por nos ter permitido ver até onde te foi possível. Talvez assim, com este pouco, que para ti foi tudo, possas continuar a viver, a trabalhar no teu fichário, a criar o teu filho que, agora, começas a aprender a amar...

 

Referências

Jones, E. Vida e Obra de S. Freud.         [ Links ]

Bion, W. R. Caesura.         [ Links ]

 

 

Nota - Considerações psicanalíticas sobre este caso serão apresentadas num segundo trabalho.
© Gentilmente cedido pela Revista Brasileira de Psicanálise
1 Trabalho original publicado pela Revista Brasileira de Psicanálise, 13(3):345-354, 1979. É republicado aqui por sugestão da Divisão de Documentos e Pesquisa da História da Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise (ddphp-sbp), como parte das comemorações do centenário de nascimento de D. Judith Seixas Teixeira de Carvalho Andreucci (1913-2001).