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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.45 no.83 São Paulo Dec. 2012

 

REFLEXÕES SOBRE O TEMA

 

Por que André Green? - uma psicanálise contemporânea na atualidade da clínica1

 

Why André Green? - a contemporary psychoanalysis in clinic's actuality

 

¿Por qué André Green? - Un psicoanálisis contemporáneo en la actualidad de la clínica

 

 

José Martins Canelas Neto

Membro efetivo e analista didata da SBSPSP. Editor da revista IDE

 

 


RESUMO

O autor relata, a partir de sua experiência pessoal com André Green e sua obra, alguns pontos que lhe são muito úteis em seu trabalho como analista. Mostra como o psicanalista francês vai fazer uma leitura muito aprofundada da obra de Freud, na qual dará grande importância à mudança da concepção freudiana do psíquico após 1920, com a introdução da dualidade pulsão de vida/morte e a criação da segunda tópica, na qual as representações vão perder importância em relação às moções pulsionais. Também é descrita a concepção de Green da transferência com a noção de "dupla transferência".

Palavras-chave: André Green, dupla transferência, moções pulsionais, clínica contemporânea


ABSTRACT

The author reports, from his personal experience with Andre Green and his work, some points that are very useful in his work as an analyst. He shows how the French psychoanalyst did a very thorough reading of Freud's work, in which great importance is given to the changing of the Freudian conception of the psyche after 1920, with the introduction of the life/death instinct duality and the creation of the Second Topic, in which the representations (ideas) lose importance against the instinctual motions. Green's conception of transference is also described, with the notion of "double transference".

Keywords: Andre Green, double transference, instinctual motions, contemporary clinic


RESUMEN

El autor presenta, a partir de su experiencia personal con André Green y su obra, algunos puntos que le resultan muy útiles en su trabajo como analista. Muestra como el psicoanalista francés hace una lectura muy profunda de la obra de Freud, en la cual dará gran importancia a la evolución de la concepción freudiana de lo psíquico después de 1920, con la introducción de la dualidad pulsión de vida/pulsión de muerte y la creación de la segunda tópica, en la cual las representaciones pierden importancia con respecto a las mociones pulsionales. También se describe la concepción de Green de transferencia con la noción de "doble transferencia".

Palabras clave: André Green, doble transferencia, mociones pulsionales, clínica contemporánea


 

 

Quando cheguei a Paris, ainda bem jovem, em 1983, rapidamente comecei a perceber a trama intensa, às vezes bastante tensa, do que hoje chamaria de história transferencial do movimento psicanalítico francês, criada devido ao impacto provocado em todos os analistas franceses pelo sopro inovador e criativo da interpretação feita por Lacan do pensamento de Freud.

Lacan havia morrido em 1981, mas seu legado ainda me parecia vivido intensamente pelos grandes pensadores da psicanálise francesa que, de um modo ou de outro, foram influenciados por ele.

Green havia convivido (assim como Laplanche - mais um dessa geração que se foi - Pontalis, Rosolato, Piera Aulagnier, Serge Leclaire e muitos outros) por vários anos, semanalmente, com Lacan em seus seminários. Mas ele era do "time adversário", a Sociedade Psicanalítica de Paris (spp). Pela teoria, Green partiu de uma divergência com Lacan quanto à importância do papel do afeto na teoria psicanalítica, o que o conduziu a seu primeiro livro, O discurso vivo, de 1973.

Green era um apaixonado pela Psicanálise e pela busca de um pensamento que tentasse expandir a obra de Freud, sem ignorar as contribuições dos principais autores pós-freudianos (Ferenczi, Klein, Winnicott e Bion). Foi por causa desse esforço de integração das diferentes teorias que me senti, naquela época, atraído por ele e que comecei, então, a seguir seus seminários. Mais do que qualquer outro seu contemporâneo, André Green conseguiu dialogar com essas diversas correntes da psicanálise num esforço quase utópico de articulação teórica, a qual tem como base a obra de Freud.

Vem então a pergunta: no que as ideias de Green me ajudam em relação à clínica contemporânea? Levantarei abaixo alguns pontos fundamentais da posição de Green que me ajudam.

Sinto-me próximo a sua interpretação do pensamento e da obra de Freud. Green ajudou a vermos o quanto a chamada "virada dos anos 20" redirecionou o pensamento de Freud. Assim, levanta três tipos de consequências dessa virada:

1. A modificação da teoria das pulsões para o postulado do dualismo pulsional: pulsão de vida e pulsão de morte (entendida por Green como pulsões destrutivas);

2. A perda de confiança na aliança com o Ego, o qual é em grande parte inconsciente, e a pressão intensa das moções pulsionais e do masoquismo originário;

3. A descoberta do Superego e o papel esmagador da necessidade inconsciente de autopunição.

Green assinala também a passagem de uma ênfase na representação, nos textos da metapsicologia (1915-1917), a uma importância maior dada às moções pulsionais do Id e ao afeto ("O ego e o id", 1923). Com as moções pulsionais, são o movimento e suas transformações que prevalecem. Transformações essas que são desejáveis quando vão em direção à esfera representativa, e indesejáveis quando vão para a esfera motora (actings, passagem ao ato).

Para Green, a pulsão, ou melhor, o complexo pulsional, é o material de base sobre o qual se constrói a psique. Mas nosso autor não deixa de dar a devida importância aos cuidados maternos que têm efeito gerador de autoerotismo, devido à excitação das zonas erógenas. Essas estimulações maternas têm um aspecto repetitivo e rítmico que as faz adquirir uma força pulsante (a pressão da pulsão).

Além disso, liga o conceito de pulsão ao de objeto. O objeto é o que vai revelar a pulsão. Por causa da falta do objeto, o sujeito é obrigado a sair de seu narcisismo. Daí os conceitos úteis de funções objetalizante e desobjetalizante. Outra consequência da obra de Freud que Green aponta é a vocação representativa da pulsão, isto é, o psicanalista francês liga a atividade pulsional à função representativa.

De acordo com sua maneira de pensar o psiquismo, o acesso à representação da fantasia favoreceria a analisabilidade das produções do Id, quer dizer, ascendendo à fantasia o Id tornar-se-ia mais visível para o Ego, que então poderia figurá-las. O campo das representações, portanto, é modulado pelas moções pulsionais.

Por fim, o pensador e psicanalista francês endossa a hipótese de Freud da pulsão de morte, da ideia de forças ligantes e de forças desligantes, assim como toda sua teoria do trabalho do negativo e da alucinação negativa e seus estudos sobre os casos limite.

Após levantar essas questões mais centrais quanto à posição de Green diante da metapsicologia freudiana, gostaria de abordar um dos conceitos que me parecem muito úteis no que se refere à transferência e, por consequência, ao trabalho do psicanalista. Trata-se da ideia de "dupla transferência".

Pois bem, o que ele diz a respeito da transferência que me parece essencial?

Partindo da ideia que a transferência, apenas como repetição de um passado sobre o analista, é uma concepção muito limitada hoje em dia, Green desenvolve uma reflexão sobre o papel da linguagem na análise, e o faz a partir da ideia da "dupla transferência" (Green, 1984).

A dupla transferência exprime num ato único duas operações: a transferência sobre a fala (palavra) e a transferência sobre o objeto.

A "transferência sobre a fala": nas condições da situação analítica é pedido ao paciente que verbalize tudo que lhe passa pela cabeça. Ele deve fazer uma conversão para o sistema do falar, da palavra (talking cure). Converter em palavras implica no deslocamento de tudo que se passa no intrapsíquico para a fala, por meio de palavras. Esse processo de conversão em palavras coloca em jogo (play) o trabalho de formação da representação. Por isso, o analista deve escutar as palavras do paciente, quer dizer, sua maneira precisa e singular de se exprimir pela fala na sessão.

Esse ponto é muito importante: Green não é favorável às interpretações "profundas". A interpretação surge ao seguir as palavras do paciente quando há uma "facilitação" (no sentido do "Projeto" de Freud) que permite a passagem do impulso para a palavra.

A "transferência sobre o objeto", por outro lado, nasce do fato da comunicação pela linguagem. Ao falar, nos dirigimos a alguém; Lacan diria: a um sujeito suposto saber.

Essas duas transferências ocorrem simultaneamente na sessão. Podemos ver que criando assim dois tipos de processos transferenciais simultâneos, Green articula a teoria de Lacan do significante com as teorias dos ingleses, centradas na relação de objeto (Klein, mas sobretudo Winnicott e Bion).

Assim, é pela transferência sobre a palavra que vão aparecer as representações e os processos primários. Aqui estamos próximos da noção de significante. Desse modo, é ao falar dentro das condições da situação analítica que o paciente vai nos permitir adivinhar (termo de Freud), por meio de suas palavras, algo da representação inconsciente. Trata-se de um trabalho de representação que se faz no momento presente da sessão, de maneira dinâmica e única, sem nenhuma teoria prévia a não ser as lembranças do analista em relação à história do próprio processo analítico com aquele paciente.

Uma vez Green afirmou: "eu não creio que o mundo das palavras crie o mundo das coisas, mas sem o mundo das palavras, na análise, nós não alcançaríamos grande coisa" (Green, 1986).

Já a transferência sobre o objeto se faz sobre um objeto externo, pela língua, por meio dos processos secundários. Essa transferência remete, pelo discurso, ao código, à mensagem, constituindo a cadeia da fala! Vejam como as coisas parecem se imbricar, pois é na transferência sobre o objeto que Green coloca a cadeia da fala enquanto mensagem e na transferência sobre a palavra, que é intrapsíquica, ele coloca a cadeia das representações inconscientes e moções pulsionais.

Nesse sentido, a interpretação que ele chama de profunda, mesmo se verdadeira, seria um curto-circuito, o qual pularia as mediações intermediárias necessárias. Green (1986) aponta a ilusão que por vezes os analistas têm, ao acreditarem que tocaram no coração do conflito mais antigo do paciente. Ilusão porque não levam em conta que o sujeito em análise vai interpor todo tipo de barreira para impedir que a interpretação ressoe verdadeiramente. Desse modo, a interpretação só pode resultar do trabalho analítico da sessão, do movimento da sessão, sessão que está inscrita na história particular daquele processo analítico específico.

A transformação da moção pulsional em representação se faz, na análise, pela "cadeia perlaborativa fundamental": Id - [Ego inconsciente e Objeto primário] - representação.

Moção pulsional (representação psíquica da pulsão) - Representação (de coisa ou de objeto) - Afeto (inconsciente) - representação pré-consciente-consciente (representação de palavra).

Enfim, quais consequências podemos tirar dessas ideias para a clínica contemporânea?

Green dizia que nas entrevistas preliminares precisamos pensar em termos de uma nosografia provisória. Devemos fazer para nós uma ideia que nos diga se estamos diante de uma organização neurótica, psicótica, "borderline", narcísica etc. Porém, uma vez a análise começada, precisamos esquecer essas referências. Ele dizia: "eu não me preocupo se um caso tem uma fixação edípica, pré-edípica ou arcaica, eu escuto!" (Green, 1986)

Outro ponto importante é que o psicanalista francês evoluiu, a meu ver, para uma posição menos estrutural, pois falava muito da heterogeneidade do psíquico, da permanência de vários registros, sendo que um ou outro deles pode ser mais evidente em um momento ou outro da análise.

Nesse sentido, Green mostra as correlações entre neurose e casos limite. Na neurose, a angústia é ou de castração ou de penetração, enquanto nos casos limite ela é ou de separação ou de intrusão. Mas podemos fazer uma correlação quase direta entre castração e separação e entre penetração e intrusão. Green levantou, então, a hipótese de que poderia haver um mecanismo de defesa de base que particularizasse seus efeitos segundo o setor considerado.

Ele descreveu o seguinte paradoxo quanto aos pacientes limites: a angústia de separação se manifesta quando o objeto está presente ali, e a angústia de intrusão, quando ele está ausente. Daí toda a importância da questão da "distância" no trabalho clínico com esses pacientes.

Outro ponto que me é muito útil, que aprendi com ele é que não devemos tratar como "superficiais" as estruturas histéricas, obsessivas, enquanto as angústias depressivas ou esquizoparanoides seriam as mais "profundas". Na verdade, para ele há sempre uma imbricação entre esses planos, e, sob o efeito da transferência, podemos falar de um jogo (o brincar de Winnicott) dessa articulação.

Um ponto importante pensado a partir de suas análises com pacientes limites foi a relevância da distinção dentro/fora. Ela aparece em todo lugar na psicanálise: entre recalque e pré-consciente, entre inconsciente e somático, na questão do traumatismo. Enfim, diz Green: "O que é a transferência senão um problema de limite, pois consiste em atribuir a alguém algo que não pertence a ele?" (Green, 1986).

O autor tem uma hipótese fundamental para a transferência. Ele diz ser menos importante considerá-la como repetição do passado, de uma história, ou então como construção, criação do nunca acontecido (como já foi dito), do que como sendo o encaixe de duas histórias: a história interna de um inconsciente atemporal e a história da própria análise.

Assim, uma interpretação, mesmo pontual, remete a um já dito na análise. A memória do analista só vai registrar o passado da análise, pois sempre teremos dúvidas, questões sem resposta, no que diz respeito ao passado do paciente. Então o analista só pode se fundar na história da análise. Green considera que na análise tudo se presentifica, mesmo a lembrança do passado da análise quando é lembrado no presente. Essa historicidade da análise tornase visível com a articulação do funcionamento psíquico e da relação de objeto. Articulação do intra e do interpsíquico.

Por fim, gostaria de ressaltar que nessa concepção de Green sobre a transferência que expus acima, ele constrói a noção de uma "célula Eu-Sujeito" (Green, 1984, p. 184). Ele desenhou um esquema para a dupla transferência, no qual é a célula Eu-Sujeito que se articula com os dois tipos simultâneos da transferência. Isso traz implícita uma noção de Eu, que aqui é sinônimo de Ego, e uma de sujeito. O Eu se articula com a cadeia da fala, com o discurso, a mensagem. Já o sujeito, para Green, se articula com a ideia do sujeito barrado e com a cadeia do inconsciente. O Sujeito seria o operador dos mecanismos inconscientes e conscientes, na medida em que passa a se comunicar no nível do Pré-consciente. Um exemplo interessante que costumava dar é o do Narcisismo que está intensamente voltado para o Ego e teme o Sujeito, porque o Sujeito é analisável, isto é, redutível a componentes, a elementos. Assim, para Green, o ego é fenomenológico em sua essência e o Sujeito é analítico.

A obra do grande pensador e psicanalista francês que foi André Green tem uma amplitude que vai muito além dessas ideias que escolhi tratar nesse texto. Não podemos esquecer que ele escreveu uma obra muito extensa que também analisa as questões da Cultura, por meio da arte e da literatura. Além disso, foi um psicanalista muito engajado com a defesa da psicanálise tanto dentro das instituições afiliadas à ipa, quanto em outras de fora dela e também no exterior. Esteve três vezes em nossa Sociedade de São Paulo e sua passagem por aqui sempre provocou questionamentos profundos e polêmicos. Não foi alguém que passou despercebido. Green deixou em nosso meio suas "sementes de saber" psicanalítico.

 

Referências

Green A. (1984). Les langages dans la psychanalyse. In Langages, IIème rencontres psychanalytiques d'Aix-en-Provence, 1983. (pp. 19-250). Paris: Les Belles Lettres.         [ Links ]

Green A. (1986). Conferência proferida na SBPSP em 1986, cujo título era "A dupla transferência".         [ Links ]

 

 

Recebido em 25/10/2012
Aceito em 28/11/2012

 

 

José Martins Canelas Neto. Rua Baltazar da Veiga, 24 04510-000 São Paulo, SP. Tel: 11 3842-4769. josecanelas@uol.com.br
1 Texto escrito a partir da apresentação na Homenagem a André Green, realizada na SBPSP em 26 de maio de 2012.