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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.45 no.83 São Paulo Dec. 2012

 

TRANSMISSÃO DA PSICANÁLISE

 

Leitura de Freud: um estilo de transmissão1

 

Reading Freud: a style of transmission

 

Lectura de Freud: un estilo de transmisión

 

 

Cecilia Maria de Brito Orsini

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo sbpsp

 

 


RESUMO

O artigo apresenta uma síntese da trajetória da autora como docente da obra de Sigmund Freud, tendo como ponto de partida uma reflexão sobre a experiência de leitura desta obra. Numa profícua aproximação com a experiência literária - guardadas as diferenças entre teoria e arte -, o ato de ler é entendido como uma experiência integral, em que não há separação entre vida, teoria e clínica. Nessa perspectiva, a autora apresenta os principais meios que utiliza como apoio à leitura de Freud: os dicionários de psicanálise, as biografias, a tradução direto do original alemão, as notas introdutórias de James Strachey (editor inglês das obras completas de Freud) e os comentadores. A função do comentador da obra freudiana ganha destaque por colocar em evidência a importância de uma leitura ao mesmo tempo vertical e de conjunto para o sucesso da abordagem de uma obra complexa como a de Freud, para quem visa uma penetração efetiva na mesma.

Palavras chave: ensino de Freud, metapsicologia freudiana, leitura psicanalítica, clínica psicanalítica, psicanálise e literatura


ABSTRACT

This article presents a summary of the author's background as a lecturer of Sigmund Freud's work, starting with a reflection on her experience of reading this work. In a profitable relationship with the literary experience - considering the differences between theory and art - the act of reading is understood as an integrated experience, wherein there is no separation between life, theory and the clinic. From this perspective, the author presents the main means used as support for reading Freud: psychoanalysis dictionaries, biographies, direct translations of the original works in German, introductory notes by James Strachey (the English editor of the complete works of Freud) and other commentators. The job of a commentator of Freud's work is crucial because it sheds light on the importance of reading that needs to be simultaneously vertical and generalized for the successof an approach to a work as complex as that of Freud, for those who require an effective penetration of this work.

Keywords: Freud teaching, Freudian metapsychology, psychoanalytic reading, psychoanalytic clinic, psychoanalysis and literature


RESUMEN

El artículo presenta una síntesis de la trayectoria de la autora como docente de la obra de Sigmund Freud, tomando como punto de partida una reflexión sobre la experiencia de lectura de esta obra. En una provechosa aproximación a la experiencia literaria - salvando las distancias entre teoría y arte - el acto de leer es entendido como una experiencia integradora, en la que no hay separación entre vida, teoría y clínica. Dentro de esta perspectiva, la autora presenta los principales medios que utiliza como apoyo para la lectura de Freud: los diccionarios de psicoanálisis, las biografías, la traducción directamente del original en alemán, las notas introductorias de James Strachey (editor inglés de las obras completas de Freud) y los comentaristas. La función del comentarista de la obra freudiana gana visibilidad al poner en evidencia la importancia de una lectura al mismo tiempo vertical y de conjunto para el abordaje exitoso de una obra tan compleja como es la de Freud, para quien se propone una penetración eficaz en la misma.

Palabras clave: enseñanza de Freud, metapsicología freudiana, lectura psicoanalítica, clínica psicoanalítica, psicoanálisis y literatura


 

 

Camarada, isto não é um livro,
Quem toca nisto, toca em um homem,
(É noite? Estamos sozinhos?) Sou eu que seguras, e que te segura,
Eu salto das páginas para teus braços - a morte me chama.
Walt Whitman, Folhas da relva2

 

1. A experiência de ler

A leitura de Freud sempre foi para mim, antes de tudo, uma experiência integral. Meu primeiro contato com sua obra se deu em 1976, na faculdade de psicologia. Para começar, lemos as clássicas "Cinco lições de psicanálise" (1909/1970), proferidas por Freud em 1909, em solo americano, como material de difusão da disciplina recém-criada. A seguir lemos a opus magnum de Freud, "A interpretação de sonhos" (1900/1972a). De imediato fiquei fascinada com a revelação do inconsciente, principalmente na modalidade interpretativa dos sonhos. Pareceu-me admirável que a possibilidade de sonhar contivesse tantas e tão férteis revelações - ainda que algumas pudessem ser temíveis - e, o mais importante, que o sonhador pudesse ser o seu próprio intérprete. Desde então, comecei a praticar a arte de interpretar meus próprios sonhos. Ao mesmo tempo, dava início à experiência de minha análise, o que garantia que essas interpretações não fossem apenas um delírio pessoal. Por isso digo que a leitura de Freud foi para mim, desde o princípio, uma experiência integral.

A ideia de "interpretar" entrelaçava-se a um antigo amor pela interpretação de textos, adquirido no ginásio. Líamos poesia e discutíamos os demais elementos contidos no texto, para além daqueles manifestados explicitamente, procurando perceber aquilo que estava implícito nas entrelinhas. Subitamente o texto mostrava-se tão mais rico do que a princípio e esse exercício de descoberta nos deslumbrava, numa fase da vida em que a revelação da imensidão do mundo, transcendendo os limites do grupo familiar, é tão essencial quanto temível e fascinante.

No que se refere à experiência terapêutica, Thomas Ogden (1996) verifica semelhanças entre a leitura e o trabalho psicanalítico:

Ler não é uma simples questão de examinar, ponderar ou até pôr à prova as ideias e experiências apresentadas pelo escritor. Ler implica uma forma de encontro muito mais íntima. Você, o leitor, precisa permitir que eu o ocupe - seus pensamentos, sua mente, já que não tenho outra voz para falar senão a sua. Se você pretende ler este livro, dar-se-á o direito de pensar meus pensamentos, enquanto que eu preciso permitir tornar-me seus pensamentos; assim nenhum de nós será capaz de reivindicar o pensamento como sua criação exclusiva.

A conjunção de minhas palavras e sua voz mental não representa uma forma de ventriloquia. Um evento humano muito mais complexo e interessante está em jogo. Um terceiro sujeito é criado na experiência de ler. Sujeito este não redutível ao escritor nem ao leitor. A criação de um terceiro sujeito (que existe em tensão com o escritor e o leitor como sujeitos separados) é a essência da experiência de ler, e, como será desenvolvido neste volume, é também o núcleo da experiência psicanalítica. (p. 1)

O encontro com a escritura do outro conduz à criação de uma terceira experiência, intermediária e indeterminada. "Eu salto das páginas para teus braços - a morte me chama." Ao dedicar ao leitor o livro Folhas na relva, conforme demonstra o trecho que serve de epígrafe ao presente artigo, o poeta norte-americano Walt Whitman lança-se nesse espaço de indeterminação, borrando os contornos nítidos de sua identidade autoral para produzir um encontro com o leitor, e, por conseguinte, a própria criação poética. Nesse caso, não é apenas um autor abstrato que se lança para a morte nos braços do leitor, mas um homem de carne e osso, cujas mãos deitaram as palavras no papel. A dimensão do encontro entre autor e leitor é expressa como real, sensória, e mesmo sensual. Ao eliminar as diferenças entre abstrato e concreto, o poeta denuncia a inexistência de fronteiras rígidas entre essas duas categorias, e transforma o ato da escrita e da leitura em algo performático, no qual vida e literatura se fundem, assim como as mortes abstrata e concreta se unem na sugestão de um encontro amoroso entre dois sujeitos que estão nos braços um do outro.

Não seria a clínica psicanalítica o espaço de ressignificação do encontro com o outro, de modo que o risco inerente a esse encontro, ao invés de produzir defesas paralisantes, possa abrir caminho para a criação e para novos encontros? Assim penso, seguindo o poeta, não fazer sentido diferenciar teoria e clínica, no que se refere à psicanálise.

Sob essa perspectiva, quando tomamos um livro de Freud nas mãos, não seguramos apenas um livro, mas as mulheres e homens por ele analisados, além dele próprio, todos em carne e osso, pulsando em sua tentativa de encontrar caminhos no emaranhado, por vezes estrangulado, dos encontros. Se a leitura é um encontro real entre seres, a prática analítica seria uma tentativa de reler a realidade desse encontro, revelando, como na morte sugerida no verso de Whitman, sua dimensão indeterminada, para além da aparente determinação opressiva que os encontros passados exercem sobre aqueles que padecem psiquicamente. É nesse sentido que a leitura da obra de Freud foi para mim como um encontro com essa diversidade, que me chegou em forma de letras impressas sobre folhas de livro, e informe naquilo que a potência desse encontro produziu entre nós.

A par da leitura de Freud, devo esclarecer que, durante muitos anos, tive a grata experiência de participar de um grupo de estudos com o professor Modesto Carone, crítico literário, ensaísta, autor e tradutor de Kafka. Nesse grupo de estudos, tomei consciência acerca do que é "ler de verdade", quer dizer, entregar-me ao texto a ponto de deixar-me impregnar por ele, vê-lo modificar percepções e experiências de mundo. Incontáveis vezes Carone frisava que a literatura conhece, descobre, pela via sensual, aquilo que a disciplina teórica - a ciência - faz pela via conceitual. Além dos estudos realizados com Carone, tive também o privilégio de estudar Guimarães Rosa com Adélia Bezerra de Meneses, Clarice Lispector com Yudith Rosenbaun e o Romantismo com José Antonio Pasta Jr., todos professores da Faculdade de Letras da usp.

 

2. Mudanças e permanências: ferramentas de leitura

Como a investigação psicanalítica é de uma racionalidade não positivista, seu corpo teórico possui lógica, rigor e, ao mesmo tempo, maleabilidade, derivações e interpretações não unívocas, constituindo uma trama complexa, não linear, dependente da trajetória clínica e de leitura de cada um. É por isso que, para pensar o ensino de Freud, considero profícua a atitude na relação professor-aluno proposta por Marilena Chauí (2001), em que o lugar do professor supõe um lugar vazio, a ser ocupado pelo aluno: o lugar do encontro com a obra. A filósofa propõe uma imagem que me é muito cara: a da aula de natação, na qual o embate do aprendiz não se dá com o professor, mas com a água. Não se aprende a nadar na areia, imitando os gestos do professor. Ambos mergulham juntos na água e o professor procura apenas transmitir os gestos facilitadores do mergulho.

Traduzindo a imagem para o nosso caso, o professor-leitor não existe para transmitir uma versão definitiva de uma obra tão complexa como a de Freud, mas para fornecer elementos que auxiliem o mergulho do aluno-leitor no embate pessoal com a obra. É preciso sempre recordar que considero a obra também sob a perspectiva sensória e sensual. Trata-se de um tecido conceitual dinâmico e complexo, que alterna mudanças e permanências, com importantes ressignificações, cuja compreensão depende do entendimento de conceitos iniciais.

Para efetuar esse mergulho junto com os alunos, que prefiro chamar de colegas-leitores, elaborei, ao longo dos anos, algumas ferramentas de leitura que, seguindo a imagem de Marilena Chauí, chamaria de gestos facilitadores ao mergulho e nado, sempre assinalando a não diferenciação entre teoria e clínica, uma vez que ambas estão sempre imbricadas, tornando nossa experiência de certo modo estética, tal como observado no início deste artigo.

Quais são, então, esses gestos facilitadores para o embate com as águas da obra? São aqueles movimentos que fui construindo, com carinho e paciência, e não sem tensão, que acabaram se revelando os mais propícios à entrada e à compreensão da obra de Freud. Eu os chamaria de meios de trabalho ou ferramentas privilegiadas de compreensão. São eles:

1. Os dicionários e vocabulários de Psicanálise;

2. As biografias de Freud;

3. As notas de James Strachey, editor inglês da Standard Edition das Obras Completas de Freud, vertidas para o português pela Imago entre 1969 e 1976, na Edição Standard Brasileira;

4. Os comentadores de Freud;

5. As boas traduções, direto do original alemão, encontráveis apenas a partir de 2010, quando o texto de Freud cai em domínio público.

A cada texto lido, busco a articulação cuidadosa com essas cinco ferramentas, o que, ao longo da leitura, permite alcançar uma visão do percurso da obra freudiana, com começo, meio e fim; a compreensão do conjunto - que, no caso de Freud, não é necessariamente totalizante -, ajuda a iluminar cada etapa e cada conceito específico, enriquecendo e aprimorando nossa acuidade clínica, bem como nossa experiência de ler.

Isso permite inclusive - o que considero essencial - observar com mais pertinência e rigor as saídas encontradas pelos vários autores que têm, em Freud, o seu ponto de partida. São soluções diferentes, caminhos diversos, nos quais se perde o colega-leitor se não houver consciência do ponto de partida do autor em tela: é preciso verificar com que tipo de problemática, deixada em aberto na obra de Freud, ele se ocupou, com que tensões significativas da obra trabalhou, a que resultados e encaminhamentos chegou, que novas perguntas levantou. O conhecimento aprofundado da obra de Freud situa e dá inteligibilidade às saídas e caminhos elaborados pelo autor ou comentador. Com isso, o colega-leitor pode compreender com mais propriedade em que terreno está pisando, em que tipo de problemática estará adentrando, quando elege tal ou qual autor, o que também considero fundamental para nosso desenvolvimento clínico.

 

3. A função do comentador

Não gostaria, nos limites de um artigo, de estender-me em demasia. Foi por isso que tomei a decisão de, entre as cinco ferramentas elencadas acima, destacar a função do comentador, não por ser a mais importante, mas sim, por ser a que melhor ilustra o meu estilo de transmissão, as minhas preocupações primordiais e o modo escolhido para encaminhá-las na experiência com o colega-leitor.3

Pensando que meu papel é o de transmitir a suficiente amplitude de movimentos que permitam ao colega-leitor adentrar a obra com profundidade e consistência, me preocupo em não recortar os conceitos, não privilegiar uma etapa em detrimento da outra, mas assinalar, a cada vez, esses intricados - mas reveladores - trajetos.

O trabalho do comentador é essencial nesse sentido, por ser o resultado de uma elaboração intensa e extensa daqueles que se dispuseram a mergulhar profundamente na obra, e emergiram renovados, inovando - com análises, comentários e enfoques valiosos - a nossa experiência de ler Freud. Esses comentadores representam grandes nadadores do ato de leitura. Costumo destacar, em especial, três deles - cujo fulcro dos trabalhos sintetizarei a seguir -, pelo tipo de questões que abordam e pelo modo como as encaminham. Em outras palavras, significaram grandes encontros e experiências impregnadoras de leitura. Conheci o primeiro, Paul-Laurent Assoun, por meio de leituras; já os dois últimos, Monzani e Garcia-Roza, conheci ao ter o privilégio de participar de seus respectivos grupos de estudos. A conjugação do trabalho desses três comentadores produziu frutos em minha apreensão do conjunto da obra de Freud, de modo a possibilitar a tomada de consciência acerca da proximidade entre aspectos complexos e pontos de tensão da obra freudiana, bem como dos efeitos das preocupações centrais do autor na produção de nosso saber.

Paul-Laurent Assoun (1983) destaca, de modo diferente do habitual, o chamado período pré-psicanalítico em Freud, demonstrando o quanto, nesse momento - de modo semelhante a um prisma por intermédio do qual, num efeito de refração -, é forjada a concepção do nosso objeto de trabalho: os processos inconscientes.

Luiz Roberto Monzani (1989, 1991), porque estuda minuciosamente as oscilações do pensamento freudiano, suas idas e vindas, e extrai daí imagens utilíssimas para pensarmos o método freudiano de trabalhar e pensar. Trata-se das imagens da espiral e do pêndulo, explicadas mais abaixo, e do método peculiar que Freud tem de fantasiar cientificamente.

Luiz Alfredo Garcia-Roza (1991, 1993 e 1995) demonstra, com grande clareza, rigor e desenvoltura, o método de Freud em ação, na construção de seus modelos do aparelho psíquico, pelo vértice privilegiado da linguagem e da memória, na esteira do retorno a Freud, promovido por Jacques Lacan na década de 1960.

Sintetizando, a contribuição dos três autores acima - a ideia da existência de alicerces que funcionam como um prisma refratando a linguagem em que se nomeia nosso objeto (Assoun), a observação de um pensamento que oscila entre polos opostos - ao mesmo tempo em que evolui em espiral (Monzani) -, a centralidade do papel da linguagem e o consequente esclarecimento das várias concepções do funcionamento psíquico em Freud (Garcia-Roza) e seu método de fantasiar cientificamente - compõe um estilo de nado muito proveitoso, que nos deixa melhor aparelhados para enfrentar os vagalhões da obra de Freud, também em alto mar.

Para fazer justiça a vários outros comentários da obra de Freud, destacaria também as excelentes contribuições de Renato Mezan, Monique Schneider e Marthe Robert, que não serão aqui abordadas pelo fato de que acabaram não tendo o mesmo peso dos três anteriores em meu percurso pessoal de formação profissional. Recomendo vivamente, porém, a leitura de suas obras. Passemos, desse modo, à descrição dos trabalhos dos comentadores selecionados.

3.1. Assoun e o húmus originário

Paul-Laurent Assoun (1983) procura enraizar a obra de Freud no que ele denomina seu húmus originário, nativo à sua produção. O que é esse húmus? São as práticas científicas regulamentadas no século XIX. Assoun não toma o extenso período do Freud neurologista (vinte e dois anos!) como tendo apenas valor histórico, sem importantes implicações posteriores sobre o desenvolvimento da teoria psicanalítica; pelo contrário, para o autor, essas práticas iniciais funcionam ao modo de um prisma por meio do qual aparece refratado, de maneira inédita, o objeto freudiano por excelência, ou seja, o inconsciente.

Assoun propõe que essas práticas científicas determinarão a linguagem por intermédio da qual Freud descreverá os processos inconscientes e os modelos do funcionamento psíquico. Na análise de Assoun, é tomado como um caso exemplar o treino de Freud junto ao grande fisiologista Ernst Brucke, com quem Freud trabalhou por seis anos, observando ao microscópio variados órgãos de determinados animais. Dessa prática, Assoun deduzirá uma das ideias mais interessantes de seu estudo - a ideia de que Freud precisa como que estender diante de si, como nas lâminas do microscópio, como se fosse um órgão, sugere Assoun, o modelo de aparelho psíquico como concebido na primeira tópica, em "A interpretação de sonhos" (Freud, 1900/1972a, p. 572).

Assim fica mais clara a ideia de que esse tipo de treino, experienciado por Freud, seja um prisma: assim como em um objeto prismático, no qual o feixe de luz que por ele passa sofre um efeito de refração, que muda a direção e a composição da luz, para o Freud observador das lâminas no microscópio, o que se exercita é o visual através de técnicas de coloração. O que conta, sobretudo, é a capacidade de criar técnicas especiais que permitam mais precisão para ver o órgão em tela. Freud inclusive conseguiu criar uma importante técnica de coloração com ouro, na medida em que é da melhor visibilidade do órgão que depende a dedução de seu funcionamento. É por isso que, na clássica formulação do aparelho psíquico de 1900, Freud o concebe como se fosse um objeto extenso, quase material, poderia se dizer, já que ele se utiliza de uma imagem ótica, concebendo as estruturas do espírito como as lentes de um aparelho ótico. O psiquismo é assim apresentado como um espaço geográfico; a partir dessa imagem espacial, procura-se ver e extrair sua dinâmica de funcionamento. Qualquer semelhança com o treino adquirido nos anos com Brucke não é mera coincidência. O próprio Freud confessa ao leitor que está fazendo a "ficção de um aparelho psíquico" (Freud, 1900/1972a, p. 572). Pode-se observar uma relação importante entre ciência e ficção, através do aludido prisma cientificista neste caso.

É a fenomenotécnica de Bachelard, em que a técnica de investigação escolhida cria o objeto de estudo. Ao mesmo tempo, no caso de Freud, a técnica científica do XIX não determina completamente o objeto, pois ele como que "escapa". É justamente aí que se observa o curioso fenômeno de refração. Para o leitor atento, no mesmo parágrafo em que Freud propõe o aparelho dividido em regiões espaciais diferentes, observa-se um deslizamento, quase imperceptível, de uma concepção espacial para uma concepção temporal. O inédito do objeto freudiano começa por ser extensão e, numa súbita virada, transforma-se em duração, já que, em realidade, Freud avisa ao leitor que, melhor dizendo, está tratando, sobretudo, de temporalidades diferentes. São essas temporalidades diferentes que dariam "substância" ao psiquismo e que efetivamente não se espacializam enquanto extensão, mas sim, enquanto a ficção de uma extensão. É numa dessas passagens que vemos saltar o inédito dos processos inconscientes, ainda que partindo duma linguagem eivada das necessidades das naturwissenschaften, ou seja, das ciências da natureza - que têm a física por modelo -, entre as quais Freud vai insistir em colocar a psicanálise, do começo ao fim de sua obra. Da mesma maneira, a metapsicologia dividida em três dimensões - a tópica, a econômica e a dinâmica - é o efeito dessa refração das exigências científicas do século XIX. Portanto, em razão disso, nosso objeto precisa ter:

1. Uma tópica - para dar conta de que nosso objeto possa ser pensado enquanto extensão (ainda que imaginária, o aspecto que vínhamos abordando);

2. Uma dinâmica - ou seja, forças de propulsão antagônicas responsáveis pela combustão do psíquico;

3. Uma economia - o que conferiria uma possibilidade de mensuração (ainda que imaginária), já que se trata de intensidades energéticas que diminuem ou aumentam, conforme o escoamento da excitação psíquica, ou na ausência deste.

É assim que o livro de Assoun destrincha a arqueologia dos alicerces da produção freudiana, cujas referências fundamentais - ou húmus originário - se encontram em Helmholtz, Brucke, Exner, Mach, Haeckel, Darwin etc., e daí se deriva sua linguagem, ao mesmo tempo esclarecendo de onde vêm certas exigências de forma do pensamento freudiano e algumas estranhezas na linguagem por meio da qual aborda/constrói seu objeto, que nem sempre são bem compreendidas se não entendemos seu contexto originário.

3.2. Monzani, a espiral e o pêndulo, a fantasia científica

A partir de um ato de ler profundo e minucioso, Monzani (1989) emerge, de seu embate com a obra, com a imagem preciosa do pêndulo e da espiral, na qual ele procura entender o evolver do pensamento de Freud em torno de oscilações. Ao longo dos anos de estudo, percebi, assim como Monzani, que, em meio às diversas mudanças conceituais que a obra freudiana sofre, mantém-se uma coerência e uma lógica internas, fazendo com que os movimentos de ressignificação constituam um percurso em espiral, sem rupturas definitivas. Em vários momentos da obra de Freud, determinada formulação reaparece, em uma das voltas da espiral, num outro nível, ou seja, em outro patamar.

Em relação, por exemplo, à formação do sintoma, há uma oscilação do peso, ora maior, ora menor, da determinação do acontecimento versus a da fantasia. Nessa oscilação pendular, observamos mudanças e permanências. Podemos observar a permanência, ainda que modificada, da ideia do adulto sedutor, desde a antiga teoria da sedução de 1897, quando Freud acreditava que a histérica padecia do efeito de um abuso sexual realmente ocorrido por parte do pai. No assim chamado "abandono da teoria da sedução", Freud inverte os termos: é a criança que deseja, em sua fantasia, ser seduzida, sem que realmente tenha sido. Portanto, em torno do par "peso do acontecimento da sedução real do pai versus fantasia edipiana" é que vai gravitar - nesse movimento a um só tempo espiralado e pendular -, em outros patamares, a ideia do adulto sedutor, retomada na figura da mãe na relação mãe-bebê. Freud, em "Três ensaios para uma teoria sexual" (1905/1972b), propõe a mãe como efetivamente sedutriz, ou seja, como aquela que é responsável pela introdução do bebê - e por consequência de todo ser humano - no amor sensual.

Freud jamais abandonou uma só de suas ideias. Ou conservou-as ou superou-as. ...Nem sempre se trata de uma superação do tipo hegeliano. ...o pensamento de Freud é muito pouco dialético. Essa superação em Freud parece estar muito mais ligada a um movimento onde essas oscilações acabam por se compor numa unidade, sem que, no entanto, haja necessariamente uma síntese no sentido hegeliano. Parece estar muito mais ligado a uma progressiva redefinição, retificação ou explicitação dos conceitos. (Monzani, 1989, p. 302)

A ideia de demonstrar ao leitor como se movimenta um pensamento é muito proveitosa para aprimorar o embate com a obra freudiana, em suas águas mais revoltas, em suas complexidades e aparentes contradições.

Nessa direção, gostaria de mencionar outro exemplo que considero muito importante: podemos perceber, desde o início da obra freudiana, a presença daquela que é considerada uma das viradas fundamentais de seu pensamento: a noção da pulsão de morte, muito embora, no início, não nomeada enquanto tal. Encontramos, já nos alicerces do edifício teórico, o princípio de evacuação total da energia, viga mestra do teorizar freudiano, uma vez que motor do psiquismo. Assim, as mudanças não são tão abruptas quanto podem parecer numa visada mais superficial, pois existe um movimento de retorno de conceitos em outros patamares de elaboração. Esse é o caso da evacuação total da energia, de 1895, e da pulsão de morte, de 1919, naturalmente, motivadas pelo pulsar da clínica em seu processo de desenvolvimento. Depois de 25 anos de clínica psicanalítica, o analista Freud já podia repensar os fenômenos da repetição sob a chave mortífera da reação terapêutica negativa, que já se anunciara anteriormente, no capítulo VII de A interpretação de sonhos em torno das questões: Mas que desejo se realiza, e que prazer se obtém, na repetição do sonho traumático? Não será essa uma exceção ao princípio básico de busca do prazer do funcionamento psíquico?

Creio ser propício também comentar outra contribuição fundamental de Monzani, no que diz respeito às influências biologizantes de Freud e à sua aspiração de realizar a psicanálise enquanto uma naturwissenschaft. O modo de encarar essa mesma questão, ou seja, o peso do discurso científico dos Oitocentos, é diferente no entender de Monzani, em relação à posição de Assoun. Ao passo que este considera as práticas científicas do século XIX como o já mencionado prisma, húmus originário, de onde brota o inédito de nosso objeto, como efeito de refração, Monzani introduz uma dimensão diferente, ou seja, a de uma metabolização: um agenciamento muito particular que Freud faz dessas influências. Monzani toma como caso exemplar dessa metabolização o "manuscrito perdido" de 1914, que faria parte do conjunto de textos metapsicológicos elaborados por Freud, mas que só foi encontrado postumamente. Esse texto, "Neuroses de transferência: uma síntese" (1914/1987) é destacado nesta análise pelo tanto que parece conter de aberrante: Freud faz aí um largo voo especulativo, de alto risco, assimilando as diversas modalidades das neuroses a vivências concretas específicas da espécie humana nos diferentes períodos geológicos que dariam, como resultante, defesas absolutamente inatuais, por referência ao presente, transmitidas filogeneticamente. É do mesmo modo que comparece, em "Totem e tabu" (1913/1969b), o famoso mito do parricídio primevo, fruto da necessidade que experimenta Freud de dar conta da universalidade das fantasias edipianas ancorando-as em um acontecimento, ainda que pré-histórico. Mais uma vez, como na teoria da sedução, houve um momento mítico em que a fantasia teve sua ancoragem no acontecimento, que é adquirido em uma geração e transmitido às próximas. Note-se como Freud, pela exigência de conferir universalidade à sua experiência clínica, vai insistir num lamarckismo já ultrapassado em sua época.

Longe de concordar com a maioria das leituras de Freud que consideram aberrantes essas ideias, Monzani defende uma concepção específica do método de Freud de fazer ciência, um modo todo peculiar de "fantasiar cientificamente", em que Freud metaboliza o material científico disponível em sua época lançando mão da imaginação onde uma racionalidade positivista falta. Permanece necessária para Freud a rocha viva do acontecimento, que mantenha a coerência com sua ideia de uma racionalidade científica, daí a tentativa de associar os fenômenos psíquicos a períodos históricos, além do recurso à mitologia universal. É um modo de produzir ciência ou conhecimento, uma vez que esse método imaginativo se articula a uma práxis que tem por objetivo a diminuição do sofrimento psíquico do paciente, estando associada a uma racionalidade atinente aos processos inconscientes do paciente em questão. Portanto, avisa Monzani: não se trata de um uso imaginativo arbitrário e irracional, nem tampouco místico. Por isso é que enfatiza: é um fantasiar cientificamente, com ordenamento e método, dirigido pelas necessidades da clínica.

 

Garcia-Roza, ficções do aparelho psíquico, psicanálise e linguagem

Ao nos aproximarmos da esfera do fantasiar cientificamente, tocamos no peso da linguagem no teorizar da clínica freudiana. Assim ganha importância outro comentador, Luiz Alfredo Garcia-Roza (1991, 1993 e 1995), pelo alinhamento conferido ao discurso contemporâneo sobre a linguagem, na esteira da investigação lacaniana, do retorno a Freud, efetuado por Jacques Lacan. Este realiza uma elaboração mais nítida do peso da linguagem incidindo sobre nosso objeto, o inconsciente. Nos fins da década de 50, Lacan faz um importante trabalho de resgate da leitura de Freud. Isso se mostrou necessário devido ao fato de Freud passar a ser visto como um mero autor histórico, sem eficácia teóricoclínica - o que se deu após os grandes desenvolvimentos da escola inglesa que, se por um lado joga uma luz crucial no período precoce da relação mãe-bebê, por outro lado, como consequência do peso da mente primitiva nos alicerces do psíquico, acabou por minimizar a importância de Freud. O retorno a Freud se deu beneficiando-se do debate intelectual das ciências humanas na França da primeira metade do séc. XX: a linguística de Saussure, o estruturalismo de Lévy-Strauss, a dialética hegeliana - transmitida por Kojève em solo francês - e as contribuições dos pensadores existencialistas e dos fenomenólogos, sobretudo Heidegger e Merleau-Ponty.

É nessa toada que Garcia-Roza (1991, 1993 e 1995) fará um mergulho crucial na metapsicologia freudiana, que se iniciará de modo particularmente original. Será tomado em consideração, como ponto de partida da teoria psicanalítica, um texto arcaico de Freud que, embora trate abertamente de neurologia, produz, no entanto, uma concepção revolucionária para sua época do funcionamento da linguagem. Na esteira dos autores franceses, partindo do texto sobre os distúrbios de linguagem "Contribuition à la conception des aphasies", de 1891, é que Garcia-Roza vai observar o processo de germinação das concepções subsequentes dos modelos de funcionamento psíquico, por parte de Freud.

O aparelho psíquico, que será "oficialmente" postulado em 1900, aparece como resultado de um longo trabalho anterior de tateamento teórico. Sob essa perspectiva, Freud começaria, em realidade, a teorizar sobre o funcionamento psíquico, ao abrir mão da exigência médica essencial de localizar anatomicamente os distúrbios de linguagem. Mesmo como neurologista, em 1891, o distúrbio de linguagem será visto por Freud como uma disfunção não localizável na anatomia do cérebro, uma vez que envolveria uma trama complexa do funcionamento cerebral. O ponto crucial nessa visada está no fato de Freud postular que a representação psíquica da palavra não se dá imediatamente em relação ao referente externo, mas sim, na relação com outro aparelho de linguagem, que nomeia para a criança os objetos do mundo. Se o objeto fosse o referente, e não a palavra, não existiriam as diferentes línguas, que possuem palavras diversas para nomear os objetos do mundo, assim como os interiores. Já aparece aí uma sofisticação na apreensão de Freud do fenômeno linguístico.

Partindo desse aparelho de linguagem, postulado como um gérmen do aparato psíquico, Garcia-Roza fará a articulação com o cume da ambição cientificista de Freud, em 1895, de moldar o aparelho psíquico a um funcionamento neurológico, espécie de quimera positivista, em que Freud, no "Projeto para uma psicologia científica" (1885/1969), vai construir o modelo do funcionamento psíquico suposto como neuronal, no qual os processos psíquicos sejam traduzíveis em quantidade e sua unidade material seja o neurônio. Essa empreitada será posteriormente abortada por Freud e considerada não satisfatória, já que ele percebe que está se movendo em outra esfera: o escorregadiço terreno da fantasia e da linguagem. No entanto, esse modelo, embora abortado, será profundamente esclarecedor do que virá adiante, ponto assinalado pelos mais diversos comentadores. Contudo, parece-me que a originalidade de Garcia-Roza está em fazer a articulação entre o modelo do "Projeto..." e o clássico modelo da primeira tópica, a partir de um elo crucial, que ajuda a entender a transformação da linguagem neuronal do projeto na linguagem psíquica de "A interpretação de sonhos".

Esse elo crucial é o modelo de funcionamento tradutivo, concebido por Freud na carta 52 (1896/1977), endereçada a Fliess, de 6 de dezembro de 1896. Garcia-Roza denomina-o modelo tradutivo em razão de Freud propô-lo, na referida carta, como um modelo de funcionamento psíquico baseado em transcrições de decisivas experiências mnemônicas, armazenadas sob a forma de traços. Esses traços nada têm a ver com lembranças conscientes. São decisivas por representarem o resto deixado pela experiência precoce, sob forma de pegadas mnêmicas, que se acumulam e se combinam no psiquismo, por leis de associação, constituindo trilhas facilitadas em diferentes direções, conforme o fenômeno de ressignificação psíquica e em registros temporais diferentes, em representações imagéticas que serão traduzidas em palavras quando se ligam ao pré-consciente/consciente. Portanto, é mediante esse elo entre linguagens tão diferentes - a neuronal e a psíquica - que se confere maior inteligibilidade ao clássico modelo da primeira tópica, ou seja, o modelo de funcionamento de sistemas diferentes: o inconsciente e o pré-consciente/consciente.

É nesse movimento de ver, em ação, o método de fantasiar cientificamente (onde Freud tateia vários modelos), que Garcia-Roza poderá afirmar que não temos apenas os "oficialmente" anunciados: os modelos da primeira e da segunda tópica (este dividindo o funcionamento psíquico em id, eu e super-eu), mas, pelo menos, uns cinco ou seis:

1. o aparelho de linguagem do "Sobre as afasias" de 1891 (Freud citado por Garcia-Roza, 1991)

2. o neuronal do "Projeto para uma psicologia científica" (Freud, 1985/1969);

3. o tradutivo da "carta 52" (Freud, 1896/1977);

4. o da primeira tópica (Freud, 1900/1972a);

5. o da segunda tópica (Freud, 1923/1976b);

6. o do "bloco mágico" (Freud, 1925/1976a);

7. para nem mencionarmos o modo de funcionamento diverso dos anteriores, que ressalta de um conceito tão fundamental: o narcisismo, crucial na teorização contemporânea (Freud, 1914/1974).

Como se vê, esta leitura impede qualquer risco de reificação dos conceitos, que são dinâmicos, apresentam mudanças e permanências importantes, como já viemos assinalando mais atrás.

 

4. Fechando o círculo: a literatura e seu papel de análogo

Foi articulando essas ideias que pude reunir e cultivar as ferramentas mais úteis que pude encontrar, construindo a visão de conjunto da trajetória de Freud, que se tornou cada vez mais importante em minha prática. Nesse sentido, teria ainda a comentar o papel das demais ferramentas - a boa tradução, os vocabulários, as notas de Strachey, as boas biografias - que não deixam também de ser leituras muito especiais. Devido ao fato de esses tópicos serem mais facilmente abordáveis pelo leitor, não julguei premente desenvolvê-los aqui, pois não dependem tanto da articulação peculiar que, por assim dizer, promovo entre os comentadores que privilegiei neste artigo. Seja como for, desejo realçar que são ferramentas absolutamente indispensáveis ao mergulho na obra freudiana, no qual a boa tradução tem um papel crucial.

Fico feliz em poder compartilhar essa experiência de leitura de toda uma vida para mim, e espero que possa contribuir de algum modo para as vossas. Voltemos, pois, ao poeta e à poesia, melhor dizendo, à poiesis contida no ato analítico, mencionada no início deste artigo. Neste agenciamento da leitura de Freud em torno da ideia de ficção, é mister destacar a influência silenciosa, ou menos evidente, de um autor, Fabio Herrmann (2001, 2002), que, por trás dos acima mencionados, é quem fornece a costura das leituras realizadas sob chave ficcional, na medida em que a obra de Herrmann parte desse alicerce que ele considera fundamental: o método de fantasiar cientificamente, detectado por Monzani. O fulcro e a originalidade do trabalho de Fabio Herrmann estão em colocar justamente a interpretação, entendida aqui de um modo que descreverei mais adiante, como a chave desse método. Interpretar remete ao gosto por essa liberdade movediça da palavra, tão caro a mim, conforme relatei no início deste artigo, em minha experiência ginasiana. Hoje vejo que, ao analisar a ficção, caímos imediatamente no terreno da interpretação. Mas, em se tratando de psicanálise, não vale qualquer exercício interpretativo, pois nos utilizamos de rigor, método e parcimônia em sua utilização. Esse procedimento também é observado pelos estudos literários, contudo utilizando-se de metodologia diferente: a da teoria e crítica literárias.

Mas o que é interpretar em linguagem herrminianna? É o ato que o autor denomina ruptura de campo. Romper um campo significa interpretar aquilo que sustenta inconscientemente o diálogo entretecido num determinado campo comunicacional, ou seja, apontar para a revelação desse implícito, que é considerado indeterminado, pois se revela diferente a cada vez que é patenteado. Melhor dizendo, estamos sempre a apontar para as brechas do já referido reino ambíguo e movediço da palavra, tomando como caso exemplar o diálogo analítico, mas também nosso diálogo interior com as obras, com nosso nado particular.

Voltando ao poeta Walt Whitman, observamos a indeterminação que sustenta os encontros. O ato de interpretar depende do "lançar-se aos braços um do outro" e entregar-se a esse exercício do convívio com o que está ainda para tomar forma, o terceiro sujeito apontado por Ogden (1996). Ou, sob chave literária, formando a terceira margem do rio, tal como faz o pai do personagem do conto homônimo de Guimarães Rosa, isolado em uma estranha canoa, no meio do fluir do rio, que está em lugar nenhum, mas também em toda parte, fazendo-nos silenciosamente companhia, criando um lugar do indeterminado.

A maior realização da ficção encontra-se justamente no processo de, do transfundo amorfo de nossas emoções, fazer emergir uma interpretação daquilo que em dado momento gesta-se em nós. Exatamente, de modo análogo, processa-se o trabalho analítico. Portanto, como sugere Herrmann, a literatura é nosso reino do análogo, o reino auxiliar, o espaço necessário para sustentar determinada produção de saber, para além dela própria. Claramente, nessa perspectiva, nosso reino análogo não é nem a fisiologia, como desejava ardentemente Freud, e menos ainda uma filosofia de linha cartesiana (já que determinadas tendências contemporâneas em filosofia também se aproximam da literatura). A par da clínica e da teoria, é a literatura a melhor posição em que se pode pensar a psicanálise, constituindo seu eixo de maior rendimento. Ilustremos, para terminar, com a tão apropriada quanto brilhante conclusão de Monzani (1991) sobre Freud e seu método de fantasiar cientificamente:

E, se damos crédito à obra de Freud e ao discurso psicanalítico, é preciso voltar a pensar mais seriamente na comparação aristotélica entre a poesia e a história, já que é a primeira, como disse Diderot, retomando Aristóteles, que atinge a verdade da natureza humana:

'Oh Richardson! Eu ousaria dizer que a história a mais verdadeira é plena de mentiras, e que seu romance é pleno de verdades. A história pinta alguns indivíduos; você pinta a espécie humana: a história atribui a alguns indivíduos aquilo que eles nem disseram e nem fizeram; tudo o que você atribui ao homem, ele o disse e fez: a história apenas abraça uma porção da duração, apenas um ponto da superfície do globo; você abraçou todos os lugares e todos os tempos. O coração humano, que foi, é e será sempre o mesmo, é o modelo através do qual você copia. Se se aplicasse ao melhor historiador uma crítica severa, haveria algum que a sustentasse como você? Sob este ponto vista, eu ousaria dizer que frequentemente a história é um mau romance, e que o romance como você o fez, é uma boa história.'4 (p. 104)

 

Referências

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Recebido em 4/11/2012
Aceito em: 21/11/2012

 

 

Cecilia Maria de Brito Orsini. Rua Artur de Azevedo, 1857, cj. 74 05404-015 São Paulo, SP. Tel: 11 3083-0796. ceciliaorsini56@gmail.com
1 Este artigo é expansão de uma aula ministrada aos docentes de Freud, no Instituto de Psicanálise Durval Marcondes, a pedido do diretor, Dr. João França, que me convidou a discorrer sobre meu modo de transmissão de Freud, em setembro de 2012.
2 Esta tradução dos versos de abertura da obra-prima de Whitman Folhas da relva, de 1860, encontra-se no livro de Alberto Manguel Uma história da leitura, publicado pela Companhia das Letras em 2002, na página 192. Os versos foram extraídos da edição feita por Francis Murphy em 1975 para a Penguin Classics do The complete poems de Walt Whitman.
3 Para os colegas que desejarem ler a respeito da utilização das demais ferramentas, igualmente indispensáveis - as boas traduções, os vocabulários, as notas do editor inglês, as boas biografias de Freud -, remeto-os à leitura do meu artigo "Breve comentário para o estudo de Freud", contido no site dos meus grupos de estudo: www.estudosdefreud.com.br.
4 A tradução da citação de Diderot, em francês no livro de Monzani, foi feita livremente pela autora do artigo.