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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.45 no.83 São Paulo dez. 2012

 

REFLEXÕES SOBRE O TEMA

 

A teoria da sedução generalizada de Jean Laplanche e o descentramento do ser humano1

 

Jean Laplanche's theory of generalized seduction and the decentering of human being

 

La teoría de la seducción generalizada de Jean Laplanche y el descentramiento del ser humano

 

 

Luiz Carlos Tarelho

Psicólogo e psicanalista, doutor em Psicanálise pela Université Paris VII e Professor da Universidade Bandeirante-Anhanguera de Osasco

 

 


RESUMO

Este ensaio tem como objetivo apresentar as principais contribuições trazidas pelo pensamento de Jean Laplanche para a psicanálise, tanto do ponto de vista da teoria quanto do da técnica. Ele parte da ideia de que essas contribuições não devem ser avaliadas tanto por seu trabalho de tradução e de grande estudioso do pensamento freudiano, mas muito mais pelas novas perspectivas abertas por sua reflexão original. O eixo tomado para essa apresentação é o do movimento dentro do qual ele próprio gostaria de ser situado, que é o de ter contribuído para consolidar a revolução iniciada por Freud - mas inconclusa - em relação à descoberta do inconsciente e do descentramento que ele representa. Seguindo este norte, veremos como ele é levado a resgatar a Teoria da Sedução freudiana para reformulá-la e possibilitar sua generalização. Isso porque, em seu entendimento, a alteridade do inconsciente, e o consequente descentramento a que ele dá lugar, só podem ser mantidos pela outra-pessoa do processo sedutivo concebido como a situação antropológica fundamental. Esta apresentação encerra-se com a discussão das contribuições de Laplanche no plano da prática, onde se destaca sua preocupação em instrumentalizar a teoria para se precaver contra toda tentativa dela querer impor ao método qualquer tipo de esquema pré-concebido de interpretação.

Palavras chaves: Laplanche, teoria da sedução, alteridade, método psicanalítico


ABSTRACT

This essay aims at presenting Jean Laplanche main contributions to Psychoanalysis from a theoretical point of view, as well as from a technical one. We point out that these contributions are not merely related to Laplanche's work as great scholar and translator of the Freudian Works, but also present new perspectives, due to his original thinking. The guideline to this presentation is the movement, in which Laplanche himself would have liked to be situated, which is that of contributing to consolidate the revolution initiated - but not concluded - by Freud, regarding the discovery of the Unconscious, and the decentering it represents. Following this lead, we will see how Laplanche revisits the Freudian Theory of Seduction, reformulates it and makes it possible for us to generalize it. This because, as he understands, the unconscious otherness and the decentering that derives from it can only be sustained by the other-person in the seductive process, and this is conceived as the fundamental anthropological situation. The essay ends with a discussion about Laplanche's contributions in practical aspects, where we can point out his preoccupation in making the theory instrumental, in a way it prevents it from imposing any kind of pre-conceived interpretation to the clinical situation.

Keywords: Laplanche, theory of generalized seduction, otherness, psychoanalytic method


RESUMEN

Este ensayo tiene como objetivo presentar las principales contribuciones que el pensamiento de Jean Laplanche ha aportado al psicoanálisis, tanto desde el punto de vista de la teoría cuanto de la técnica. Parte de la idea de que estas contribuciones no deben ser evaluadas apenas por su trabajo como traductor y gran estudioso del pensamiento freudiano, sino por las nuevas perspectivas abiertas por su reflexión original. El eje tomado para esta presentación es el del movimiento dentro del cual a él mismo le gustaría estar situado, que es el de haber contribuido para consolidar la revolución iniciada por Freud - mas inconclusa - con relación a la descubierta del inconsciente y el descentramiento que representa. Siguiendo este rumbo, veremos que Laplanche es llevado a rescatar la Teoría de la Seducción freudiana para reformularla y posibilitar su generalización. Para él, la alteridad de lo inconsciente y el consecuente descentramiento a que da lugar, sólo pueden ser mantenidos por la otra persona del proceso de seducción, concebido como la situación antropológica fundamental. La presentación se encierra con una discusión sobre las contribuciones de Laplanche en el plano de la práctica, donde se destaca su preocupación en instrumentalizar a la teoría, en el sentido de prevenir eventuales tentativas de ésta querer imponerle al método algún tipo de esquema pre-concebido de interpretación.

Palabras clave: Laplanche, teoría de la seducción, alteridad, método psicoanalítico


 

 

Introdução

Quando se pensa em Laplanche, não é raro associar seu nome à ideia de um dos maiores estudiosos e conhecedores da obra freudiana de todos os tempos. E isso parece, sem dúvida, justificado por pelo menos duas razões. Primeiro, certamente, por conta da repercussão do Vocabulário de Psicanálise (Laplanche e Pontalis, 1967/1988), ainda hoje tomado como guia de estudos na área em várias partes do mundo, e das Problemáticas (Laplanche, 1980a, 1980b, 1980c, 1981, 1987), que seguem na mesma linha, aprofundando a discussão dos pontos nevrálgicos do pensamento freudiano ressaltados nesse primeiro trabalho realizado em conjunto com Pontalis. Segundo, porque, de fato, ele inovou na forma de abordar o pensamento freudiano ao reafirmar a indissociabilidade entre teoria e prática. Embora tenha feito formação em filosofia (e, em seguida, medicina por sugestão de Lacan), percebeu muito cedo que não dava para importar um método estrangeiro ao domínio psicanalítico para tentar elucidá-lo. Razão pela qual decidiu utilizar o próprio método psicanalítico para fazer a obra freudiana "falar" e, desse modo, revelar sua essência, desnudando não apenas seus pontos fortes, mas também suas fraquezas, contradições, incoerências e aporias (Laplanche, 1987/1992a).

Assim, nós o vemos tentando, a partir de uma postura inspirada na associação livre e na atenção flutuante, tomar o conjunto da obra e das teorizações para ver o que se destaca do todo e, em seguida, tomar esses pontos nodais como pistas a serem seguidas e exploradas até seus pontos de ancoragem. Um movimento que se repete como numa sequência espiral-helicoidal, retomando os mesmos pontos sob óticas diferentes, iluminadas pelas revelações acumuladas nesse percurso analítico, que coloca em contato as diversas facetas de um pensamento construído com avanços e retrocessos, criação e destruição, paixão e desilusão, revelação e ocultamento (Scarfone, 1997). No entanto, se quisermos realmente homenageá-lo, não é sob este prisma de cunho mais interpretativo que devemos focar seu trabalho, mas sim a partir das contribuições originárias a que deram lugar suas reflexões, do ponto de vista tanto da teoria quanto da técnica psicanalíticas. O objetivo desse texto é fazer uma breve apresentação /introdução de suas principais contribuições nesse sentido.

 

A revolução copernicana

Seu maior legado para a Psicanálise - e é sob este prisma que Laplanche certamente gostaria de ser lembrado - é ter contribuído para completar e consolidar a revolução iniciada por Freud e perseguida por Lacan em relação ao descentramento radical do homem. Sem tempo aqui para refazer todo o seu percurso e a releitura proposta por ele destes autores, vamos nos limitar a indicar que o essencial da revolução operada por Freud (que ele chama de copernicana, retomando a própria alusão de Freud a este autor) está ligado à ideia do inconsciente na sua acepção mais forte de Das Andere, isto é, a outra coisa em nós, o estrangeiro, o corpo estranho interno, que nos habita e nos constitui como alteridade radical. Do lado de Lacan, o desdobramento dessa revolução passa justamente pelo papel atribuído ao outro na constituição do sujeito, mas seu projeto também acaba se desviando da rota, na visão de Laplanche (1987/1992a e 1992b), na mesma medida em que este outro concreto se dissolve, progressivamente, na teorização lacaniana do grande outro, isto é, nos meandros da linguagem e do simbólico.

A propósito, vale lembrar que a originalidade de Freud, segundo Laplanche (1992b), não está tanto na transformação operada por ele em relação à noção já existente de inconsciente, que é alçada à categoria de conceito, com uma teorização específica, mas muito mais pela relação estabelecida no início entre o inconsciente e a outra-pessoa. Claro, estamos falando aqui da Teria da Sedução, da qual a alteridade do inconsciente é tributária na avaliação de Laplanche (1992b). Mas esta teoria, precisamente, é deixada de lado por Freud que, por várias razões, não conseguiu perceber que a originalidade de sua descoberta - que não é o inconsciente em si, mas sua dimensão de alteridade - dependia dessa teorização. Como diz Laplanche:

Assim que a alteridade da outra pessoa se esvanece e é reintegrada sob a forma de minha fantasia do outro, de minha "fantasia de sedução" a alteridade do inconsciente é colocada em risco. (1992b, p. XXIII, grifos do autor, tradução livre)

Qual foi, então, a saída encontrada por Laplanche para retomar esta rota em direção à consolidação da revolução iniciada por Freud? Seu projeto foi retomar o caminho originário de Freud, pois, na sua compreensão, "a outra-coisa (das Andere), que é o inconsciente, só se mantém em sua alteridade radical pela outra-pessoa (der Andere): ou seja, pela sedução." (Laplanche, 1992b, p. XXIII, grifos do autor, nossa trad.). E essa retomada é guiada pelo próprio método psicanalítico, isto é, mais do que resgatar a Teoria da Sedução, retirando-a de seu sono profundo, e relançá-la como o grande eixo em torno do qual os conceitos serão repensados, trata-se também e antes de tudo: de entender porque Freud foi levado a abandoná-la, a recalcá-la; quais os pontos frágeis dessa teoria para poder corrigi-los; qual o seu alcance; como sua ausência favoreceu desvios, contradições, desequilíbrios na reflexão freudiana assim como a construção de falsos equilíbrios; como foi ganhando força uma visão mais centrada (ptolomáica) do inconsciente e uma versão mais biologizante da pulsão e da sexualidade. Dentro deste contexto, ressaltou-se a necessidade de reformular a teoria para superar os limites aos quais ela se encontrava presa e para lhe conferir um verdadeiro status de teoria, isto é, com força suficiente para explicar tanto a patologia quanto a "normalidade" e também para servir de âncora para o método e para a prática, a qual transcende evidentemente os limites da clínica.

O primeiro ponto necessário para esta reformulação foi, portanto, mostrar que a razão principal que levou Freud a ter que abandonar essa teoria está ligado ao fato dele ter ficado preso, neste momento, a um nível de realidade bem restrito, que é o factual, isto é, o do abuso efetivamente cometido por um adulto perverso (na maioria dos casos o pai), uma teoria que se limitava, portanto, ao domínio contingencial do patológico. Daí sua explicação à Fliess na famosa Carta 69 (Freud, 1966/1988a), segundo a qual, por trás de uma histeria, seria preciso sempre supor um pai perverso, a começar pelo seu. Para Laplanche, com essa constatação, não se trata de negar a existência desse tipo de sedução (que ele chama de infantil), mas apenas de lembrar que ela pertence a um nível de realidade restrito, que é pontual e que não pode servir de base para sustentar uma teoria.

O interessante é que o próprio Freud, anos mais tarde, daria um grande passo nesse sentido, ao identificar outro nível de sedução presente nos cuidados maternos dispensados à criança. Nesse contexto, Freud (1933/1989) fala de uma realidade efetiva (Wirklichkeit) ao se referir à sedução, isto é, ao prazer despertado no órgão sexual da criança, que lhe parece inevitável. Como diz Laplanche (1987/1992a), "aqui não se trata mais exatamente de Realität, termo que designa a realidade nos seus aspectos mais factuais, mas de efetividade (Wirklichkeit), realidade efetiva, categoria que nos leva além da contingência e da peripécia" (p. 128). Entretanto, agora a teoria já havia sido abandonada e Freud não consegue visualizar toda a implicação desse segundo nível de sedução, que Laplanche chama de precoce, nem seu caráter universal como um dado fundamental da experiência humana e que envolve a sexualidade em geral (a erogeneidade do corpo como um todo e também das zonas oral e anal além da genital). De maneira que esta nova descoberta, por mais que ela pudesse servir de base para se reavaliar o abandono prematuro da teoria, acabou ficando isolada e congelada, como que em estado de espera, até ser redescoberta pelo trabalho arqueológico de Laplanche para lhe render a merecida atenção e o devido valor.

 

A situação antropológica fundamental

A contribuição de Laplanche nesse sentido não se restringiu apenas a colocar em evidência essas duas relíquias importantes, mas escondidas (em parte perdidas, em parte esquecidas, em parte renegadas) nas margens do arcabouço teórico freudiano. Pois, para ele, embora este segundo nível de realidade da sedução precoce seja passível de universalização, ainda falta aí uma base, isto é, um terceiro nível de realidade, que é próprio do domínio da psicanálise e que é o único, portanto, capaz de servir de fundamento para os outros dois. Trata-se do nível da fantasia inconsciente e que Freud só conseguiu entrever em momentos muito pontuais e fora do contexto da teoria da sedução. Este nível, ao qual Laplanche (1987/1992a) chama de originário, é o que resgata em seu pleno direito o inconsciente do adulto na relação de sedução com a criança e que pode sustentar a alteridade do inconsciente. Em sua opinião, somente este terceiro nível de realidade, próprio dos fenômenos inconscientes, permite mostrar porque a sedução possui um caráter universal e inevitável, constituindo, assim, um dado essencial e incontornável da experiência humana, que ele propõe chamar de Situação Antropológica Fundamental (Laplanche, 2007). Esta situação, juntamente com este terceiro nível de realidade ao qual ela pertence, é que torna possível superar a oposição entre o fato concreto e a fantasia, entre o real e o mítico e, consequentemente, as dificuldades da teoria, possibilitando a sua generalização.

Resta saber, então, como é concebida essa sedução originária, que constitui a essência da Situação Antropológica Fundamental e na qual se baseia, em última instância, sua teoria da sedução generalizada. Em primeiro lugar, tratase de um fenômeno de comunicação baseado na categoria da mensagem, entendida no seu sentido mais amplo, para além do âmbito da linguagem. Em segundo lugar, ocorre na relação entre o adulto e a criança. Em terceiro lugar, envolve uma dissimetria básica em função de que as mensagens do adulto dirigidas à criança são marcadas pelo seu inconsciente, enquanto a criança se encontra, no início da vida, desprovida tanto de um inconsciente recalcado quanto dos elementos simbólicos que permitiriam traduzir estas mensagens do adulto atravessadas por seu inconsciente e que, por isso mesmo, são enigmáticas, inclusive para o próprio adulto, que também desconhece suas motivações inconscientes.

A situação antropológica fundamental confronta, num diálogo simétrico/assimétrico, um adulto que possui um inconsciente sexual (essencialmente pré-genital) e um infans que ainda não tem um inconsciente constituído, nem a oposição inconsciente/pré-consciente. O inconsciente sexual do adulto é reativado na relação com o recém-nascido, o infans. As mensagens do adulto são mensagens pré-conscientes-conscientes, necessariamente "comprometidas" (no sentido do recalcado) pela presença da "névoa" inconsciente. Essas mensagens são, portanto, enigmáticas, tanto para o emissor adulto, quanto para o receptor infans. (Laplanche, 2007, tradução livre, grifos do autor)

Essa dissimetria, pressuposta por Laplanche, é pensada a partir do par atividade/passividade. O adulto se situa do lado da atividade na medida em que, não somente é quem toma primeiro a iniciativa ao emitir as mensagens, mas também porque é quem dispõe do material inconsciente que torna a mensagem enigmática (Laplanche, 1987/1992a e 1992b). Por sua vez, a criança, no início, isto é o infans, não tem outra alternativa senão se situar de modo passivo em relação a essas mensagens, pois além de ser o receptor, ainda não dispõe nem dos recursos simbólicos, nem dos meios físicos para dar conta das mesmas, uma vez que se encontra limitado ao plano auto-conservativo. Mensagens - importante sublinhar - que não se restringem à linguagem verbal, sobretudo nesse início da vida, onde a comunicação se apóia fortemente em outros meios.

O material inconsciente, que torna as mensagens enigmáticas, é composto, segundo o realismo defendido por Laplanche (1987/1992a, pp. 158-160), por "significantes-dessignificados". Eles são frutos do recalcamento, que opera um corte na mensagem, excluindo aqueles componentes que são irredutíveis ao trabalho de tradução-simbolização. Esses componentes perdem, assim, a capacidade de significação, pois, privados de seus contextos originais, eles não remetem a mais nada a não ser a eles mesmos e se tornam "representação-coisa", isto é, "significantes-dessignificados", que dão origem ao inconsciente e à pulsão sexual, uma vez que, para Laplanche, são eles os "objetos-fontes" da pulsão (Laplanche, 1987/1992a, p. 144).

 

O modelo tradutivo do recalcamento

Nesse modelo, diretamente inspirado na Carta 52 (Freud, 1966/1988b), o recalcamento originário é concebido como uma falha parcial de tradução, a partir da hipótese do traumatismo em dois tempos, que visa integrar os pontos de vista tradutivo, tópico e temporal. O primeiro tempo é o da inscrição da mensagem (processo que Laplanche chama de implantação) no eu-corpo da criança, sem que ela possa ainda ser compreendida. Mas essa mensagem é um significante dirigido, isto é, endereçado à criança, que vai justamente exigir dela um trabalho de tradução/simbolização e que faz com que todo ser humano seja um ser auto-teorizante. Assim, quando a criança já dispõe de algum elemento simbólico para tentar realizar a tradução, a mensagem é reativada, mas com um agravante, pois, agora, tornou-se um corpo estranho interno, que precisa a qualquer custo ser dominado e integrado. Para tanto, a mensagem, que se encontra em estado de espera, ao ser reativada, precisa ser decomposta para poder ser decodificada, interpretada e traduzida.

No caso normal-neurótico, este processo está sujeito a dois desfechos. De um lado, temos a transcrição da(s) parte(s) traduzível(is) da mensagem, dando origem ao pré-consciente, onde se assenta a parte mais organizada e historicizada, o eu. De outro, encontra-se a exclusão de um resto da mensagem impossível de tradução, pelo menos nesse momento da história do sujeito, que vai constituir a base do inconsciente e da pulsão sexual. Um inconsciente que não é jamais um decalque dos inconscientes parentais em função, como diz Laplanche:

do "duplo metabolismo" que o sexual sofreu nesse percurso: deformação na mensagem compromisso no adulto e, em seguida, trabalho de tradução pela criança receptora, que reordena completamente a mensagem implantada."(Laplanche, 2007, p. 200, grifo do autor, tradução livre)

Laplanche resgata, desse modo, o papel instaurador do recalcamento originário na medida em que ele é o responsável por essa primeira clivagem do aparelho, entre um eu e um isso, na qual está baseada sua dimensão tópica. E é assim que a restrição da teoria da sedução freudiana ao patológico pode ser superada, pois este modelo tradutivo do recalcamento, no qual o inconsciente surge a partir do resto não transcrito das mensagens parentais, dá conta de explicar tanto a continuidade, pressuposta por Freud, entre o normal e o patológico, quanto às especificidades individuais, onde o Édipo, assim como qualquer esquema narrativo, seja ele mais ou menos mitológico ou realista, passa a ser visto, do lado do recalcante e não do recalcado, como um código de tradução oferecido pelo universo parental e cultural e que vem ao encontro da necessidade da criança situada nessa posição forçada de pequeno hermeneuta, ofício do qual ela não conseguirá jamais se subtrair (Laplanche, 2007).

Para além dessa relação do normal-neurótico, o modelo tradutivo desenvolvido por Laplanche propõe-se a superar também a dicotomia entre os modelos do aparelho psíquico que privilegiam ora a neurose, ora a psicose, como ponto de partida. Essa superação envolve dois aspectos. O primeiro, o tradutivo, opera com a ideia da existência de significantes que não se prestam a nenhuma retomada ativa, por parte da criança, no processo de tradução-simbolização, conduzindo ao que Laplanche (2007, p. 201) chama de "falha radical de tradução". Diferentemente do processo de "implantação", que dá lugar a uma retomada ativa e simbolizante, nesse caso, ocorre uma "intromissão", uma variante violenta da implantação e que atinge predominantemente as funções orais e anais do corpo erógeno, onde essa retomada ativa não tem lugar, pois as mensagens são intocáveis (Laplanche, 1992b, pp. 355-358). São mensagens que produzem uma espécie de curto-circuito do processo de simbolização e de diferenciação das instâncias, tendo como resultado a formação de enclaves psicóticos dentro da estrutura do ego e do superego.

Partindo dessa hipótese, desenvolvemos um trabalho que aponta para uma relação estreita entre a paranóia e as mensagens paradoxais, as quais, por não se prestarem a esse trabalho de decomposição-recomposição e por possuírem o caráter dos imperativos categóricos que dão origem ao superego, tendem a se enquistar como enclaves psicóticos nesta instância (Tarelho, 1999 a e b). Mais recentemente, Laplanche (2007) incorporou a ideia de um inconsciente enclavado, onde se alojariam não apenas essas mensagens intraduzíveis, próprias dos quadros psicóticos, mas também as demais mensagens que se encontram em estado de espera por tradução, já que esta ocorre segundo a dinâmica dos dois tempos (do après-coup). Essa ideia caminha no sentido da generalização deste inconsciente enclavado para toda estrutura psíquica, o que, em sua opinião, permitiria superar a dicotomia entre os modelos que tomam como eixo seja a neurose, seja a psicose. Este é o que podemos chamar de aspecto tópico dessa nova perspectiva. Para Laplanche, esse modelo tópico, comum tanto à neurose quanto à psicose:

tem o mérito maior de propor um quadro de referência para situar o duplo problema: a possibilidade de uma nova tradução das mensagens enclavadas, notadamente nas psicoterapias dos casos borderline ou psicóticos, e, inversamente, a possibilidade (mesmo se ela é fraca) de uma descompensação delirante em todo ser humano. (Laplanche, 2007, p. 208, tradução livre)

 

Do lado da clínica

Para fechar esta breve apresentação do legado deixado por Laplanche, desejamos também tecer algumas considerações sobre sua contribuição para a clínica psicanalítica. Na esteira do pensamento freudiano e para sublinhar a indissociabilidade entre teoria e prática, Laplanche (1987/1992a) lembra que a psicanálise, como teoria, isto é, como metapsicologia, não se sustenta sem o método psicanalítico. Nesse sentido, se sua reflexão contribuiu de fato para assegurar uma mudança de paradigma (que acentua a alteridade do inconsciente, o descentramento do ser humano e a prioridade do outro na constituição do psiquismo), esta mudança se refletirá necessariamente na concepção da clínica. Uma mudança que vai, não no sentido de rever o método (baseado na associação livre e na atenção flutuante e que, como já sublinhamos, é utilizado por ele inclusive para sua leitura de Freud), mas sim no sentido de entender melhor a relação entre o método e o que ele chama de situação, transferência e processo.

A situação (ou setting) passa a ser vista sob o prisma da sedução originária, também entendida como Situação Antropológica Fundamental. Para além do enquadre e das regras, mais ou menos contingentes, o fundamental do setting é o fato de que se instaure um lugar pulsional, onde possa ocorrer a reativação da relação originária do sujeito com seu enigma e com seu portador, já que o inconsciente contém significantes dessignificados presentes nas mensagens parentais. Isso é favorecido pelo fato de que a dissimetria presente na situação analítica (caracterizada pelo acolhimento, pela neutralidade e pela recusa de saber do analista em relação não apenas ao enigma do paciente, mas também ao seu) é similar à dissimetria da sedução originária. Além disso, Laplanche (1992b) insiste no fato de que o analista, cuja oferta de análise é anterior à demanda do analisando, não se situa aí apenas como suporte da transferência, pois ele próprio, com seu enigma e ocupando o lugar de "suposto saber", acaba provocando a transferência e assumindo a função de portador do enigma do analisando. É nesse sentido que, para ele, a transferência não pode ser reduzida à ideia de mera repetição de protótipos arcaicos. Trata-se, antes, de uma reabertura do enigma interno do paciente, abertura que se faz mediante a relação com o enigma também do analista, o qual, evidentemente, precisa ser respeitado e preservado.

Para que essa reabertura possa ocorrer, é preciso ainda que o paciente encontre nesse espaço uma garantia de que poderá lidar com as angústias decorrentes e manter minimamente a coesão psíquica. Isso tem a ver com uma função que Laplanche chama de "suporte da constância" (Laplanche, 1992b, p. 430), algo parecido com a ideia de continência e que encontra apoio na constância da presença, na constância de um acolhimento e na constância de uma atenção flutuante, sem perder de vista, entretanto, a sustentação de um enquadre. Uma função que, digamos de passagem, não deixa também de contribuir para a re-instauração da Situação Antropológica Fundamental. O fato é que, sem essa continência, não apenas a reabertura do enigma, mas também o próprio método não encontra respaldo para sua aplicação, pois ele é analítico, ou seja, tem como foco, pelo menos imediatamente, a desconstrução, a decomposição. Em suas palavras, "ele visa trazer à luz elementos escondidos, inconscientes ou próximos do inconsciente, ou defensivos, nas falas, nos atos e na transferência do analisando. Enquanto tal, o método psicanalítico tem um foco de desestruturação." (Laplanche, 2007, p. 270). Assim, se o setting não assegura uma certa continuidade, uma certa constância, esse trabalho de desligamento, que é muito próximo da pulsão de morte, torna-se insuportável e, evidentemente, o contraponto desse movimento, que é o da retradução, da simbolização, isto é, da elaboração, também não encontrará espaço para se desenvolver.

Aqui se situa o que Laplanche chama de processo e onde certamente se encontra sua maior contribuição para a reflexão do trabalho clínico, pois, para ele, interpretação e construção, muito mais do que meios, constituem a essência mesma do trabalho, uma vez que estão diretamente ligados à auto-simbolização do sujeito. Sobretudo a construção, entendida como verdadeira reconstrução pelo próprio sujeito de sua história, de suas versões, e que deve ser vista como o coroamento deste processo de auto-simbolização e de auto-historização. Mas, para tanto, o psicanalista precisa se restringir, por meio da interpretação, ao seu papel de destraduzir, colocando de lado tanto a teoria (com todas as grades interpretativas que ela eventualmente idealiza, como o Édipo, por exemplo) quanto suas próprias construções pessoais, para deixar o trabalho de reconstrução à cargo do analisando. Em suas palavras: "A interpretação analítica consiste em desfazer uma tradução existente, espontânea, eventualmente sintomática, para reencontrar, aquém dela, o que ela desejava ardentemente traduzir e para, eventualmente, permitir uma melhor tradução, isto é, mais completa, mais englobante e menos recalcadora." (Laplanche, 1992b, p. 328, grifo do autor, nossa trad.).

Em suma, para ele, o distanciamento do analista em relação às atividades de síntese constitui o grau de medida com o qual se pode avaliar a diferença entre psicanálise e psicoterapia. Assim, podemos finalizar dizendo que, com essa reflexão sobre a prática da psicanálise, baseada na Teoria da Sedução Generalizada e que busca vacinar a teoria contra qualquer tentação de impor ao método um esquema pré-concebido de interpretação (seja ele o Édipo, a castração ou qualquer estrutura narrativa de ordem cultural, que se situam do lado da simbolização e não do recalcado), vemos Laplanche completar seu périplo nessa viagem pelo universo do inconsciente com a sensação de ter contribuído decisivamente para consolidar a revolução copernicana iniciada por Freud, instrumentalizando a psicanálise para a reconquista desse nosso espaço interno, colonizado pelo outro e transformado em terra de ninguém, ou em fueros, como dizia Freud.

 

Referências

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Recebido em 10/11/1012
Aceito em 12/12/2012

 

 

Luiz Carlos Tarelho. Rua Marco Antonio Dias Batista, 35/93 - Vila São Francisco 05386-320 São Paulo, SP. Tel: 11 3763-3253. lcarlostarelho@gmail.com
1 Artigo escrito para o Jornal de Psicanálise do Instituto de Psicanálise "Durval Marcondes" da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo sbpsp em homenagem póstuma à Jean Laplanche.