SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.45 número83Leitura de Freud: um estilo de transmissãoAprender com Bion: a maiêutica bioniana índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.45 no.83 São Paulo dez. 2012

 

TRANSMISSÃO DA PSICANÁLISE

 

O ensino da teoria psicanalítica: falar sobre o inconsciente com o discurso lógico do consciente

 

Teaching of the psychoanalysis theory: the unconscious being accessed through the conscious logical discourse

 

Enseñanza de la teoría psicoanalítica: hablar sobre el inconsciente con el discurso lógico del consciente

 

 

Cora Sophia de Toledo Piza Schroeder Chiapello

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo sbpsp e membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto sbprp

 

 


RESUMO

O presente trabalho busca refletir sobre a singularidade da transmissão da metapsicologia freudiana. As dificuldades que caracterizam o saber a ser transmitido referem-se à especificidade das descobertas psicanalíticas: seu caráter de ser do registro do agir, ou seja, de uma práxis e não unicamente do saber.
Entre as dificuldades decorrentes desta característica, temos o uso de uma linguagem consciente usada para acessar conteúdos inconscientes, além da personalidade do analista estar essencialmente em jogo. Isto exige que ele adquira condições internas para desvelar seus desejos inconscientes, assim como o desenvolvimento de capacidade de encontro com sua singularidade tanto pessoal quanto discursiva.

Palavras-chave: linguagem consciente, linguagem inconsciente, narcisismo, singularidade


ABSTRACT

This work intends to reflect on the singularity of the Freudian metapsychology transmission. Specific concerns regarding the knowledge to be transmitted are related to specific psychoanalytical findings: its nature concerning not only knowledge but also the psychoanalytical act.
Among its difficulties there is the common language being capable of expressing contents from the unconscious, as well as the psychoanalyst personality is likely to be essentially compromising, demanding from the psychoanalyst the acquisition of resources to unmask his personal desires. Moreover, he must be willing to meet his personal and discursive uniqueness.

Keywords: conscious language, unconscious language, narcissism, uniqueness


RESUMEN

El presente trabajo procura reflexionar sobre la singularidad de la transmisión de la metapsicología freudiana. Las dificultades que caracterizan el saber a ser transmitido dicen respecto de la especificidad de las descubiertas psicoanalíticas: su carácter de pertenecer al registro del obrar, o sea, una praxis y no apenas del saber.
Entre las dificultades que resultan de esta característica, tenemos el uso de un lenguaje consciente utilizado para tener acceso a contenidos inconscientes, más allá de la personalidad del analista estar esencialmente en juego. Esto exige por parte de este último, la adquisición de condiciones internas para desvelar sus deseos inconscientes, así como el desarrollo de capacidad para encontrarse con su singularidad tanto personal cuanto discursiva.

Palabras clave: lenguaje consciente, lenguaje inconsciente, narcisismo, singularidad


 

 

Mestre não é quem sempre ensina,
mas quem de repente aprende.
(Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas)

Durante memorável apresentação de sua palestra "Corpo Psicanalítico: Fantasias e Representações", Kubo deixou duas ideias de grande valor para reflexão. A primeira é a de que no êxito ou no fracasso de uma relação entre um par ou grupo, a responsabilidade jamais é de um só. E, já no final da palestra, Kubo mencionou sentir-se como tendo realizado com a plateia uma boa relação sexual e que ele esperava ter provocado o mesmo em quem ali estava. Mencionando a relação sexual com a plateia, Kubo abre espaço para a segunda reflexão, que é a de toda relação humana envolver um componente afetivo-sexual. Deduzimos, portanto, da fala de Kubo, a necessidade de professor e alunos estarem em boa sintonia para o ensino da teoria psicanalítica ser produtivo, ao mesmo tempo em que nos remete à presença universal da sexualidade nas relações humanas.

Tendo como ponto de partida as reflexões de Kubo, tentaremos desenvolver:

1. a responsabilidade das partes, presente qualquer que seja a relação humana estabelecida, sobretudo a do analista/professor com seus ouvintes, o que nos leva diretamente à formação da personalidade do analista/professor.

2. os aspectos transferenciais que compõem as partes.

3. discutir o grande desafio de expressar a descoberta psicanalítica do inconsciente dentro da lógica e dos meios de comunicação do mundo consciente. A partir daí, traremos para nossa reflexão a necessidade do desenvolvimento de linguagem poética, i.e. metáforas, analogias, discurso poético, poesia, prosa poética, sobretudo nos grupos de supervisão, para que aquilo que deve ser transmitido atinja seu objetivo de explorar o mundo inconsciente.

A partir do exposto no primeiro item, iniciaremos com a reflexão de que a relação de respeito, motivação e acolhimento que o analista/professor estabelece com seus "aprendizes de feiticeiros" pode servir de esteio para proteção diante do espanto frente ao elemento transgressor ao status quo, existente no seio da metapsicologia da psicanálise. Para tanto, entrar na verdade do mundo inconsciente sem que o ensino-aprendizagem possa ser usado como uma substituição perversa da interpretação, fato esse que só cabe ao setting analítico e, ao mesmo tempo, sem destituir o ensino da psicanálise das descobertas dos reais motivadores do agir humano, exige grande preparação do analista/professor. Falaremos mais adiante deste item.

Séculos de repressão ainda nos afastam sistematicamente de assimilar o quanto a sexualidade está presente não somente na relação analítica, mas também na relação daquele que ensina psicanálise com os que o escutam. Pois, segundo Bion (1967), embora o desenvolvimento do pensar dependa da capacidade de tolerar frustração, ele estará sempre submetido ao movimento de vinculação amorosa com o outro.

Entretanto, é fundamental o respeito ao limite que separa o ensinar do analisar, que torna a relação de aprendizagem saudável e construtiva, para que não seja subvertida inadvertidamente e com resultados catastróficos por uma falha de um ou dos dois elementos do par.

Ao mesmo tempo, se o analista que leciona não trouxer à tona sua espontaneidade e sua experiência vivida em análise pessoal, ele poderá tornar-se um simples repetidor de textos, sejam freudianos, lacanianos ou bionianos, o que não acrescentaria aos seus alunos nada que outro estudioso da disciplina não pudesse passar. O que caracteriza o analista que realmente transmite conhecimento psicanalítico é o fato de que ele já passou pelo processo analítico pessoal e fez um bom uso de sua análise - toda formulação teórica que ele tece, e que precisa ser rigorosamente tecida, é a transformação de uma experiência vivida em conceitualização teórica para poder ser transmitida. Estamos, portanto, diante de um paradoxo: é necessário transformar algo que foi vivido em metapsicologia, ou não se pode falar sobre a experiência. Embora a experiência psicanalítica seja incomunicável, foi possível a Freud sua transformação em uma metapsicologia que, construindo formulações coerentes e lógicas, nos aparelhou para a transmissão deste mundo subterrâneo e nebuloso das pulsões e do desejo.

 

A linguagem poética na singularidade do analista

O analista em função docente fala da metapsicologia do mundo inconsciente. Sabemos, entretanto, que a linguagem do mundo consciente não é a mesma do mundo inconsciente.

Em sua teoria estrutural, Freud (1923/1969a) divide a mente em três polos distintos, possuidores de diferentes modos de ação e de diferentes estruturas linguísticas: id, ego e superego. O ego estreita-se entre o id e o superego, mas ao mesmo tempo faz incursões em ambos: mergulha no id inconsciente que, por sua vez, tenta a todo custo penetrar no mundo consciente. O superego também é inconsciente, mas atua de maneira diversa à do id; ele continua sendo por toda obra de Freud o herdeiro do complexo de Édipo e terá que ser abrandado em sua autoridade excessiva por um ego fortalecido através de análise. O superego expressa a necessidade de submissão do indivíduo às normas culturais do meio em que vive, todavia expressando também uma culpa jamais redimida. Freud (1913/1969c) declara a escravidão eterna da humanidade, que a partir de então nunca mais teve um minuto de descanso, diante da culpa edípica reprimida: o assassinato do pai da horda primitiva, com os consequentes sentimentos ambivalentes implícitos no complexo-pai, que constituirão o dia-a-dia dos sentimentos humanos. Esta culpa edípica reprimida pode ser inibidora do processo da criatividade poética também do analista que se propõe à docência da psicanálise.

Logo, ao buscar definir quem ensina psicanálise, vemos que uma das razões que a tornam uma função "impossível" advém do fato de que lida com dois parâmetros de linguagem distintos e opostos. Aquele em posição de docência psicanalítica usa o discurso em linguagem corrente do ego, que atua sob processos secundários, a respeito de processos primários ocorrendo no inconsciente, onde se pressupõe estar o verdadeiro "eu desejante" ou aquilo que nos define. Isto significa que, dentro dos parâmetros do funcionamento secundário próprios do ego, estamos submetidos ao conceito de espaço e temporalidade, da realidade dos fatos, da impossibilidade da existência simultânea de contrários. Para o ego, a compreensão de qualquer enunciação só é possível dentro da representação de palavras que tenham sentido e que se encadeiem dentro da estrutura de uma linguagem lógica. Já a conceituação de Freud sobre os processos primários vai evoluindo para a noção de uma energia libidinal livre, com a inscrição de significações mais tarde conceituadas como representações de coisa, onde o certo e o incerto coexistem, bem como a afirmação e a negação. Na lógica do inconsciente não há noção de tempo, espaço, contradições, relações causa-efeito etc. (Freud, 1915/1969b).

O ensino da psicanálise tem como fio condutor a exposição dos processos primários através da expressão de linguagem lógica, mas que possa abranger com amplitude a ilógica do inconsciente. Portanto, nosso desafio enquanto docentes é o de estabelecer uma conexão lógica entre o mundo teórico que explica conceitos e o mundo nebuloso das pulsões, geralmente perceptíveis somente através das fantasias, dos pictogramas, dos atos falhos, que irrompem como um ruído indesejável no discurso lógico. No ato de analisar, estes ruídos são nosso principal instrumento de percepção dos processos inconscientes do analisando, porém, ao ensinar, tentamos descrever para o aluno o mundo mental e a importância do inconsciente neste mundo, mas não entramos no âmbito do inconsciente; assim, a linguagem poética, estando muito mais de acordo com a ilógica do inconsciente, torna-se facilitadora da descrição de seu funcionamento.

Nesta perspectiva, não há conhecimento seguro, certo, irrefutável como quando diante de um teorema de álgebra, por exemplo. O analista consciente de seus limites não deveria sentir-se dono do saber, ou envaidecer-se por suas conquistas teóricas através de repetidas referências bibliográficas, como refúgio seguro contra suas incertezas. Sua personalidade estará fatalmente em jogo na sua comunicação e ele será sempre responsável por suas escolhas.

Acreditamos que, no trecho abaixo, Piera Aulagnier consegue expressar com maestria este duplo aspecto da transmissão:

O analista, herdeiro no campo da teoria de um bem comum, que tem para partilhar com o conjunto de seus pares, reivindicará em contrapartida sua "singularidade" (ou seja, aquilo que lhe permite ser, em seu nome próprio, transmissão do texto) no campo onde se vê confrontado com sua solidão: o ato analítico. É nesse campo que poderá experimentar os efeitos da singularidade de sua interpretação, reconhecer-lhe a paternidade, fazer dela "sua" obra. É no registro da ação (e a análise faz bem parte disso) que o analista se assume como o intérprete: intérprete dos textos de Freud e intérprete do que o analisando demanda a esses textos. (Aulagnier, 1990, p. 78)

Esta singularidade exige que o analista em posição docente busque construir um repertório linguístico pessoal para ser utilizado como instrumento idiossincrático do seu ser analista, pois a transmissão da psicanálise não se faz somente através de linguagem científica.

Piera Aulagnier lembra, ainda, que o que pode e deve ser ensinado, aquilo que pode ser transmitido de nossa própria experiência é, antes de qualquer coisa, aquilo que a teoria freudiana traz como enriquecimento na compreensão de outros ramos do saber (estamos vendo cada vez mais a incursão dos conhecimentos psicanalíticos para uma compreensão nova e enriquecedora das áreas mais criativas do desenvolvimento cultural humano). Porém, não podemos nos esquecer do quanto nós, analistas, dependemos da expressão artística contida nos fenômenos culturais como ferramentas indispensáveis à nossa comunicação.

A singularidade do analista adquirida através de análise pessoal é o conhecimento de seu verdadeiro eu e de sua apropriação dele. Sem tal singularidade poderá haver uma paralisação do processo transgressivo-inventivo do saber psicanalítico, pois esta expansão do saber é um processo espiral ascendente, para o qual cada um de nós deve contribuir, centrado sempre no que é essencial: a descoberta freudiana do inconsciente.

Este é o aspecto central da descoberta freudiana: a de que o ego que nos define não corresponde ao ego que presumimos ser, e que nada está mais distante do que somos do que aquilo que pensamos ser, e é isto o que nos aliena e pode nos tornar miseráveis. O problema é que nós não nos enxergamos a não ser a partir do Outro. Somente o Outro, em posição de nos analisar, enxerga como óbvio aquilo para o que estamos cegos. Daí a desafiadora definição de Bion (1974) de que a análise é a descoberta do óbvio.

Esta é uma das razões da perícia exigida para falar a uma plateia que nos escuta dentro dos processos secundários de que o seu eu consciente é vítima dos engodos do inconsciente. Como falar de desejos pecaminosos, parricidas, incestuosos a uma plateia que sobrevive dentro do recalcamento? Não seria a linguagem poética, conotativa, a mais apropriada para não despertar a fúria dos que se percebem expostos naquilo que mais escondem?

Resta saber quais são os limites nos quais a comunicação da psicanálise é transmissível. Ou colocado de outra maneira, o que se pode ensinar da psicanálise fora da experiência analítica em sentido estrito. Questão desafiadora, sem sombra de dúvida.

O que não pode ser ensinado, e esse é o paradoxo de nosso saber, é aquilo que é seu próprio alvo, sua essência: ou seja, 'analisar' ou 'se analisar'. Esse tipo de saber é tributário, e permanecerá sendo porquanto o analista se queira fiel a Freud, dessa experiência que é a análise pessoal. (Aulagnier, 1990, p. 56)

O ensino da psicanálise, mesmo atenuado por uma linguagem adequada, será sempre angustiante, fato este que não pode ser subestimado.

 

O desenvolvimento da personalidade do analista

Entre as múltiplas misérias que nos constituem, a arrogância talvez seja a mais tenaz e destrutiva. Basta um pequeno êxito, uma pequena realização, e lá brota uma ambição sem limites, pondo toda nossa lucidez a perder. Ao falar do analista mítico durante uma mesa redonda da II Bienal de Ribeirão Preto em maio de 2011, Sapienza sugere, diante dos perigos do narcisismo de morte, uma visita diária ao Hades. Cremos que esta sugestão eloquente nos remete à necessidade de treinar a capacidade de enxergar a dor e a tragédia humanas sem fugir rapidamente do horror que elas nos causam; sugere trabalhar com tentações de negação e de defesa quando a brutalidade do mundo desafia nosso sentimento de estabilidade e permanência. Assim, ao vermos em uma revista a fotografia do pai que carrega seu filho adolescente morto em seus braços após um ataque terrorista, se somos pais ou avós, sentiremos uma dor de tal ordem que nos levará a virar a página rapidamente. Sob este ponto de vista, a visita ao Hades servirá para aprendermos com a dor que nos envolve e para propiciar um ritual de purificação; purificação dos valores de brilho, de vaidade, de ambição desmedida, para conseguirmos ter nossa mente livre para ser povoada por reais valores, por aquilo que realmente importa.

A verdade freudiana, que tanto tem ajudado larga parcela da humanidade, é extremamente exigente, pois para que o conhecimento das forças inconscientes possa exercer sua função 'desalienante', ele dependerá do uso final que faremos dos progressos obtidos com tal conhecimento. Facilmente o desejo de glória predomina sobre o desejo de permanecer com a verdade.

Embora não nos proponha diretamente fazer uma visita diária ao Hades, Aulagnier afirma:

Nossa teoria, em função mesmo de seu objeto, induz mais que qualquer outra à possibilidade de uma fuga pelo brilho teórico; estamos mais desprovidos que outros pesquisadores de uma possibilidade de experimentação, nossa profissão, contrariamente à opinião do profano, coloca a duras provas nosso narcisismo. (Aulagnier, 1990, p. 98)

Assim, vemos que é grande a complexidade na transmissão do conhecimento psicanalítico em geral. Mas o que dizer sobre o ensino da psicanálise para aqueles que almejam tornarem-se analistas?

É fato que a permanência da psicanálise e sua evolução na cultura humana dependam da existência de sociedades formadoras de novos analistas, com suas hierarquias, e com membros que tenham grande dedicação ao estudo teórico. Neste aspecto específico da transmissão do saber é mais que nunca necessário estar implícito o conhecimento da onipresença dos aspectos transferenciais nas relações humanas e, portanto, nas relações institucionais. O que fazer se tal conhecimento se dissolver quando aspectos não analisados, ou talvez não analisáveis, irromperem no seio da estrutura de uma sociedade? Aulagnier (1990) propõe duas condições protetoras na elaboração do fenômeno transferencial:

1. Que o perigo representado por este "resto", por este "inanalisável" que ameaça escapar à experiência didática seja a preocupação primeira de todo analista que se debruça sobre o problema da formação.

2. Que o analista encontre e saiba manter uma certa "modéstia". E aqui não fazemos nenhuma ironia. (Aulagnier, 1990, p. 98)

Assim, se aceitamos o perigo das transferências não analisadas ou perversas, entramos no campo do desenvolvimento de capacidade ética, onde a percepção "desalienante" realizada durante análises pessoais possam colocarnos em guarda frente a uma fragmentação que testemunha a falsidade das pretensões do analista docente. Podemos acrescentar, também, as tentações do prestígio através da função do ensino didático para que, em seu desenrolar, não se dissolva o saber sobre a psique, sendo substituído pela necessidade de idealização, seja ela de si mesmo ou de um autor.

Estas reflexões nos levam a postular que somente uma apropriação profunda do saber freudiano, realizada "no fundo do coração", poderá servir de esteio para a coragem necessária à transgressão implícita no processo analítico. A verdade deve permanecer como fim último e diretriz de nossas escolhas. A angustiante decisão de sairmos do conforto do já estruturado vai propiciar esta flexibilidade que nos permitirá captar, tanto em nós mesmos durante uma aula, como no ato por excelência do analista, que é a sessão de análise, aquilo que se introduz como barreira ao conhecimento: o desejo de glória, de ser especial, de ser o melhor, com as consequências desastrosas do aniquilamento e desrespeito àquele que nos escuta.

A coragem de sairmos do conforto do conhecido propiciará a abertura necessária para a busca constante do novo: pés fincados na tradição freudiana e asas abertas para alçar voos dentro da nossa singularidade.

Assim sendo, o grande desafio de quem pretende lecionar teoria psicanalítica nem é tanto a limitação da linguagem consciente para descrever o mundo inconsciente. O grande desafio é permanecermos lúcidos diante da contínua tentação da deturpação da verdade em favor de nossos desejos; desafios estes devidos aos constantes ataques invejosos que comprometem a integridade do nosso aparelho mental. Daí explica-se a citada necessidade de uma visita desintoxicante ao Hades, tendo como objetivo a contemplação das dores que nos rodeiam.

Finalmente, é importante reafirmar que a assimilação que fazemos dos conceitos teóricos da psicanálise deveria encontrar uma possibilidade de expressão o mais pessoal possível, através da singularidade que nos leva a desenvolver uma linguagem poética que dê conta do enigmático mundo inconsciente, como já fora mencionado anteriormente.

É perceptível como as definições e a linguagem dos autores consagrados tendem a substituir nossa linguagem pessoal. Não seria libertador e muito mais interessante que não tivéssemos que usar a linguagem matemática de Bion como uma confirmação de que estamos on the right track? Não teriam estes termos se desgastado pelo excesso de repetição? Não poderíamos dizer o mesmo a respeito de expressões como "mãe suficientemente boa", "seio bom e seio mau a serem respectivamente introjetados ou projetados"? A estereotipia e a repetição dos termos empregados podem opacificar a busca pela originalidade do saber condutor de um discurso desalienante.

Não será ainda que o uso abusivo de jargões advenha do medo de sermos nós mesmos, conscientes da nossa serpente da destrutividade sempre à espreita para transformar nossa capacidade criativa em algo a serviço da vaidade? Ou será proveniente do medo de entrar em contato com os limites existentes em nossa luta contra a alienação inscrita em nossa própria estrutura? Somente com muita coragem um analista docente conseguirá usar uma linguagem que não seja aquela consagrada e seguramente respeitada. Acreditamos que não deixa de ser um heroísmo saber que a força do desejo estará sempre ali, nos rodeando, pronta para nos instilar o veneno da arrogância e da mentira. Para sermos criativos, precisamos acreditar na força de nossa resistência e na atenção constante aos embustes de uma cilada. De alguma forma, a posição esquizo-paranoide tem fundamentos reais na percepção do quanto é vulnerável nossa vida mental.

Quanto à vocação de sermos psicanalistas, o pressuposto fundamental para tão árdua tarefa seria a presença, em nossa personalidade, de tendências subversivas, revolucionárias e transgressoras, no sentido mais construtivo que estes termos contêm e que encontraram na psicanálise o seu meio de expressão.

Ser tentado pela função psicanalítica implica certamente interesse pelos processos de conhecimento e uma surpresa, diria Aristóteles, diante das contradições da psique, o que nos prova duas coisas: que a energia pulsional pode, em sua maior parte, escapar ao recalque colocando-se a serviço da sublimação, e que, por razões ligadas à história individual do sujeito e seu meio cultural, foi no campo do saber que ela encontrou sua via real. (Aulagnier, 1990, p. 63)

Quando chegamos à condição definida acima, é fato que a verdadeira sexualidade, cerne de toda vida mental construtiva, estará liberta dos grilhões da repressão e poderá ser usada na transmissão da psicanálise a outras mentes, ávidas do prazer de conhecer, referindo-nos a menção a Kubo, anteriormente citado.

Voltamos à afirmação fundamental de Freud quanto à importância da sexualidade e de nossa submissão à busca do prazer. Esta descoberta a ser transmitida só será possível por quem alcançou condições internas para isso, através da análise pessoal e por extraordinário trabalho mental, que nos fornece audácia para explorar sem correr o risco de passar insensivelmente do desejo de conhecer ao desejo de nos fazer reconhecer, encontrando aí o gosto pelo difícil, que esteve tão presente em nossos predecessores.

O maior prazer, ainda que sempre alicerçado nas pulsões, é aquele que se obtém pela elevação do espírito. A maior sexualidade que pode ser experimentada na vida humana está em razão direta à elevação do espírito e na perfeição atingida nas técnicas de expressão artística: a linguagem literária, a música, a capacidade de articular o pensamento. Quanto mais elevado o valor do que é criado, mais sensualidade exige e transmite. Vemos, pois, que a pornografia está muito mais ligada às pulsões tanáticas, pois representa o aprisionamento no "facilismo do instintivo",1está no nível mais baixo do que nos torna humanos e constitui uma desvirtuação daquilo que realmente é libidinal - libido aqui entendida como a explosão do sexual em busca de sua transformação sublimada.

Se o pornográfico nos promove repulsa por ser a expressão da permanência em um mundo sem nenhuma sublimação, não o é menos repulsivo assistir a um analista envaidecido, precisando de admiradores e seguidores, esquecido da advertência da raposa ao corvo, na fábula de La Fontaine, "O corvo e a raposa", de que o bajulador vive às custas de quem o escuta.

Esta lição é a base de uma sólida posição de modéstia ligada a um aparato mental que, ao liberar-se do narcisismo, torna o indivíduo capaz de ser responsável por aquilo que escolhe e pelo prazer que usufrui como resultado de seu trabalho.

À medida, pois, que mantemos os pés bem fincados na percepção da realidade, com o intuito de nos mantermos no prumo e lutarmos contra o Lúcifer inscrito em nossa natureza, poderemos ousar usar nossa linguagem pessoal, fruto de nossas experiências de vida, criadas por nossas "madeleines". Porque não apenas Proust, como ele descreve na sua obra Em Busca do Tempo Perdido, mas cada um de nós teve momentos inefáveis e inesquecíveis, buscados sem cessar, sempre inutilmente, a fim de refazermos a gratificante experiência perdida. No entanto, esta incessante busca estará presente em nosso modo de ser, em nossa linguagem, naquilo que nos designa e nos define como originais membros da sociedade humana, bem como membros da sociedade de psicanálise à qual pertencemos. O problema está sempre, antes e depois da psicanálise, na nossa extrema fragilidade: nossas barragens protetoras serão sempre insuficientes para a força do rio que nelas deságua. Estaremos fortalecidos ao conhecermos nossos demônios pelo processo de análise, porém haverá sempre o risco de sucumbirmos frente às tempestades que se formam ao longo do caminho, tal qual Ulisses, nos vinte anos levados para voltar a Ítaca, tendo que passar por mil perigos e precisando de toda sua astúcia diante do olhar petrificador da Medusa, aqui representando a petrificação diante da idealização delirante de um autor ou de um didata, ou do irresistível canto das sereias, aqui representando as vaidades e a ficção de grandiosidade pessoal.

Esta, cremos, seja talvez a condição a ser atingida para que possamos nos tornar analistas/professores das descobertas freudianas.

Mestre, pois, não é aquele que sabe. Ele precisa saber, sim. Mas, antes de tudo, mestre é aquele que se tornou aproximadamente ele mesmo, que tomou posse, sempre relativa, do seu verdadeiro eu inconsciente.

 

Referências

Aulagnier, P. (1990). Um intérprete em busca de sentido. (Regina Steffen, trad., pp. 37-100). São Paulo: Escuta. (Trabalho original publicado em 1986)         [ Links ]

Bion, W. R. (1967). Second Thoughts. (pp. 111-119). Made in Great Britain at the Pitman Press, Bath.         [ Links ]

Bion, W. R. (1974). Bion's Brazilian lectures Rio/São Paulo 2. (p. 47). Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Freud, S. (1969a). O ego e o id. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. (J. Salomão, trad. Vol. 19, pp. 23- 75). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1923)         [ Links ]

Freud, S. (1969b). O inconsciente. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. (J. Salomão, trad. Vol. 14, pp. 191-230) Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1915)         [ Links ]

Freud, S. (1969c). Totem e tabu. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. (J. Salomão, trad., Vol. 13, pp. 125-191). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1913)         [ Links ]

Kubo, Y. (1994). Comentários realizados durante palestra: Corpo Psicanalítico-Fantasias Representações, realizada em Ribeirão Preto em 1994.         [ Links ]

La Fontaine, J. (2006). O corvo e a raposa. In J. La Fontaine, Fábulas de La Fontaine. Ed. Texto. (Obra original de 1668)         [ Links ]

Manguel, A. (2008). Ilíada e Odisseia de Homero: uma biografia. Rio de janeiro: Zahar         [ Links ]

Proust, M. (2012). Em busca do tempo perdido. Rio de Janeiro: Globo. (Trabalho original escrito entre 1913-1927)         [ Links ]

Rosa, J. G. (1984). Grande Sertão Veredas. (p. 289). São Paulo: Nova Fronteira. (Trabalho original publicado em 1956)         [ Links ]

Sapienza, A. (2010). Comentários durante participação em mesa redonda intitulada: Prometeu na torre de Babel-Conhecimento/anti-conhecimento/não conhecimento, realizada no dia 15/05/2010, na II Bienal da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto.         [ Links ]

 

 

Recebido em 4/11/2012
Aceito em 12/12/2012

 

 

Cora Sophia de Toledo Piza Schroeder. Chiapello Rua Antônio Millioti, 180 - Ilha de Elba | Jardim Nova Aliança Sul 14027-195 Ribeirão Preto, SP. Tel: 16 3621-1378. corasophia@terra.com.br
1. Hildebrando Gregolini, em aula ministrada em 1965, no curso de Filosofia Moral, contrapôs esta expressão "facilismo do instintivo" à capacidade de articulação do pensamento, que leva o homem ao processo de hominização. No "facilismo instintivo" o sujeito se deixa levar pelas paixões do "baixo ventre", o que resulta em inércia, estagnação do desenvolvimento e ausência de valores humanos elevados.