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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.45 no.83 São Paulo dic. 2012

 

REFLEXÕES SOBRE O TEMA

 

O mito de Sísifo e a falha do trabalho do negativo: um percurso clínico

 

The myth of Sisyphus and the failure of the work of the negative: a clinical route

 

El mito de Sísifo y el fracaso del trabajo de lo negativo: un recorrido clínico

 

 

Maria Angélica Braga de Oliveira e AlvesII; Cristina Maria Cortezzi ReisI; Francisco Antonio DuarteIII; Mariangela Carvalho Canellas SilvaIII; Orlando Hardt JuniorII; Patrícia de Campos Lindenberg SchoueriIII; Rosemary de Fátima BulgarãoII

IMembro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo sbpsp
IIMembro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo sbpsp
IIIMembro filiado do Instituto de Psicanálise "Durval Marcondes" da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo sbpsp

 

 


RESUMO

Os autores descrevem um caso de autismo através da metáfora do mito de Sísifo, fazendo uma interface com a falha do trabalho do negativo, conceito proposto por André Green.

Palavras chave: autismo, pulsão de morte, falha do trabalho do negativo


ABSTRACT

The authors describe a case of autism through the metaphor of the myth of Sisyphus, making an interface with the failure of the work of the negative, concept proposed by André Green

Keywords: autism, death instinct, the failure of the work of the negative


RESUMEN

Los autores describen un caso de autismo a través de la metáfora del mito de Sísifo, haciendo una interfaz con el fracaso del trabajo de lo negativo, concepto propuesto por André Green.

Palabras clave: autismo, pulsión de muerte, fracaso del trabajo de lo negativo


 

 

No meio do caminho

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra

Nunca me esquecerei desse acontecimento
Na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.

Carlos Drummond de Andrade (2010)

Apresentação

Este trabalho é resultado das reflexões do nosso grupo da SBPSP de São José dos Campos. A possibilidade de nos reunirmos para trocar experiências e redigir nossas inquietações acerca de uma criança autista gerou um material rico que desejamos compartilhar com os colegas que se interessam pelo assunto ou cuidam desses pacientes.

Propor uma interface entre o mito de Sísifo, a pulsão de morte tal como a descrita por Freud e a concepção provocante e desafiadora sobre o trabalho do negativo de André Green, colocou em evidência uma oportuna e interessante questão: podemos entender a falha na instauração/operação do trabalho do negativo como uma possível metapsicologia para o autismo de Pedro, o paciente em questão?

Ou será que Pedro, como uma pedra sem Drummond, é um Sísifo, tal qual o da mitologia grega, condenado a um destino sem metaforização, sem uma narrativa que lhe nomeie a alma?

 

A história de Pedro

A hostilidade primitiva do mundo, através dos milênios, remonta até nós. Por um segundo, não entendemos mais, porque durante séculos só entendemos nele as figuras e desenhos que lhe fornecíamos previamente, porque agora já nos faltam forças para usar esse artifício. O mundo nos escapa porque volta a ser ele mesmo. Aqueles cenários disfarçados pelo hábito voltam a ser o que são. Afastam-se de nós. Assim como há dias em que, sob um rosto familiar, de repente vemos como uma coisa estranha àquela mulher que amamos durante meses ou anos, talvez cheguemos mesmo a desejar aquilo que subitamente nos deixa tão só. (Camus, 2005, pp. 28-29)

Pedro iniciou a análise aos cinco anos, encaminhado pela terapeuta ocupacional que o recebeu com a hipótese diagnóstica de autismo de Kanner1. Atualmente, além da análise, ele permanece com a terapeuta ocupacional e a fonoaudióloga, porém, toda a medicação até então utilizada pôde ser retirada.

Os pais enfrentaram dificuldades para gerar filhos; após um aborto espontâneo da mãe, submeteram-se a um processo de fertilização, sendo Pedro fruto de uma gravidez gemelar com uma menina. Segundo os pais, a irmã gêmea "nasceu primeiro e amassou-o no fundo do útero" na hora do parto. Seu desenvolvimento "correu bem até os onze meses de idade", época em que a mãe, retornando ao trabalho, precisou viajar, ausentando-se por quatro dias. No reencontro com ela, Pedro foi tomado por uma crise de choro que evoluiu rápida e gravemente tanto para a perda de habilidades já adquiridas, como para o comprometimento e impossibilidade de novas aquisições.

Desta maneira, palavras que até então ele proferia, como mamãe, pizza e papai desapareceram, ao mesmo tempo em que surgiu uma perda de contato visual, isolamento progressivo, utilização das mãos dos outros como se fossem as suas, agitação de comportamento e sono difícil. Não conseguia engolir nem cuspir alimentos sólidos, levando-o a mastigar por mais de vinte minutos. Também não podia assoar e nem aspirar suas secreções nasais e adquiriu o controle dos esfíncteres somente um ano após o início da análise.

Além de sua irmã gêmea, o paciente tem um irmão três anos mais novo. Pedro convive com três idiomas, português e inglês, devido ao trabalho dos pais e um terceiro, nativo dos avós paternos e maternos. Como a profissão dos pais exige constantes viagens, eles procuram se organizar de modo que um esteja presente na ausência do outro, mas nem sempre isto ocorre.

Esta foi a história relatada pelos pais. Nada, assim considerado, parecia justificar o autismo. O que afluiu no grupo foi um estranhamento que suscitou questões tais como: será que ter nascido gêmeo com uma menina, que o amassou no fundo do útero, além de ter sido deixado aos onze meses pela mãe e por quatro dias, puderam eclodir num transtorno tão grave, selando o seu destino, desabilitando-o em conquistas já adquiridas, além de impedi-lo de novas aquisições? Por que, à primeira vista, tais fatores nos saltavam aos olhos? Seria pela facilidade do pensamento linear de causa/efeito? Ou será que algo já deslizava silenciosamente pelas sombras de sua alma, algo que, investido pela vivência de uma dor insuportável, manifestou-se numa resposta autística, garantindo a sua sobrevivência?

 

Sísifo e o autismo: primum vivere, deinde philosophari?2

A ideia da interface entre Sísifo, personagem da mitologia grega e Pedro, resultou da ocorrência de dois sentimentos interessantes e contraditórios que se manifestaram no grupo durante os relatos de algumas sessões, onde ora predominava uma repetição monótona que parecia levar do nada a lugar nenhum, e ora, dessas mesmas repetições, surgia um gesto que evocava sentido e significado.

Se a paralisia da repetição nos remetia a uma representação de Sísifo, condenado a rolar uma pedra morro acima, apenas para vê-la rolar morro abaixo, onde tudo recomeçava, perpetuando um trabalho inútil e vão, o surgimento de pequenos gestos, mesmo que portadores de garatujas de sentido e significado, remetia-nos a uma outra representação, agora tal como aquela proposta por Camus em seu livro O mito de Sísifo (2005), isto é, a de herói do absurdo.

Sob a luz do pensamento camusiano, Sísifo é aquele que rola a pedra, mas tem consciência do absurdo da condição humana que, assim como ele, está imersa na rotina, onde todos executam um trabalho repetitivo. A diferença se faz na medida em que existe ou não consciência do que, e por que fazemos o que fazemos.

Sem consciência, rolar a pedra é aderir à pedra, o que acaba por fazer de Sísifo, pedra também. É a ruptura com a rotina, com a fusão/repetição automática que parteja se puder ser tolerada, a possibilidade de tomada de consciência e, se for impossível de ser tolerada, a negação e recusa dessa percepção.

Assim, o mito nos auxiliou como uma ferramenta-sonho, assinalando um ponto de partida onde há uma universalidade da conduta humana (repetição como estabelecimento da rotina e possibilidade de tomada de consciência), que depois pôde evoluir para a singularização da vida afetiva do paciente. Utilizar e fazer trabalhar a função mítica ajudou- nos a compreender algo desse sofrimento autístico, presente em demasia em nosso mundo contemporâneo.

É necessário registrar que aprendemos o quanto é fundamental que o analista tenha em mente que a repetição, se tomada como apenas inútil e vã, se não for considerada em sua devida importância, cobrará seu preço, minando todos os esforços terapêuticos da dupla.

Se nossa elaboração permitiu-nos encontrar um duplo sentido no mito de Sísifo, ampliando nossa compreensão e abrindo outras possibilidades técnicas de acolher esse sofrimento, também nos ensinou, principalmente, que só ao paciente cabe não reagir à reiterada descida da pedra, porque ele mesmo já está pedra, efeito que pode estender-se ao analista e petrificá-lo, ao deixar escapar as pequenas diferenças.

 

Um ponto de luz que apanha a palavra certa

"O espetáculo - diz Hamlet - é a armadilha com que vou capturar a consciência do rei". Capturar é a expressão adequada. Pois a consciência anda rápido ou recua. É preciso pegá-la no voo, no momento inapreciável em que lança um olhar fugidio sobre si mesma. (Camus, 2005, p. 91)

Nas sessões iniciais Pedro entrava sempre acompanhado dos pais, mas não interagia com eles. Isolava-se num canto da sala, permanecendo deitado no chão, dividindo a massa de modelar em pequenos pedaços, enfileirando-os monotonamente.

No segundo ano de análise ele conseguiu entrar sozinho, iniciando duas novas atividades: uma, fazia rabiscos circulares onde misturava todas as cores, o que levou sua analista a apontar a confusão por ele vivida e a nomear essas cores individualmente, dizendo: "você pegou o marrom, olha o verde"! E a outra atividade, igualmente significativa, consistia em levar a analista para o corredor3 onde ele descobriu e sentiu-se atraído por um micro ponto de luz no painel do alarme. Esse ponto de luz, ao chamar a atenção de Pedro, despertou o interesse da analista que, com sua sensibilidade aguçada, atribuiu-lhe a devida importância, introduzindo na sessão seguinte a lanterna por ele utilizada no corredor, que culminou com uma brincadeira onde o paciente procurava aproximar-se fisicamente da analista, sentando-se a seu lado e procurando seu colo.

No terceiro ano de análise ele puxou a analista pela mão para saírem à rua, iniciando uma exploração pela vizinhança do consultório, durante dois anos, saindo praticamente em todas as sessões. Impressionava a analista o fato de ele não enxergar, pois ao soltar sua mão, esbarrava em árvores e lixeiras na calçada.

Segundo investigamos, existem três hipóteses que descrevem esses processos perceptivos em autistas: a de que eles respondem somente a um determinado número de estímulos; que sua percepção é instável e, por fim, seriam incapazes de integrar distintas modalidades sensoriais.4

Nesta ocasião, a analista entendia que o mundo externo não entrava pelos olhos do paciente e começou a apresentar-lhe as coisas como se faz com crianças pequeninas, dizendo-lhe: "olha, que flor linda! Olha o passarinho! Passou um avião".

O efeito dessa experiência foi tal que, tempos depois, à cegueira psíquica sobreveio uma visão acurada permitindo que Pedro enxergasse, se interessasse e abaixasse para pegar na rua, folhas e pequenas pedras. Seguiu-se daí a possibilidade de trazer para dentro do consultório coisas da rua e levar para a rua coisas do jardim do consultório. Ocorria ainda de Pedro, ao voltar dessas incursões, ir direto ao banheiro fazer suas necessidades fisiológicas, o que era interpretado pela analista como algo de dentro dele que podia ser posto fora.

Seria esse o início de uma etapa fundamental do desenvolvimento psíquico, a incipiente discriminação dentro/fora? Gradativamente as sessões se intercalavam em ora dentro e ora fora do consultório até que, há mais de dois anos, vêm acontecendo apenas dentro do consultório.

Pedro e sua analista, ao que parece, conseguiram romper com o isolamento autístico agudo quando apanharam, num movimento comum, a importância do ponto de luz que evoluiu para lanterna/palavra certa. A analista, ao trazer a lanterna para a sessão, teve uma sensibilidade hamletiana: capturou a consciência de Pedro e isto foi determinante nessa etapa onde filtrar, apresentar, nomear e ajudar a metabolizar o mundo interno/externo e suas emoções é fundamental para o desenvolvimento do psiquismo.

 

A falha no trabalho do negativo

A história de Pedro nos intrigou e instigou-nos a procurar formas de compreender a extensão da possível catástrofe ocorrida no início de seu desenvolvimento, cujas consequências, segundo nossa proposta, geraram respostas autísticas.

Durante as pesquisas sobre o tema, o livro de André Green, intitulado O trabalho do negativo, destacava-se como nosso principal interlocutor, sendo o que mais nos abria possibilidades de formular hipóteses sobre esse não desenvolvimento ou interrupção brusca do desenvolvimento psíquico de Pedro.

Inspirados por esse autor, retomamos a leitura de um capítulo do livro O brincar e a realidade, de Winnicott, onde destacamos um trecho que merece ser citado na íntegra, uma vez que nos ajuda a sustentar nossa hipótese, qual seja, a longa e prematura separação ocorrida entre Pedro e sua mãe, devido à sensibilidade dele, desencadeando uma dor insuportável e impossível de ser contida e ocasionando uma vivência traumática. É a questão temporal que aqui ganha valor, ao impor um "excesso" que intensifica a dor da separação: dor em demasia traumatiza. Winnicott trata desse aspecto no referido texto, afirma que:

Talvez valha a pena tentar formular isso de maneira a que se conceda ao fator temporal o devido peso. O sentimento de que a mãe existe dura X minutos. Se a mãe ficar distante mais do que X minutos, então a imago se esmaece e, juntamente com ela, cessa a capacidade do bebê de utilizar o símbolo da união. O bebê fica aflito, mas essa aflição é logo corrigida, pois a mãe retorna em X+Y minutos. Em X+Y+Z minutos, o bebê ficou traumatizado. Em X+Y+Z, o retorno da mãe não corrige o estado alterado do bebê. O trauma implica em que o bebê experimentou uma ruptura da continuidade da vida, de modo que as defesas primitivas agora se organizaram contra a repetição da "ansiedade impensável" ou contra o retorno do agudo estado confusional próprio da desintegração da estrutura nascente do ego. (Winnicott, 1975, p. 135)

Ao tensionar ao máximo essas ideias de Winnicott, algumas de Bion e outros autores, Green concebe sua teoria sobre um trabalho do negativo que opera dentro da mente humana que é estruturante e fundante do psiquismo. Green diz que "essas experiências traumáticas que colocaram à prova a capacidade de espera da criança a respeito de uma resposta ardentemente desejada por parte da mãe, conduzem, na falta desta resposta, a um estado em que só o negativo é real." (2010, p. 19)

Deste modo, para Green, o que é fundante e estruturante no trabalho do negativo é a possibilidade de negativização dos excessos, permitindo que possam ser contidos e elaborados.

É o objeto primário em seu excesso de presença/ausência que é traumático para o psíquico nascente. Se o trabalho do negativo se instaura e pode funcionar, ele "apaga" os excessos, inscrevendo a falta/desejo/possibilidade de reencontro. Essa operação sustenta o símbolo da união na ausência, como vimos em Winnicott, tecendo espaço para a instalação dos processos de diferenciação, internalização e simbolização.

Efetivando-se o trabalho do negativo, surgiria uma organização do espaço interno que impediria que a vivência da separação fosse equacionada ao caos e ao desamparo. Mas, falhando o trabalho do negativo, a separação provocaria tamanha dor, resultando em um trauma que fere tragicamente o psíquico incipiente, causando, ao que tudo indica, o desinvestimento radical do objeto, cuja consequência é um ataque à percepção, ao ego, ao vínculo e ao pensamento. O desespero e a dor daí provenientes parecem contribuir de forma contundente para que esses pacientes digam não a tudo, funcionando o não como marca registrada, exclusão radical que, conforme descrito por Winnicott, corroborado por Green, privilegiaria o aspecto negativo como modo de relacionamento.

Concluindo, nossa proposta é que Pedro, no tempo da separação, não havia ainda negativizado o objeto primário/mãe o suficiente, portanto, não pôde suportar uma separação que para ele foi de X+Y+Z, tempo do trauma, tempo onde não há mais como corrigir o estado alterado do bebê. Seria o excesso, esse a mais, que impediria a instauração/operação do trabalho do negativo? Isso nos ajudaria a pensar por que Pedro, no retorno da mãe, após os quatro dias de ausência, não pôde mais regozijar-se com sua presença? Ele não só não pôde abraçá-la, como a excluiu (isto é distinto de apagar) de seu mundo. O menino que existia na partida da mãe, já não existe mais no seu retorno.

Se assim ocorreu, poderíamos pensar que a falha no trabalho do negativo deixa o caminho livre para a ação da pulsão de morte, facilitando a desfusão em grau desfavorável à vida, restabelecendo um regime de sobrevivência e não mais de prazer/desprazer?

Tustin (1975, p.171), também identificou o componente da desfusão em grau elevado no autismo ao observar que essas crianças parecem encontrar-se em um estado de limbo, transitando entre o existir e o não existir. Decorre dessa constatação sua valiosa orientação técnica onde os analistas devem agir a favor da vida, o que alivia muito esses pacientes que têm forte atração pelo inanimado. Ela nos ensina que "a falta de pretensão, de artificialismo e a simplicidade, atuarão como uma arma poderosa contra a falta de contato que essas crianças demonstram em relação a si mesmas e ao mundo externo".

Se no início dessa análise os sinais de uma desfusão das pulsões, somados (decorrentes?) a uma falha no trabalho do negativo, eram evidentes e se expressavam na repetição, indiferença, solidão, isolamento, alienação, confusão e cegueira psíquica, com o transcorrer da análise novas aquisições foram possíveis e eram visíveis, tais como o asseio, a ingestão de alimentos sólidos e o uso de talheres. Instaurou-se também uma comunicação tão significativa na dupla analítica que permitiu a Pedro olhar nos olhos da analista, dizer "tchau" ao final das sessões e contar nos dedos dela "um, dois", como se agora reconhecesse a separação de corpos.

A evolução no trabalho com Pedro permitiu-nos pensar que ele encontrou na relação de análise um continente primeiro para a excorporação, e depois, projeção das intensidades e excessos pulsionais. E é nessa relação que parece estar sendo possível para o paciente aprender que a força do vínculo é capaz de mitigar e tornar suportável a dor da ausência. A analista, ao tolerar a monotonia, indiferença e exclusão, sobrevivendo com criatividade amorosa, propõe transformações emocionais nos resultados das equações afetivas até então dominantes. Não seria isso o apagamento dos excessos, a negativização mínima do traumático?

 

Comentários finais: a gemelaridade

Até aqui vimos que casos graves como o de Pedro exigem do analista o desenvolvimento de estratégias clínicas criativas, tais como a lanterna, as incursões pelas ruas do bairro, entre muitas outras que não citamos. Theresa R. L. Haudenschild (1996, p. 256)5 propõe que o brincar tanto pode coexistir com as defesas autísticas, como pode ser impedido por elas. O analista, ao contribuir para a aparição ou expansão do brincar, desbloquearia a imaginação (adequada ou não) favorecendo, assim, o contato com a vida.

Também trabalhamos com a hipótese de que a separação foi vivida em um momento onde Pedro não estava pronto o suficiente para aprender com essa experiência, fato que organizou, devido a uma falha na instauração/operação do trabalho do negativo, um funcionamento psíquico que visa a impedir o surgimento da "angústia impensável" e para tanto, só pode excluir e dizer não a tudo. Todo contato, não podendo ser negativizado, é um excesso desde então.

Pensando ainda nessa sensibilidade dramática do paciente, a questão da gemelaridade mereceu ser pensada: ter nascido gêmeo com uma menina, que nasceu primeiro e o "amassou no fundo do útero" teria sido o a mais que lesionou Pedro logo no início de sua vida? Korbivcher (2010, pp. 13-25) e Tustin (1984, p. 135) nos apresentam alguns casos de autismo onde existe gemelaridade, evidenciando que esse fato pode e deve ser levado em consideração.

Esse casal gemelar levou-nos a pensar que, embora semelhantes na aparência, obviamente seriam diferentes do ponto de vista pulsional/afetivo, principalmente na questão temporal: ele não só nasce depois, como desmama muito depois, além de exigir mais a presença física e afetiva da mãe.

Tustin (1990) propõe que o autismo, em muitos casos, pode estar associado ao nascimento de irmãos, descrevendo a experiência aterrorizante que inclui a presença de bocas sugadoras ou rivais predadores que competem por impor sua presença, engendrando nesse bebê "o perigo de ser amarrotado e jogado fora". Nessa situação o bebê sente os irmãos como um enxame de crias que ameaçam expulsá-lo ou esmagá-lo até a morte.

Um dos relatos de sessão de Pedro é sobre uma brincadeira onde ele desenhava, depois rabiscava sobre esse desenho tornando-o quase impossível de discriminação e então o amassava e jogava fora, não no lixo habitual da sala, mas em outro recipiente que podemos chamar de não lixo. A analista, observada por Pedro, recolhia, desamassava e guardava esses desenhos em uma pasta. Não estaria ele reproduzindo sua experiência de início de vida e encontrando na analista uma resposta sob medida para a sua dor? Teria ele se sentido como uma bolinha de papel que foi amassada e jogada no lixo? Teria sua irmã ficado com o positivo, o bom da relação com a mãe e ele com o mau, o excesso? Como é para uma mãe experimentar ao mesmo tempo uma regressão homossexual para lidar com a filha e ser convocada para a questão edípica com o filho? Teria essa mãe sido retida na relação narcísica com a filha, restando a Pedro ser a pedra no meio do caminho delas?

Essas questões surgiram com mais clareza quando a analista relatou sua segunda entrevista com os pais e só aí deu-se conta de que havia se esquecido de alguns dados. Tínhamos conhecimento de que a mãe, por ter endometriose, não conseguia engravidar, o que levou o casal a recorrer ao método de fertilização artificial. A primeira gravidez não vingou, ocorrendo um aborto espontâneo que entristeceu o pai, pois a mãe disse nem ter sentido que estava grávida. A segunda gravidez foi gemelar, que deu origem a Pedro e sua irmã, e ocorreu um ano após esse aborto.

Ficamos sabendo então que: a mãe sentiu-se profundamente cansada e exaurida pelos cuidados dispendidos com os gêmeos. Segundo ela, "cuidar sozinha dos bebês era tão cansativo que meu corpo parecia não atender mais minha mente e tinha a sensação de que ele (corpo) ia sair pulando pela janela". Ouvindo essas palavras a analista pergunta se ela havia pensado em morrer e a mãe responde: "não, era só cansaço físico mesmo".

O sentimento que emergiu no grupo após este relato era que a mãe estava confessando, de forma cindida, sua fantasia de suicídio/filicídio. Excedida em sua mente, ela não aguentou considerar seu desejo de também não ter filhos, que de alguma forma foram enterrados no corpo e representados pela endometriose e aborto. Teria esta cisão comprometido sua possibilidade de maternar, ainda mais, dois bebês? Ela pôde fertilizar o útero, mas não a mente e o coração de forma integrada, pois ter um filho nessas condições já é arriscado, ter dois é excessivo, é demasiado.

Não teria Pedro se deformado no autismo para sobreviver e manter a mãe viva também? O corpo que quer pular pela janela também pode ser pensado como o filho que a mãe quer amassar e jogar pela janela. Se com a filha a dupla estava constituída, o excesso era ele, a pedra no meio do caminho era ele, mas era também, quem sabe, a impossibilidade de rêverie desses pais tão fragilizados por uma gravidez gemelar, originada na fecundação artificial.

Pensando na pedra de Drummond como paradigma de nosso trabalho analítico pudemos entender que, ao poetizar o paciente, engendramos uma narrativa que possibilitaria a expressão de grandes sofrimentos, indizíveis porque impensáveis. E ao fim e ao cabo, pedra já não é algo só no meio do caminho, que atravanca, mas algo com que se pode construir caminhos, vias, pontes e conexões dentro do possível para cada um de nós.

 

Referências

Andrade, C. D. (2010). Uma pedra no meio do caminho: biografia de um poema. Edição ampliada Eucanaã Ferraz. Rio de Janeiro: Instituto Moreira Sales.         [ Links ]

Camus, A. (2005). O mito de Sísifo. (2ª ed.). Rio de Janeiro: Record.         [ Links ]

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Winnicott, D. W. (1975). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

 

 

Recebido em 23/09/2012
Aceito em 14/11/2012

 

 

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1 Características básicas: aloneness (isolamento autístico), sameness (necessidade de imutabilidade), distúrbios de comunicações verbais e não verbais e surgimento dos sintomas até os 30 meses de vida.
2 Tradução livre do latim: primeiro viver, depois filosofar?
3 Espaço existente entre a porta que fecha o acesso da sala de espera para a sala de atendimento.
4 Lebovici, S. Autismo e psicose da criança. (1971), p. 96.
5 Também encontramos essa abordagem em comunicação pessoal feita por Paulo Duarte Guimarães.