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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.45 no.83 São Paulo Dec. 2012

 

REFLEXÕES SOBRE O TEMA

 

Freud e a perspectiva exata florentina

 

Freud and the exact perspective florentino

 

Freud y la perspectiva exacta florentina

 

 

Orlando Hardt Jr

Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP

 

 


RESUMO

Aborda-se aqui a hipótese de que a metapsicologia teria sido uma invenção teórica de Freud, numa época em que ele olhava o futuro da civilização por outra perspectiva. Os textos metapsicológicos então produzidos - sem cair em algum tipo de sociologia freudiana - levaram a um método interpretativo das questões da cultura. Ao partir da análise individual rumo ao sociocultural, Freud conduziu nesse percurso alguns conceitos psicanalíticos para um conjunto mais amplo que o par normalidade/patologia, permitindo que a psicanálise avançasse em novas respostas/propostas para a civilização. O conceito da metapsicologia ainda daria conta de desafios vindouros e sua chave de abóbada seria a pulsão de morte: a pulsão por excelência, a expressão mais privilegiada do funcionamento psíquico.

Palavras-chave: metapsicologia, Brunelleschi, pulsão de morte, invenção


ABSTRACT

The text addresses the hypothesis that the metapsychology was Freud's theoretical invention, at a time when he was looking at the future of civilization from another perspective, so metapsychological texts produced led to a method of interpretation of the issues of culture, without leading into a freudian type of sociology. In that journey he left the individual analysis and headed to the social and cultural, extending certain psychoanalytic concepts to a wider set than the pair normality/ pathology. This has allowed psychoanalysis to advance to new propositions for the civilization. The concept of metapsychology will still contribute to challenges ahead, and its keystone is the death instinct, the drive for excellence, the most privileged expression of psychic function.

Keywords: metapsychology, Brunelleschi, death instinct, invention


RESUMEN

El texto aborda la hipótesis de que la metapsicología habría sido una invención teórica de Freud en una época en que miraba el futuro de la civilización desde otra perspectiva. Los textos metapsicológicos producidos llevaron a un método interpretativo de las cuestiones de la cultura, sin caer en un tipo de sociología freudiana. En ese recorrido, él partió del análisis individual en rumbo hacia lo socio-cultural, ampliando algunos conceptos psicoanalíticos como el par normalidad/patología. Esto permitió que el psicoanálisis avanzara hacia nuevas respuestas/propuestas para la civilización. El concepto de metapsicología aún atenderá desafíos venideros y su llave de bóveda es la pulsión de muerte, la pulsión por excelencia, la expresión más privilegiada del funcionamiento psíquico.

Palabras clave: metapsicología, Brunelleschi, pulsión de muerte, invención


 

 

Avançar é regressar ao fundamento, ao original e verdadeiro, do qual depende o princípio com o qual se começou.
Hegel

 

 

Introdução

Ao nomear o presente trabalho procuramos uma ideia que enriquecesse a expressão de seu propósito, uma vez que uma das dificuldades ao se escrever sobre psicanálise encontra-se na utilização de exemplos, cujas significações entre um leitor e outro podem ser indeterminadas. Foi interessante, por isso, a busca por um significado cultural, com um sentido amplo que, em exemplificar bem o essencial do título, fosse paradigmático para a especificidade do texto.

Em Florença, em princípios do século 15, Filippo Brunelleschi viu-se às voltas com um problema imediato de engenharia na cúpula da Santa Maria del Fiore: resolver a enorme cobertura do vão que restara inacabado quando da construção daquela catedral, concebida por Arnolfo di Cambio. Além de não poder recorrer às vigas de sustentação, havia a par disso algo mais profundo: como conciliar a potência construtiva do arco gótico - a solução possível na época - com fidelidade às proporções e transparência, valores característico da arquitetura florentina?

O problema comportava uma questão técnica e outra estilística. A planta gótica longitudinal da construção deveria ser bem proporcionada à projeção vertical; o grande vão, onde ficaria a cúpula, teria que ser coberto dentro dessa proporção e seu necessário equilíbrio, alcançando, no entanto, uma altura que só seria possível por intermédio do recurso do arco ogival, gótico.

Uma invenção - duas cúpulas, uma sobre a outra, sendo a interior esférica e a exterior ogival - resolveu o problema formal e, concomitantemente, graças à sustentação recíproca de ambas estruturas, solucionou o impasse técnico, dispensando o vigamento.

Foi uma criação específica que uniu indissoluvelmente o aspecto formal com o técnico em uma obra tradicional de Arnolfo di Cambio. Naquela cúpula sobre uma construção medieval tudo foi reconsiderado - e consequências imediatas assim surgiram.

A partir dessa ousada invenção concluiu-se a concepção não só do projeto, mas de um modelo para um sistema a ser produzido inteiramente, um esquema complexo de produção de significados que envolveria toda uma sociedade.

Esse exemplo muito evidente, um eureka na arquitetura, ocorrido com Brunelleschi, ocorreu na psicanálise.

A metapsicologia estaria para Freud como a cúpula para Brunelleschi: a abordagem de um desafio. Desafio segundo o qual todo o processo mental estaria considerado em relação a três coordenadas, a saber, a dinâmica, a topográfica e a econômica, pois Freud considerou a metapsicologia como o objetivo final da pesquisa psicanalítica, que para ele representou o mais profundo que a psicologia alcançou.

A metapsicologia iria esclarecer e aprofundar os pressupostos teóricos sobre os quais poderiam vir se assentar as bases do sistema psicanalítico: a abordagem do processo mental em modelos de teorização, que permitiriam dar conta de posicionamentos particulares.

Na verdade, pensamos que os artigos freudianos sobre metapsicologia conservam em si mais do que apenas interesse histórico. Acreditamos que Freud supôs que a metapsicologia dispusesse de uma estrutura polêmica, apta a enfrentar e resistir àquele imenso vão vazio do devaneio filosófico: a metafísica.

 

I. Tradição e transformação

Presente, em 1896, na correspondência de Freud/Fliess - mencionado como sendo "a psicologia dos bastidores da consciência" (Freud, 19141916/1987c) -, o conceito de metapsicologia surge, em 1901, em "A psicopatologia da vida cotidiana" (Freud, 1901/1987i). Poderemos alinhavar ainda outros alicerces envolvidos nessa teoria, que foram estabelecidos muito antes de 1915, habilitando Freud como um arquiteto a formular os elementos que iriam fazer parte da apresentação metapsicológica.

Ao ser usado pela primeira vez, o termo não tinha ainda um significado preciso. Aos poucos, Freud foi dando adequação ao contexto de sua "cria ideal e problemática" que, em 1915, já não era mais tão pequena assim. Na época, achou que seria um avanço - mesmo assim, em seu batismo, portou-se com modéstia: Ensaios preparatórios para a metapsicologia.

A analogia com Brunelleschi tangencia a associação segundo a qual Freud abordava o processo mental também em relação a perspectivas e coordenadas: só assim poderia "esclarecer e aprofundar os pressupostos teóricos sobre os quais poderão ser assentes as bases de um sistema psicanalítico". (Masson, 1986, p.181, Carta de 13/2/1896 Freud/Fliess)

Entre 1435 e 1436, os florentinos acompanhavam com muito interesse as vicissitudes da construção da cúpula - se bem que não havia ainda uma clara concepção sobre ela. Uma descrição interpretativa se aventou: a surpreendente grande calota que aparecera no céu de Florença teria sido um milagre da inteligência humana.

A cúpula é uma representação porque visualiza o espaço que, por certo, é real, ainda que não seja visível (Argan, 2003). Para alguns estudiosos de história da arte, uma cúpula não tem um interesse particular. É uma estrutura, não é a catedral; não é um objeto arquitetônico, mas um imenso objeto espacial - seria, então, só a objetivação de um espaço.

À medida que Freud avançava com seu neologismo "metapsicologia", ele passou a defini-lo mais estritamente como uma ferramenta analítica das operações mentais, partindo das três perspectivas citadas: a dinâmica, a econômica e a topográfica.

A primeira seria uma sonda dos fenômenos mentais até os primórdios - o inconsciente dos conflitos originados das pulsões; a segunda especificaria as quantidades e modificações das energias mentais; a terceira se encarregaria de qualificar os diferentes domínios da mente.

Em conjunto, essas perspectivas delimitadoras distinguiriam a psicanálise dentre outras psicologias. Apesar dessa grande remodelação, o edifício da psicanálise manter-se-ia reconhecível, embora Freud tenha se empenhado novamente em uma revisão profunda das pulsões - dedicando especial atenção a questão que dizia respeito às incômodas distinções das pulsões de ego/pulsões sexuais.

Naquele momento, Freud admitiu essa premissa, a não ser quando "uma mera construção auxiliar que deve ser mantida apenas enquanto mostrar-se útil". (Gay, 1989, p. 335).

Ao publicar seu texto sobre metapsicologia, ele ressignificou a definição de pulsão, de uma década atrás.

Assim - também como pretendia o nosso arquiteto em Florença -, Freud intentava uma estrutura que se sustentasse por si só em seu fazer-se: não só uma forma simbólica, porém funcional. A metapsicologia seria funcional como imagem de um sistema psicanalítico antes concebível só para Freud.

Portanto, a práxis metapsicológica foi uma invenção, uma vez que, anteriormente, talvez nem o próprio Freud soubesse o que tinha em mãos. Algo ainda a ser inventariado, apurado, reconstruído: invenção. Mesmo sob a pena de repetir algo já existente em artigos esparsos ou algo realmente novo.

Quanto ao fato de redescobrir algo novo nos antigos escritos, isso significou ultrapassar, ir além. Em outras palavras: a passagem de um modelo bidimensional para um tridimensional.

Em Roma, ao pesquisar "o modo de murar dos antigos e as suas simetrias" (Argan, 2003), Brunelleschi tinha em mente o problema inerente à cúpula da igreja, daí procurar na tradição um modelo mais metodológico do que morfológico.

Os alicerces que o psicanalista pretendera construir definitivamente para seus seguidores e contra seus detratores estava se constituindo. Os assentamentos distintivos da psicanálise - Édipo, repressão, o dinâmico inconsciente, os conflitos pulsionais e defesas, a gênese sexual da neurose - permaneceram na condição de propostas; outros tinham se tornado meramente questionáveis.

O narcisismo foi inovado. Freud encontrava-se criativo e a metapsicologia proporcionaria para sua teoria um incomparável alcance esclarecedor. Áreas ainda obscuras ganhariam maior precisão e o papel central do inconsciente - tanto na formação como no perdurar do conflito psíquico - seria demarcado.

Freud se orgulhou muito dessa descoberta, tinha sido o primeiro a escavar até os fundamentos da atividade mental, e sentia-se inovador e particularmente satisfeito em observar que as percepções metapsicológicas brotaram de sua fonte predileta de informações: os relatos dos pacientes. Ao traduzir em palavras a resistência dos mesmos, acabou tendo ao alcance a teoria em questão. Naqueles ensaios que produzia, estabeleceu de uma vez por todas, sem possibilidade de alguma refutação, a importância do inconsciente.

A cúpula de Brunelleschi foi descrita como "estrutura tão grande erguida nos céus, ampla a cobrir com sua sombra..." (Argan, 2003) e, para Freud, em 1915, seu texto metapsicológico defrontou-se com questões pulsionais que foram refeitas após o advento do narcisismo. A metapsicologia, qual uma grande cúpula teórica, explicava o funcionamento do psiquismo como fundamento da teoria das neuroses e de todo o edifício conceptual, quando o pensamento dual freudiano se manifesta em sua nítidez: o par de opostos Eros/pulsão de morte ocupando, no sentido arquitetônico, um local punctum. A metapsicologia seria a última expressão teórica fundamental exigida.

 

II. Da invenção da perspectiva, da construção da cúpula de Santa Maria del Fiore à metapsicologia

A perspectiva é a maneira de representar os objetos com as modificações aparentes neles produzidas pela distância e pela posição. A perspectiva regula a direção e a dimensão das linhas em um desenho, indica também o afastamento relativo dos objetos pela gradação das cores ou tons, destina-se a dar uma representação nítida dos objetos.

Em cada época da história da arte - desde a pintura rupestre até os nossos dias -, desenvolveram-se processos de representação volumétrica no plano. No século 15, em Florença, surgiu a "perspectiva exata" (Argan, 2005), dita também artificialis, que estabeleceu uma ordem espacial única, na qual, matematicamente, inserem-se os objetos com suas proporções congruentes relativamente à distância do observador.

Em Nuremberg, no Congresso de 1910, Freud apresentou "As perspectivas futuras da terapia psicanalítica" (Freud, 1910/1987g), texto em que sinalizou que trabalharia no sentido de redigir um contexto de escritos sobre técnica, uma metodologia psicanalítica, demonstrando que desde então já havia a preocupação em desenvolver e transformar a psicanálise, na esfera técnica, ante as novas descobertas clínicas que se avolumavam.

Quando estabeleceu um único ponto de vista para toda a representação, a perspectiva exata inaugurou duas novas ciências que se desenvolveriam nos séculos seguintes: a geometria descritiva ou óptica e a óptica dos raios luminosos. Após isso, tornaram-se possíveis, partindo da perspectiva florentina, todos os estudos ópticos de Galileu, Descartes; estudos da difração da luz, e Newton.

Foi graças à invenção da perspectiva exata que Brunelleschi deu início a um novo capítulo da representação virtual do espaço na pintura e no baixo-relevo - isto é, configurou uma linguagem instrumental inovadora, susceptível de ser convenientemente utilizada também no processo de concepção e projeção de um organismo arquitetônico.

A revolução do pensamento de Freud acerca desses temas essenciais foi necessária para a expansão e compreensão da teoria psicanalítica. Malgrado sua importância, a metapsicologia fora objeto de equívocos. Para Freud, pensar isso seria estabelecer perspectivas para a psicanálise - portanto, era importante penetrar em sua obra, desvendá-la em suas dimensões newtonianas, para assim, categoricamente, predispor que a ênfase sobre o inconsciente na psicanálise explicasse melhor, apropriadamente, a vida mental, a memória, o pensamento, a percepção e os estímulos.

 

III. Invenção

No início da Primeira Guerra Mundial, Freud tinha o benefício do tempo e pôde inventariar sua coleção de arqueologia. Enquanto fazia tal lista pormenorizada, aquele desejo organizacional extravasou-se sobre seu próprio campo intelectual. Sentiu ele a necessidade de um balanço conceptual e teórico das suas elaborações anteriores com a marca da metapsicologia. E isso tinha a ver com o sair do campo da saturada psicologia descritiva, da acumulação de fatos relatados, e produzir um inventário que, como se disse, clarificasse pensamentos e aprofundasse hipóteses.

Para tanto, redigiu ele doze artigos, cada um cuidando de uma noçãochave da psicanálise; entre março/maio de 1915, surgiu a metapsicologia. Os ensaios constituintes dessa matéria serão a trama do tecido da psicanálise. Em "Pulsões e destinos de pulsões" (Freud, 1915/2004), teremos o conceito primordial freudiano: a pulsão.

A natureza intelectual de Freud tinha um modo particular de trabalhar, ele sempre manipulava três instâncias como referência: a autoanálise, a clínica, e a cultura.

Em 1897, Freud "inventou" a autoanálise. Foi ele o primeiro a realizar esse processo psíquico extraído das noções adquiridas objetivamente em seus pacientes e a consequente elaboração em si, utilizando referências universais encontradas na cultura que o levavam a fazer as ilações - que determinou de "mecanismos" - que funcionavam na clínica. Foi nas elaborações das próprias memórias que descobriu a formação da repressão de seus pacientes; aos poucos, Freud passa a nomear os conteúdos pré-genitais após reconhecê-los em si. Aos poucos, reconhece um funcionamento próprio que era comum em outros homens e, consequentemente, comuns na cultura.

O primeiro fenômeno cultural do qual Freud se aplica e analisa teria sido uma passagem de A interpretação dos sonhos, precisamente o episódio do Édipo Rei e o subsequente comentário sobre Hamlet, salientado em o "Sonhos sobre a morte de pessoas queridas" (Freud, 1900/1987d, p. 483). Este foi um ponto de reflexão sobre a cultura e sua problemática.

Muitas seriam as publicações na luta de deixar a psicanálise em um lugar seguro, não só sob a guarda da medicina. A psicanálise precisava de ampliações, sob pena de tornar-se uma especialização terapêutica e deixar de investigar outros campos. Em suma, fazia-se necessária uma concepção antropológica maior.

Em "Totem e tabu" (1913-1914/1987j), operou-se uma importante passagem da psicologia individual para o exame das relações sociais propriamente ditas. Na encenação daquele crime praticado por vários irmãos estaria o início dos amplos estudos dos quais resultaram: "Psicologia coletiva e Análise do ego" (Freud, 1921/1987h) e "O mal-estar na civilização" (Freud, 1930/1987f).

A cultura atuou essencialmente no processo da invenção da psicanálise, as descobertas freudianas passaram por um longo e delicado trajeto em que os recursos culturais, a autoanálise e a clínica estiveram sempre intrincados em uma dimensão que garantiria o método.

Não seria também o seu sonho com a fórmula da trimelilamina, reproduzido graficamente, uma futura transparente alusão da estrutura ternária aos três elementos: o conteúdo ainda latente da topografia, economia e dinâmica?

Em "Complemento metapsicológico à teoria dos sonhos" (Freud, 1917/1987a), e "Luto e melancolia" (Freud, 1917/1987e), Freud confronta processos ditos normais (sonho/luto) e processos patológicos (neuroses e depressões), por exemplo, no momento em que demonstra a sutil e essencial elaboração da perda do objeto por uma tomada progressiva dos investimentos e também o domínio antropológico perturbador dos rituais e liturgias do luto e rituais da morte.

O que fez Freud escrever foi a eleição de casos de sua clínica, a crença de que ele descobrira algo de novo ou de que construía uma nova teoria, descrevendo o jogo dos conflitos, das forças das pulsões. Assim surgiu esse aprofundamento das hipóteses teóricas em um sistema, coroando a invenção de uma atividade empírica, escrupulosa e árdua, obsessiva, mas que se transforma em ferramenta axiomática para a observação mais distante dos problemas a serem elucidados.

 

IV. Rumo à cultura

Eis porque os textos sociais e culturais freudianos só advieram após a instauração da metapsicologia, quando do ponto de virada na elaboração psicanalítica. A implicação da psicanálise/cultura passa a ser possível depois que Freud deixa para trás os protozoários e a biologia. A pulsão de morte passa a ser a pulsão por excelência, será identificada no âmbito da civilização: nessa mudança, aquilo que antes era satélite na periferia da metapsicologia ganha o epicentro.

Alguns autores preconizam que "a pulsão de morte seria o estranho na metapsicologia freudiana" (Campos, 2005), isso significando que a introdução desse elemento produziu uma reviravolta na teoria freudiana, o retorno de um recalcado que causará impacto traumático na metapsicologia. A pulsão de morte promoveu um desdobramento da metapsicologia, uma retomada da trama conceitual de Freud.

Só após esse "invento" é que Freud passa a debruçar-se sobre ideologias, religiões, conflitos sociais, instituições políticas e suas vicissitudes. Após 15 anos, voltou a penetrar em sua teoria, repensando e incorporando esse material de forma transmudada, assim foi com parte de seu "Projeto" (Freud 1895/1990) anterior, assim fez com "Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental" (Freud, 1911/1987b), modificou também a parte terceira da análise de "O caso Schreber" (Freud, 1911/1969) e também o inconsciente e o narcisismo, mas foi entre 1915/20 que empreendeu a definitiva exposição que sistematizou suas teorias psicanalíticas, na intenção de esboçar um fundamento teórico estável à psicanálise, em cuja construção ele trabalhava já há 25 anos.

Seria importante esclarecer que o interesse imediato não teria sido de natureza filosófica, embora isso surgisse em sua frente a todo momento. O interesse de Freud era prático. Ele pretendia descrever e explicar a variedade de fenômenos encontrados na fértil região de novos conhecimentos. O neurologista cedera lugar ao psicanalista. Os mecanismos anteriores explicativos, envolvendo sinais e sintomas neurofisiológicos, eram poucos, muito poucos para lidar com as sutilezas trazidas pelos processos de linguagem mental.

Assim, A interpretação dos sonhos passa por uma estranha transformação: Freud fez desaparecer o relato neurológico e foi traduzir esse material em termos mentais, estabelecendo para isso o inconsciente como a pedra angular. O neologismo metapsicologia passa a designar a mais teórica dimensão da psicanálise - e poderíamos considerá-la um conjunto conceptual, a ficção do aparelho psíquico.

Na realidade, segundo Peter Gay (1989, p. 122) as questões filosóficas nunca se afastaram de Freud, a metapsicologia era uma passagem sobre o vão das crenças, superstições, delírios e a restauração nas construções metafísicas que eivavam até então, mas havia uma região obscura nos fatores psíquicos naquilo que se passava no inconsciente, era preciso transformar essa região pela ciência e, de certa forma, converter a metafísica em metapsicologia, assim os escritos metapsicológicos seriam aqueles que descreveriam um processo psicológico de uma forma teórica.

Atualmente, a adequada consideração nas várias apresentações clínicas das ditas "novas patologias", nas várias denominações clínicas - estado limite, vazio, borderline, transtornos alimentares - só podem ter modelos de teorização pelo fato de a metapsicologia dar conta do particular posicionamento do sujeito diante da pulsão, pois a metapsicologia mantém o mesmo rigor que existe na dimensão estrutural e na histórico-cultural, abrange a especificidade de alguns mecanismos metapsicológicos subjacentes, tornando possível a abordagem dessas patologias da pós-modernidade - as adições, por exemplo, e não somente as conhecidas neuroses.

Graças à metapsicologia, essas questões clínicas, práticas, são verificadas e tratadas pelas mesmas questões centrais, esse corpo consistente também permite a interpretação de demandas em outros campos na pós-modernidade, onde existe excessiva pulsionalidade e o narcisismo e a pulsão de morte imperam.

 

V. As duas cúpulas florentinas de Freud

O presente trabalho preconizou Freud não como o arqueólogo que sempre gostou de apresentar metáforas, mas como o inventor de uma solução teórica que nos fez aproximar de uma cúpula composta por duas calotas.

Quais seriam, na metapsicologia, essas duas calotas?

A metapsicologia teria como cúpulas a 1ª e a 2ª tópicas. A primeira composta só de um tipo de desejo inconsciente, o desejo sexual; a segunda, pondo em jogo a pulsão de morte e a destrutividade.

Tomaríamos as duas abóbodas conceituais contidas na derradeira teoria sobre as pulsões, sendo que a pulsão de morte designaria uma categoria de pulsão que se contrapõe à pulsão de vida? Ou abstraímos e aproveitamos os esquemas mecanicistas freudianos, concebemos um complemento metafórico com as cúpulas de Brunelleschi, pois Freud jamais renunciou na conciliação das duas propostas denominadas tópicas 1 e 2? Inúmeras vezes figurou a representação espacialmente figurada desse conjunto do aparelho psíquico, em que coexistem as divisões inconsciente/pré-consciente/consciente e ego/id/superego. Esse modelo seria um bom argumento e desempenharia uma função semelhante àquela grade desenhada por Bion. Foi uma especulação.

 

VI. Conclusão

Neste texto, a metapsicologia foi vista de um modo mais restritivo do que comumente se propõe, foi considerada mais como invenção do que um intento de transformar a psicanálise. Essa limitação foi proposital, tanto em função do uso de metáforas arquitetônicas, ópticas, quanto pela percepção de que todas as características contidas na metapsicologia podem ser, de alguma forma, encontradas em textos anteriores freudianos.

Sempre houve em Freud uma fascinação pela distribuição espacial e pela noção de superfície, Freud pensava que o nosso aparelho psíquico se desdobraria num espaço que é da ordem da extensão, quando diz por exemplo "que o Ego é uma superfície ou que corresponde à projeção de uma superfície" essa dimensão espacial fica evidente. (Green, 1990, p. 25)

Na tradição freudiana, essa invenção - que seria o centro do arcabouço teórico para pensar o espaço psicanalítico - ao mesmo tempo em que reconstrói um novo espaço psíquico agrega à psicanálise aquilo que durante certo tempo provocou problemas técnicos: a lida com o cultural e o social. A metapsicologia foi uma mudança bem visível no edifício representativo teórico.

Em 1915, era algo "moderno", embora Freud tivesse escolhido uma solução "histórica", digamos assim, não permaneceu e não se rendeu ao modelo antigo e tampouco rendeu-se aos detratores em moda, preferiu construir nova teoria, plena de significado atual sobre aquilo que tinha concebido. A metapsicologia, assim como uma cúpula, devia ser autossustentada, até o fechamento final do sistema de componentes de força na chave da abóboda pelos seus mesmos componentes.

Brunelleschi inventou uma nova técnica para sustentar a cúpula, para permitir sua autossustentação e Freud concretizou em sua invenção metapsicológica uma forma diferente dos conceitos anteriormente preconizados por ele. Realizou um novo equilíbrio interno, uma justa proporção das antigas forças, que já estavam em ação na psicanálise - e esta será a única responsável pelo sucesso daquilo que passaria dali em diante a ser estudado por Freud.

O advento da metapsicologia foi um aprofundamento da antiga psicanálise que, a partir daquele período, será aparelhada para expressões dos sentimentos coletivos, religiosos, sociais - enfim, além da expressão do que já vinha acontecendo na esfera do individual, a metapsicologia não somente concluiu o edifício teórico da psicanálise como também redefiniu, adaptou e transformou o seu significado com os novos conhecimentos adquiridos, tornando a psicanálise mais elástica, dimensional - sendo assim mantida até a drástica revisão que teve lugar na fase posterior da teoria, entre 1920-1939.

A partir desses pioneiros escritos freudianos, a psicanálise não seria mais um método terapêutico tão somente, passaria a se tornar uma ferramenta precisa, um importante eixo para o pensamento ocidental. E um marco que ampliaria os domínios na desenvoltura de conjugar novos horizontes.

 

Referências

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Recebido em 25/10/2012
Aceito em 12/12/2012

 

 

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