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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.45 no.83 São Paulo Dec. 2012

 

REFLEXÕES SOBRE O TEMA

 

Breves observações sobre "Aquele olhar - vivências psicanalíticas com alguém que não podia ver" de Judith Teixeira de Carvalho Andreucci1

 

 

Antonio Sapienza

Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP

 

 

67 Ó Suma Luz que tanto, dos errantes mortais, te elevas, ora à minha
mente um pouco reapareças como dantes
70 e faças minha língua tão potente que uma centelha apenas de tua
glória possa deixar para a futura gente.
(Dante Alighieri, 1998

O vértice destas observações restringe-se a deduzir e ainda expor conjecturas racionais e imaginativas a partir de impressões e reverberações pessoais a partir da leitura de funções exercidas pela analista na descrição de seu texto. O tom da narrativa assemelha-se à descrição de um romance mítico primitivo, cuja leitura permite acompanhar a competência e sensibilidade da analista pelos tortuosos avatares da analisanda, em oscilante e turbulento ritmo de contínua suspensão.

O leitor poderá acompanhar a criação e o uso de instrumentos para lidar com a crise emocional da paciente em andamento, pois novas ameaças de colapso psicótico reaparecem. Paulatinamente, abrem-se incursões em áreas de ruínas arqueológicas, com sucessivos resgates de resíduos e fragmentos (débris) de catástrofe primária. O quadro pictórico inicial desenhado pela analista é o de uma imagem que lembra a personificação dramática de bizarra Medusa, modelo de aterrorizada e aterrorizante castração mental, qual morta-viva "modernizada", em posição de um buda no divã, emitindo como que bombas atômicas explosivas e violentas através de continente chicletado e desprovidas de conteúdo verbal. Quem sabe haja resíduos de configuração edipiana em que a paciente poderia acreditar-se "Virgem" que ao mesmo tempo teria a missão de destruir ditador militar absolutista, como se estivesse destinada a equiparar-se a "Lord Wellington" ao derrotar Napoleão Bonaparte em Waterloo?!

Desde o início destacam-se características de paciente em estado de choque traumático pós-guerra e com evidências de estar sofrendo grave desastre mental; seu estado de mente é de intensa fragmentação, com jogos dramáticos de improvisação de uma personalidade. Leve-se ainda em conta que o suposto básico de guerra continua ativo, por ataques e evasões na experiência da sessão analítica. Na prática clínica, podemos conjecturar que o contato com as camadas arqueológicas de analisanda nesse estado colocaria cada analista diante de possível encruzilhada: entre o "otimismo" de Freud, o qual buscava reconstruir a civilização perdida, e o "pessimismo" de Bion, que visava reconstruir as bases da catástrofe já ocorrida e ainda em atividade, ou seja, iluminar "Mudança Catastrófica".

A estratégia da analista mostra sua capacidade de usar sutil sondagem sem se deixar aprisionar por "desejos de cura". Valoriza a comunicação entre emissor e receptor em busca de restabelecer senso comum através do que possa vir a ser verbalizado. Mostra-nos como a crise de fé em Psicanálise é persistente e vem acompanhada do Princípio da Incerteza de Heisenberg; tais vetores de ação psicanalítica permitem abordagem significativa de conflito nuclear da analisanda, qual seja: a paciente busca fusão com o Amor Absoluto, através de eterno idílio de êxtase e sentimento oceânico, via "idealizações", e daí também sua queda na polaridade frustrante do Amor Assassino e Suicida. Esta dupla tendência sustenta adição paradoxal em jogos infindáveis de polarização que caracterizam "pactos de morte" (impulsos assassinos e suicidas), manifestados em seu vasto currículo de relações fracassadas, desde as possíveis "tentativas de aborto" dentro da própria mãe, qual permanente "bebê não-nascido".

Há excelente demonstração didática ao Judith abordar estados de mente na vertente de "pensamentos a procura de quem os pense", com refinados dotes de trabalho-de-sonho alfa. Assim podemos ler e correlacionar voluntária renúncia parcial a forças de ego pela analista em contraste com estado de desmantelamento catastrófico da personalidade psicótica da paciente. Vale agora destacar significativo ponto de viragem nas qualidades de comunicação da parceria analítica, episódio narrado que começa com a seguinte frase: "Se, então voltava para mim, o olhar apagado, falava-lhe que me sentia uma bola vazia também, que nada lhe poderia dar" (p. 60). A sequência do texto de Judith continua com belo e surpreendente movimento de fragilidade humana da analista, tendo como suporte sua vigorosa e suave renúncia às ilusões de onipotência e onisciência, enquanto líder intelectual, capaz de digerir fatos indigestos, dirigindo suas interpretações às partes não psicóticas da analisanda. Assim Judith manifesta o uso da linguagem ideogramática, que transforma o concretismo de impressões sensoriais, quais conglomerados em fragmentação, e que requerem rearticulação, agora no universo dos sonhos e simbolização em evolução.

A perícia de Judith se revela mais uma vez na travessia de estados "catalépticos e catatônicos" no calor de cada sessão analítica, num combate face ao ferrolho e bloqueio mental da analisanda fiscalizada por superego feroz, qual mente aprisionada por terrorífica Medusa. Podemos assim acompanhar a suave e persistente penetração em áreas equivalente às descrições de Bion no "Mito do cemitério real de Ur". Há então manifestações de estado de mente dominada por "terror-sem-nome", cuja fonte vem a ser splitting de superego assassino e desta configuração emanam perigos e riscos de a paciente cometer crimes e também poder ser assassinada, qual vida dominada por linguagem de substituição (acting-out persistente).

Valorizemos a capacidade de continente dotado de elevado nível de precisão ao Judith usar rêverie calcada na capacidade negativa de personalidade e acompanhada de alto grau de intuição psicanaliticamente bem treinada. Esse equipamento permite tornar transparentes e diáfanas em Psicanálise áreas até então dominadas por opacidade. Esta abordagem metaforicamente implica a condição da analista conseguir instalar Noosfera (elementos alfa) em Psicoesfera (atmosfera de onde provém bombardeio de elementos beta); trata-se de um modelo extraído por Bion a partir de Teilhard de Chardin ("O fenômeno humano", 1955) e descrito em Cogitations (Bion, 1992).

Na interação entre as posições mentais descritas por Klein e em que Bion destaca o valor da sanidade em permitir as oscilações entre PSD, a escritora enfatiza a importância de cada analista levar em conta as limitações de nossa mente (não só da analisanda) em poder estabelecer contato e sonhar as passagens de EU/ISTO (ESTA COISA)EU/TU (Martin Buber). Constitui apelo a ser correlacionado às oscilatórias passagens de ConcretudeßàSimbolização, as quais incorporam também os enigmas dos movimentos entre "objetos não-existentes""objetos existentes". Tais condições requerem e exigem experiência de cada analista em áreas profundas e abissais de ordem depressiva (fruto também da análise pessoal de cada analista). Compõem parte do equipamento da analista que possibilita conter a "bem sucedida fraqueza" dos métodos astuciosos de evasão comandados pela personalidade psicótica.

Ao final do texto a analista sinaliza com certas reservas a retomada pela paciente de graus crescentes de produtividade e criatividade na vida social. Propõe-se, porém, a continuar suas reflexões a respeito do funcionamento ardiloso das personalidades psicóticas. Como que nos adverte desde já a respeito dos progressos da paciente não só no âmbito social; talvez quisesse de modo prudente deixar em aberto as avaliações mais significativas dos graus em que o/a paciente poderá tornar-se multidimensional, uma vez que as funções de atenção, memória e julgamento se conjugam constantemente ao estado da função alfa. Aí se encontra um campo aberto para futuras investigações psicanalíticas que permitam distinguir entre "sonhar verdadeiro" que promove a vida e "sonho" como continente para identificações projetivas, semelhante ao seio alucinado, que é deficiente em oferecer nutrição realista. Ocorreu-me o seguinte devaneio, estaria Judith intuindo configurações de bloqueios em que a analisanda, qual guerrilheira terrorista e aterrorizada, ao mesmo tempo estimula e atrai a curiosidade da analista e tenta aterrorizá-la, à maneira do experimento teórico do "gato de Schrödinger" encerrado e blindado numa caixa sem alimentos, em que a abertura da tampa emitirá dose mortífera do gás cianureto de potássio, matando instantaneamente o gato. Trata-se sinteticamente de um estado experiencial de terror mortífero, pois o "gato apavorado encontra-se ao mesmo tempo vivo e morto", em desespero e, além disso, isolado de provisões vitais e de revitalização.

Desse modo, Judith formula o valor da predição filosófica em cada análise ao final de seu artigo, propondo as seguintes ponderações na prática clínica: por um lado como que nos advertindo aos impulsos do "furor de cura'' e por outro lado abrindo nossa atenção aos graus do desastre primitivo e eventuais reparações possíveis na parceria com a analisanda. Este balanço ficará também na dependência do que tenha sobrado do acidente primário, face aos violentos ataques destrutivos desferidos às pré-concepções do seio e do casal parental. Em estados avançados de análise, presumem-se acontecer avaliações se houve preponderância de falhas primárias, por inveja excessiva do bebê, ou se tenha havido deficiências prevalentes das funções de rêverie do continente materno e parental (fatores ambientais).

A linguagem da analista é concisa e tem raízes na Poesia, evita jargões, baseia-se em suas virtudes de intuição psicanaliticamente bem treinada. Esse texto "Aquele olhar" constitui por si mesmo preciosa amostra da linguagem de realização da saudosa escritora, valorosa psicanalista e mestra Professora Judith Teixeira de Carvalho Andreucci. Parabenizo-a.

 

Referências

Alighieri, D. (1988). Canto XXXIII - "O Paraíso". In D. Alighieri, A Divina Comédia. (1ª ed.). São Paulo: Ed. 34.         [ Links ]

Bion, W. R. (1992). Cogitations. (pp. 313-317). London: Karnac Books.         [ Links ]

 

 

Antonio Sapienza. Rua Helena, 285/53 | Vila Olímpia 04552-050 São Paulo, SP. antsap@uol.com.br
1 Comentários ao artigo, solicitado pela Divisão de Documentos e Pesquisa da História da Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise (ddphp-sbp), como parte das comemorações do centenário de nascimento de D. Judith Seixas Teixeira de Carvalho Andreucci (1913-2001).