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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.45 no.83 São Paulo Dec. 2012

 

TRANSMISSÃO DA PSICANÁLISE

 

Aprender com Bion - a maiêutica bioniana

 

Learning with Bion: the bionian maieutic

 

Aprender con Bion - La mayéutica bioniana

 

 

Maria Helena de Souza Fontes

Membro efetivo, docente e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo sbpsp

 

 


RESUMO

No presente artigo a autora tece algumas considerações sobre o método utilizado por Bion na transmissão do conhecimento psicanalítico. Com essa finalidade, recorre a observações feitas a partir da leitura de Experiências com Grupos, livro inaugural desse autor e os seminários clínicos e supervisões, feitos próximo ao período final de sua vida.
A autora faz, além disso, uma comparação entre o método bioniano, o uso do Koan, uma ferramenta utilizada pelos mestres zen-budistas na busca do conhecimento ou da iluminação, e o método socrático de investigação filosófica. Juntos dão lugar ao que a autora denomina de maiêutica bioniana.

Palavras chaves: método, pensamento selvagem, koan, maiêutica, grupo terapêutico e supervisão


ABSTRACT

In this article the author develops considerations about the method used by Bion for the dissemination of the psychoanalytic knowledge, based upon observations taken during her readings of his inaugural book "Experiences in Groups", as well as on seminars and supervisions that he gave during the last years of his life.
The author also makes comparisons between this method, the use of koan,wich is a a skill used by Zen-Buddhist masters to attain knowledge, and the Socratic method of philosophical investigation, which altogether form what the author calls the "Bionian maieutic".

Keywords: method, wild thoughts, koan, maieutics, therapeutic groups and supervision


RESUMEN

En este artículo la autora desarrolla algunas consideraciones sobre el método utilizado por Bion en la transmisión del conocimiento psicoanalítico. Recurre a observaciones hechas a partir del libro inaugural de ese autor, Experiencias en Grupos, y a los seminarios clínicos y supervisiones que hizo durante los últimos años de su vida.
La autora hace una comparación entre el método bioniano y el uso del Koan, una herramienta utilizada por los maestros zen-budistas en la búsqueda del conocimiento o de la iluminación y el método socrático de investigación filosófica. Juntos dan lugar a lo que la autora denomina mayeutica bioniana.

Palabras clave: método, pensamiento salvaje, koan, mayéutica, grupo terapéutico, supervisión


 

 

I

Há algum tempo li uma crônica, na qual o autor comenta que já esteve várias vezes em Paris, mas, "cretino topográfico", nunca aprendeu a andar na cidade e acabava sempre escolhendo o lado errado não importando o tempo gasto no exame do rumo a tomar. Seus amigos conversam sobre detalhes e minúcias de locais, restaurantes e escondidas feirinhas da capital francesa enquanto ele sente-se acometido de uma "embaraçosa demonstração de insipiência terminal e completa falta de traquejo". A crônica, seguindo o estilo do autor, é divertida e levemente irônica; mas, pensei enquanto estava lendo, o cronista não levou em conta que a Paris descrita pelos amigos corresponde a uma experiência emocional única de cada um deles. Por certo há um mapa com o plano da cidade dividida em regiões e cada uma delas em ruas e avenidas, mas o guia apenas fornece uma ideia geográfica do que seja Paris. A feirinha escondida, a banca de livro ou certo bistrô não estão no mapa; são memórias de sentimentos ou de impressões sensoriais - um gosto, um perfume, uma música - que adquirem um significado singular para cada visitante. Não por acaso encontramos diversas Paris nos livros de Gertrud Stein, Hemingway, Vargas Llosa, entre outros que tiveram Paris como personagem principal. Desse ponto de vista o cronista estaria certo se desistisse de encontrar o caminho e seguisse por onde seu o pés o levassem.

Essa espécie de desorientação e embaraço era o sentimento que predominantemente eu experimentava na leitura da obra de Bion, apesar das inúmeras viagens feitas a esse território. Durante a formação analítica e de maneira continuada até hoje, esse autor tem se constituído no foco mais constante do meu estudo da teoria analítica. Ainda assim não sei bem o que é ser bioniano e verdadeiramente duvido da pertinência de atribuir a alguém tal denominação.1 Poderia mesmo dizer que é impossível andar familiarmente nessa cidade.

A elegância do texto de Freud, guiando de forma diligente o leitor pelos caminhos e atalhos por onde passam suas formulações teóricas, é além de tudo, uma experiência estética. A leitura da obra de Melanie Klein atira direta e cruamente ao leitor a carne, o sangue e a fúria das nossas fantasias inconscientes. Como Paris, ler Bion é uma experiência emocional de cada um. Aprender com Bion é deixar-se perder-se. É desistir de compreender o "mapa" depois de se ver tomada pela irritação, exasperação, sentimento de impotência e impulso de desistir do autor.

Iniciei meus estudos sobre a obra de Bion, lendo Experiências com grupos. Os seminários teóricos são, sem sombra de dúvida, parte importante da nossa formação analítica, mas a escrita dos relatórios e a prática clínica nos mostram quão pouco somos capazes de realizar as teorias que estudamos durante a formação. Li Experiência com Grupos sem atinar que ali estavam as sementes do que mais tarde iria se constituir nas especulações mais ousadas formuladas por Bion no final de sua obra. Na ocasião da leitura, minha urgência estava posta na mal sucedida tarefa de desentranhar alguma compreensão dos complexos enunciados teóricos formulados por Bion nos livros que se seguiram. Algum tempo depois, li As Conferências Brasileiras e as Quatro discussões com Bion. Fiquei tão entusiasmada que um dia me dei conta de ter quatro exemplares desse último livro em minha estante! Não sentia como necessário entender, bastava seguir o livre curso de das especulações que prodigamente jorravam de sua mente. Ele falava de coisas estranhas - a existência da natureza primitiva de um suposto sistema moral da consciência, a persistência de vestígios embriológicos na mente humana, um comportamento "subtalâmico" que se ligaria a estados de terror e de medo, e muitas outras instigantes postulações sobre a realidade psíquica e sobre a psicanálise. Mesmo sem saber a utilidade dessas ideias na minha prática clínica, me encantava a liberdade com que ele as formulava; parecia não responder às perguntas feitas pelos ouvintes deixando-os livres para construírem suas próprias ideias a respeito do que ouviam. Na sequência, li seus últimos trabalhos esparsos e pensei que por fim encontrara o Bion que me dava prazer para além dos esforços necessários ao entendimento dos livros anteriores.

Retomei mais tarde a leitura dos livros iniciais. Relendo Experiência com grupos, encontrei uma coerência entre esse livro e a coletânea de seminários e supervisões realizados próximo ao fim de sua vida. Notei que no livro já estava a postulação da existência do sistema protomental, caracterizado pela indiferenciação entre o psíquico e o soma, manifestando-se no funcionamento grupal de suposto básico.2 Observei também uma semelhança entre o modo como Bion lidava com a audiência de psicanalistas presentes às supervisões e aos seminários e com seus pacientes dos grupos terapêuticos relatados em Experiências com grupos.

Nas supervisões que ficaram registradas3, a atitude de Bion poderia sugerir que ele ignorava o material que o analista trazia e simplesmente aproveitava a ocasião para falar de um assunto que já tinha em mente. O mesmo parecia acontecer quando ele incitava o grupo dos seminários a fazer perguntas e suas respostas não pareciam guardar relação com o que era perguntado. Do vértice em que estou me situando nesse trabalho, caberia dizer que, naquele momento, nos grupos de seminários e supervisões, Bion transmitia um método ao mesmo tempo em que o explicitava em tempo real. O que estava acontecendo não era apenas uma conversa sobre psicanálise, mas sim a explicitação do método psicanalítico em uma experiência de certa forma semelhante à do grupo terapêutico. Comum a ambas, a atitude de não responder às perguntas nem se colocar como se tivesse as respostas. No grupo terapêutico o objetivo seria pôr em evidência as forças emocionais inconscientes que mobilizavam seus membros determinando a atitude do grupo de suposto básico. Do mesmo modo, nos seminários e supervisões, a intenção parecia ser a emergência dos "pensamentos selvagens" - o surgimento do novo que supõe a necessidade de libertar-se das conhecidas e aprisionadoras malhas do conhecimento estabelecido e adentrar em um perturbador mundo novo com o qual cada um tem que se haver. Descompromissado, ou desiludido (Green, 2000) com a utilidade das teorias já explicitadas em seus livros, Bion, nesses últimos trabalhos, dá livre curso à sua imaginação e convoca o ouvinte ao exercício do pensar criativo.

Um exemplo dessa semelhança encontra-se, a meu ver, em um trecho de Em Experiência com Grupos, quando Bion reflete sobre o funcionamento do grupo terapêutico no momento seguinte a uma interpretação dada por ele:

No grupo ora objeto de nossas considerações, descontente com o que está acontecendo e, particularmente com o meu papel em seu ocasionamento, o descontentamento subiu a um tom tão alto que mesmo a existência continuada do grupo se torna matéria de dúvida para mim...Desta vez o grupo fica realmente irritado e é necessário explicar que eles têm todo o direito de assim estar.

Mais adiante prossegue:

Posso, dessa maneira, simpatizar facilmente com o grupo, que sente que tem o direito a esperar algo diferente do que, na realidade, está obtendo. Posso ver que minhas declarações devem parecer ao grupo tão inexatas como o são geralmente as opiniões de nossa própria posição numa determinada sociedade e, além disso, possuírem pouca relevância ou importância para qualquer pessoa, à exceção de mim mesmo.

Pouco depois Bion lembra ao grupo que, se alguém estivesse se sentindo enganado ou insatisfeito, poderia retirar-se e considerar por que resistia com tanta intensidade a quaisquer declarações que parecessem questionar a validade de sua crença no valor das contribuições que estavam sendo dadas.

Nos Seminários italianos, não faltaram manifestações explícitas de insatisfação e uma evidente exasperação frente à forma como Bion enuncia suas ideias e o conteúdo das mesmas. Vejamos no capítulo sexto a transcrição da fala de um participante:

A abertura do discurso de ontem do Dr. Bion me pareceu muito bonita como imagem. Poderíamos esperar ver os pensamentos selvagens passeando pela sala. Mas, depois, eu me perguntei: esses pensamentos são uma emanação do espírito santo ou, não sendo, o que é que nos está dizendo o Dr. Bion? Esperei então que nos resolvesse o mistério do início do Evangelho de João, que nos dissesse onde estava o verbum e que nos ajudasse a entender como ele se fez carne. Mas todo o resto do discurso não me ajudou nisso e, sobretudo, a longa e meticulosa investigação sobre a trabalhosa aquisição da linguagem pelo homem, a partir do grunhido, me desorientou. Pareceu-me contraditório aquele início: em suma, Deus, ou o que seja, grunhe ou fala?

Bion responde:

Não posso responder a essa pergunta, mas podem ver a resposta por sua conta: porque ou tampo minhas orelhas de modo a não ouvir tanto barulho e não ouço suas perguntas, ou posso me levantar e sair da sala. Efetivamente com a quantidade de experiências que tenho, sou perfeitamente capaz de ser surdo ou cego a tudo aquilo que não quero ver sem fechar os olhos nem tapar os ouvidos ....

Vocês estão livres para utilizar a sua capacidade de discernimento e livres para pensar o que quiserem da minha reação ...Quando alguém é capaz de exprimir uma formulação apocalíptica, como as "Revelações de São João" depende do fato de que haja alguém pronto para ouvir no momento em que o indivíduo é capaz de transformar os próprios pensamentos e sentimentos em expressão verbal.

Em vez de continuar a querela proposta pelo participante, Bion recita de memória o poema de Milton do livro III do "Paraíso Perdido". O poema está citado na íntegra pelo tradutor do Seminário.

Já não me encantam da manhã e da tarde
As suaves e pinturescas perspectivas
Da primavera e do verão as flores
Nem mansas greis, nem gordos armentios.
Nem o ar divino do semblante humano
E, em vez de tais belezas me circunda.
Nuvem cerrada, escuridão perene.
Que as avenidas do saber me entope
Mostrando-me somente, em tábua rasa.
Um vácuo universal, sem cor, sem formas.
Donde, para jamais me aparecerem.
Da Natureza as cenas se apagaram:
Adeus ó livros, de sapiências fortes!
Adeus ó grande livro do Universo!
Mas tu, eterna luz, poção divina,
Com tanta mais razão me acode e vale:
Brilha em minha alma, nela olhos acende.
As faculdades todas lhe ilumina
E de nuvens quaisquer a desassombra
A fim de que eu livremente veja e narre
Cenas que à vista dos mortais se escondem.

Considero que, recitando esse poema em lugar de fornecer uma resposta "razoável" à questão feita, a atitude de Bion corresponde ao modelo do que seria, no conceito de Ogden, um pensamento transformativo: os discípulos levam até Jesus uma mulher adúltera e lhe perguntam se devem apedrejá-la, como manda a lei religiosa. Jesus nada responde e escreve na areia enquanto ouve; quando fala não contraria a lei nem a legitima, apenas diz: "aquele que dentre vós nunca pecou, atire a primeira pedra".

 

II

A citação de Maurice Blanchot, tantas vezes repetida por Bion: La réponse est le malheur de la question4, é, juntamente com o exercício de uma atividade que se assemelha à prática zen-budista do Koan, "a mais completa tradução" (Veloso, 1978) do método bioniano de transmissão do conhecimento. Juntas formam os elementos básicos do que chamo de "maiêutica bioniana".

Maiêutica em grego significa a ciência do parto e consiste em um método que, por uma multiplicação de perguntas, o interlocutor é induzido a desenvolver a capacidade de expressar com independência sua própria visão de mundo.

Sócrates, ungido pelo oráculo de Delfos como o homem mais sábio de seu tempo, atribuiu essa honraria ao fato de saber que nada sabia. Para Sócrates esse seria seu único mérito, sua única sabedoria.

Parte fundamental do método socrático de investigação filosófica, a maiêutica tem como pressuposto básico a libertação de todos os condicionantes que funcionam como amarras impedindo a expressão de um pensamento independente. Encontrar-se consigo mesmo pressupõe ser consciente da própria ignorância o que significaria a necessidade de ser desembaraçado de ideias preconcebidas pelo questionamento de um saber constituído.

No método socrático, o ponto de partida para aprender a pensar é a ironia - o questionamento do saber estabelecido, o abandono do senso comum, varrer do pensamento crenças, mitos, tabus. Não se trata de negar o saber, a possibilidade do conhecimento e, sim, de destruir a ilusão de que se sabe. A segunda fase do seu método baseia-se no pressuposto segundo o qual, quem sabe que não sabe vai à busca do saber. Com essa finalidade Sócrates habilmente propunha questões que levavam seus discípulos a elaborar um juízo próprio sobre as mesmas. A essência da maiêutica seria essa fase de partejamento das ideias - o filósofo, de forma semelhante ao trabalho de sua mãe, uma parteira, ajudava o discípulo a extrair de seu mundo interior a verdade nele imanente.5

Poderíamos considerar como análoga à ironia socrática a proposição feita por Bion, quando segura na mão uma xícara de café e pergunta a seu público qual seria a interpretação dessa xícara?6 Ou quando pergunta ao público em outra conferência: "vocês consideram que a criança nasce no dia do seu aniversário?".7 Poderíamos, da mesma forma, considerá-las como expressões de um Koan.

Parte fundamental da história e da doutrina do zen-budismo, o koan se expressa por diálogos breves entre mestre e discípulo, por indagações feitas aos discípulos ou, mesmo, por simples frases dos mestres. O koan visa, através de uma pequena frase formulada numa linguagem desconcertante, infundir no praticante um estado profundo de consciência.8 Em sua maioria datando dos séculos XI e XII, os primeiros koans teriam sido coletados no século IX.

No koan9, as respostas dadas pelos mestres aos discípulos estão longe de serem tranquilizadoras ou de propiciarem um esclarecimento imediato para as dúvidas que os inquietam. A linguagem não passa por uma compreensão, por assim dizer, apenas intelectual das questões da existência, já que pressupõe sempre a interação do corpo com o espírito e um trabalho intenso de quem quer penetrar em seu sentido.

A reação imediata a um koan é de dúvida e, com frequência, de perplexidade. Cada koan, em vez de esclarecer uma indagação, motiva novas indagações - e é o próprio discípulo que deve procurar as respostas, a iluminação. Aqui, temos um ponto de encontro com a maiêutica socrática já que as respostas esperadas não estão fora de quem pergunta e a indagação, a dúvida, assume um papel fundamental para o crescimento. Uma diferença importante, porém, é que o conhecimento buscado tem muito de intuitivo.

Os koans parecem enigmas insolúveis. O que responder, por exemplo, quando o mestre pergunta: "Sem pensar no bem e no mal, mostre-me sua face original antes de sua mãe e de seu pai terem nascido". Ou no koan citado por J. D. Salinger em seu livro Nove Histórias: "Duas mãos aplaudem e há um som. Qual é o som de uma única mão que aplaude?" Ou ainda: "Onde estava seu nariz antes de seus pais lhe darem vida?".

Mas todos os Koans têm respostas, sejam as respostas clássicas e usadas pelos professores para meditação e discussão entre os alunos, sejam as que cada um deve descobrir em si próprio. Como na maiêutica, o mestre por assim dizer ensina a indagar. Cabe ao aluno buscar a sua verdade. Pode ocorrer que um aluno apresente uma resposta certa para um koan e seu professor questione se aquela solução apontada, apesar de correta, irá fazer-lhe bem.

Pode até mesmo ocorrer que o próprio mestre dê respostas aparentemente contraditórias a uma mesma indagação, como visto na Livro da Serenidade, caso 18, datando do século IX, quando um monge pergunta ao mestre zen-budista chinês Zhaozhou Congshen, se um cão tem natureza de Buda e o mestre responde apenas: "Wu".

O "Wu" corresponde ao "Mu" em japonês arcaico, que significa "não" ou "sem". Outro monge faz a mesma pergunta e o mestre responde "sim". Ocorre que o "Mu" também pode significar "vazio" e pode ser interpretado como uma questão que não se aplica. Para um entendimento correto das respostas, seria preciso também considerar o contexto em que foi feita a indagação e a pessoa que indaga.

De forma semelhante, nas supervisões coletadas por José Américo Junqueira de Matos, realizadas no Brasil, o leitor pode sentir-se surpreso e confundido ao encontrar comentários aparentemente contraditórios entre suas afirmações naquela ocasião e postulações feitas em momentos anteriores de sua obra e mesmo em outras supervisões do mesmo período.

Tomando sua famosa recomendação aos analistas, em relação à disciplina de ausência de memória e desejo, encontro uma aparente contradição entre essa e uma outra afirmação feita na supervisão A1 e a S1. Na primeira Bion diz:

No curso de uma análise não é conveniente que o analista se permita ter lembranças ou desejos - porque tanto as lembranças como os desejos são opacos e obscurecem o que está acontecendo. Penso que o mesmo pode dizer-se da compreensão.

Na supervisão S1 discutindo a questão do analisando ser ao mesmo tempo a mesma pessoa e uma nova pessoa a cada sessão, Bion explica que ser o mesmo não significa que a situação permaneça estática e prossegue dizendo:

De fato a esse respeito estamos realmente colocando pressão no paciente para que ele cresça - para não permanecer um bebê ou um paciente ou um neurótico, ou um psicótico, o que quer que ele seja, para sempre. O analista espera algo do paciente além de simplesmente pontualidade, honorários e todas essas coisas - ele espera alguma melhora.

As afirmações deixam de ser contraditórias se o leitor puder levar em conta os diferentes contextos nos quais tais afirmações foram feitas.

Quem pergunta terá condições de ouvir, de aproveitar a resposta?

Tanto na maiêutica como no koan o que importa é que cada um encontre em si mesmo a resposta a suas indagações; que desenvolva recursos para empreender essa busca. Nessas proposições, tão próximas à assertiva de Blanchot, repousa a conexão que faço entre a maiêutica socrática, o koan dos mestres budistas e o método de Bion de transmissão de conhecimento.

 

III

Já visível em Aprender com a experiência, a maiêutica bioniana explicitada nos Seminários e supervisões, parece ter se aprimorado com o tempo - Green (2000) menciona que no início de sua teorização o objetivo de Bion era claramente inspirado pela formulação de Descartes no sentido de "chegar a ideias claras e precisas" - as teorias psicanalíticas deveriam atingir o conhecimento com o grau de precisão das ciências exatas. Nos seminários, supervisões e últimos trabalhos, Bion passa a enunciar suas ideias livremente, sem a necessidade de explicá-las dentro de um sistema científico organizado; sugere além do mais, que o analista seja capaz de se deixar habitar por pensamentos transitórios, abrigando "pensamentos selvagens", ainda que ele esteja consciente da hostilidade e ataques que esses pensamentos irão provocar devido ao temor à mudança catastrófica.

A vivência dos participantes nos seminários e supervisões aqui exemplificados pela transcrição do texto dos Seminários Italianos, pode ser vista como uma experiência direta da reação ao desconcertante discurso de Bion.

Do mesmo modo, a vivência do leitor pode se tornar uma experiência direta de apreensão do seu método10. Nesse sentido reporto-me ao ocorrido algum tempo atrás em um dos grupos de estudo do qual faço parte:

Líamos Os seminários italianos e essa experiência era perturbadora. O texto mostrava perguntas demasiado intelectualizadas por parte dos participantes dos seminários e respostas de Bion, se é que se podia tomá-las como respostas, que nada pareciam ter a ver com as perguntas. Tudo isso nos deixava desorientados e confusos. A situação causou evidente irritação em um membro do nosso grupo que se manifestou por críticas ao autor e suas formulações. Outro membro cogitou de abandonar aquela leitura e iniciar o estudo de algo mais proveitoso para o trabalho clínico.

O grupo reconheceu a dificuldade da tarefa, mas resolveu seguir em frente, apesar da aparente falta de conexão entre perguntas e respostas e, ainda, de não saber como poderíamos aproveitar o que estava sendo lido. De repente, ocorreu a um dos membros a lembrança de um fato; essa lembrança o levou a uma associação com outro fato que, por sua vez, evocou em outro participante uma situação X que era contrária à situação Y relatada por um terceiro membro e, assim, seguiu-se uma conversa muito estimulante envolvendo todos os presentes. Quando voltamos ao texto, o sentimento geral era de que tendo deixado de lado a preocupação com a apreensão de um sentido para as questões formuladas, o grupo desenvolveu um trabalho de livre associação de ideias sobre o próprio texto antes rejeitado. Saímos do grupo satisfeitos e enriquecidos.

Voltando da reunião, continuei pensando na experiência que tínhamos vivido. Percebi que tal experiência era, em sua essência, a mesma que vive o analista em uma sessão de análise, quando a partir de uma situação desconhecida consegue renunciar à necessidade de compreender e de recorrer à memória das teorias. A renúncia pôde gerar um campo favorável à construção de um significado que deu sentido àquele encontro, ao introduzir um novo vértice de observação do fato psíquico. Posso dizer que a reflexão sobre o que tínhamos vivido no grupo, propiciou uma experiência direta de aprendizado de um método do trabalho psicanalítico.

E aqui me ocorre outra proposição repetida muitas vezes por Bion e que poderia ser tomada como parte do seu método: "Em psicanálise não há substituto algum para a experiência".11 Sobre essa proposição nos diz em outro momento:

Devemos ser capazes de ver, sentir, ou intuir a coisa em si. As palavras não têm importância, mas a sensação se transformará em outra sensação que por sua vez poderá chegar a ser algo que possa ser convertido em uma interpretação.

 

IV

Considerei que em Experiências em grupo já se delineava a maiêutica bioniana e que ela pode ser percebida mais claramente nos Seminários e Supervisões, próximos ao fim de sua vida. Nesse intervalo, Bion nos legou uma obra teórica que alargou os limites da investigação da mente alcançados por Freud e Melanie Klein. Faço a hipótese de que além do método, esses últimos trabalhos nos permitem perceber alguns elementos do que poderia ser considerado como recomendações técnicas que refletem a maravilhosa simplicidade de quem tem o privilégio de alcançar a sabedoria.

Na supervisão S1, falando para uma plateia constituída em sua maioria por analistas experientes, Bion diz aos presentes que, na teoria, eles podem ser analistas como os que estão descritos nos grandes livros de psicanálise, mas na prática deverão ter a sensibilidade de perceber aquilo que o paciente é capaz de suportar e se comportarem de maneira a não amedrontá-lo.

Diz ainda:

Temos que fazer alguma concessão ao paciente para quem essa experiência é tão amedrontadora. Isso é um tipo de argumento em favor de nos comportarmos de uma maneira bastante convencional ...Portanto, quanto mais nos comportarmos da maneira que todos se comportam, mais fácil será para o paciente dizer o que ele quiser dizer.

Compreendi suas palavras como a indicação de que um longo tempo é requerido até que o analisando alcance, de fato, a intimidade que o encontro analítico pode propiciar, tanto em relação aos próprios sentimentos quanto à possibilidade de partilhá-la com o analista. Antes disso há um vasto campo de angústias e defesas a percorrer. O analista não deve se apressar em forçar interpretações sofisticadas para um analisando ainda amedrontado com essa experiência desconhecida.

A interpretação sugerida por Bion ao analista, em outro momento da mesma supervisão, me evoca a imagem e o som de água cristalina correndo mansamente em um riacho de seixos. É como se eu o ouvisse falar com delicadeza à paciente do analista que está sendo supervisionado, sobre a existência e a utilidade do divã naquela sala, e qual a sua implicação na experiência emocional daquele momento. O toque do mestre vem quando ele finaliza sua provável interpretação, com uma pergunta que direcionaria a paciente ao seu mundo interno, a pensar sobre si mesma, naquela experiência.

Nesse ponto, o analista que está sendo supervisionado confessa estar muito surpreendido com o que o Bion diria para a paciente.

"É tão simples!", exclama admirado, diria mesmo maravilhado, por ser tudo o que acabara de ouvir muito diferente daquilo que ele esperava encontrar em uma interpretação bioniana.

Dentro do espírito do Koan poderíamos forçar um pouco a comparação dizendo que, naquele momento, o analista alcançou uma iluminação. Compreendeu algo da natureza de uma psicanálise que não se aprende estudando teorias ou fazendo formulações inteligentes.

Sim, é simples, diz Bion, tão simples como ter um bebê, mas quanto tempo é necessário para que de fato alguém possa ser pai ou mãe?

Simples, digo eu, mas quanto tempo terá que ser vivido até que alguém se torne um analista?

Quanto tempo é preciso para que um analista - liberto da necessária informação teórica que recebeu durante sua formação - seja capaz de se colocar disponível para ser habitado por "um pensamento selvagem" ou ter a coragem de expor uma ideia própria ainda que pareça exótica, desconcertante, ou fora dos padrões subtendidos pelo grupo psicanalítico?

Quanta sabedoria é necessária para se responder apenas com um instigante Mu! quando alguém pergunta sobre a realidade última de um fato psíquico que está ocorrendo na sessão analítica?

A "maiêutica" bioniana parece também nos ensinar que o sofisticado é ser simples.

 

Referências

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Bion, W. R. (1973-1974). Supervisões. Transcritas das fitas gravadas em inglês por José Américo Junqueira de Mattos e pela prof. Paola Moore Thompson, traduzidas por Dr. Junqueira e pelo prof. Amauri Faria de Oliveira Filho.         [ Links ]

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Zimerman, D. E. (2008). Bion - da teoria à prática. Porto Alegre: Artmed.         [ Links ]

 

 

Recebido em 5/11/2012
Aceito em 19/12/2012

 

 

Maria Helena de Souza Fontes. Rua Professor Túlio Ascarelli, 160 | Vila Madalena 05449-020 São Paulo, SP. Tel: 11 3564-1130. mhfontes@terra.com.br
1 Zimerman (2008) - "Não tenho pretensão de ser o representante do 'verdadeiro' Bion. Aliás, eu me perguntava qual é mesmo 'o verdadeiro' Bion?".
2 Lia Pistiner de Cortinas (1999) explicita mais amplamente essa relação no capítulo Psique-Soma - Diálogos y Cesuras.
3 Devemos o registro e divulgação dessas supervisões à persistência do esforço de José Américo Junqueira de Matos, analista didata da SBPSP. As supervisões têm sido comentadas por analistas da SBPSP e analistas de outras sociedades em um grupo de estudo coordenado por Giselle de Mattos Brito.
4 A resposta é a desgraça da pergunta. (tradução pessoal).
5 "O conhecimento que Sócrates atribui à aretê (virtude) é a episteme (ciência), não a doxa (opinião). E essa episteme - que não pode ser ensinada- é o conhecimento de si mesmo, a autoconsciência despertada e mantida em permanente vigília." Os Pensadores, 1991
6 (1974) - Conferências Brasileiras. São Paulo.
7 (1992) - Conversando com Bion. Rio de Janeiro.
8 Alberto Marsicano, citado por Carlos Verçosa no livro de ensaio sobre o hay-kai: Oku-Viajando com Bashô.
9 Essas considerações sobre o koan tiveram a preciosa colaboração de Sergio Oliveira, a quem agradeço.
10 Meltzer (1998) - " Ler Bion talvez não seja muito diferente de participar de seus grupos, onde seu destemor assume a forma de uma paciência divertida, no sentido de permitir aos outros que tenham suas experiências."
11 T. D. Suzuki, filósofo zen-budista, diz algo semelhante: "a fundação de todos os conceitos é a experiência simples, não sofisticada. A experiência pessoal é uma necessidade absoluta".