SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.45 número83Merleau-Ponty e a psicanálise: da fenomenologia da afetividade à figurabilidade do afetoO ator-compositor e o analista em formação: inspirações, aspirações e processos criativos índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.45 no.83 São Paulo dez. 2012

 

INTERFACES

 

Do Homo ergaster ao Homo autisticus: aspectos filogenéticos e ontogenéticos do desenvolvimento da mente e seus desvios

 

From Homo ergaster to Homo autisticus: considerations about phylogenesis and ontogenesis of the development of the mind and its disorders

 

Del Homo ergaster al Homo autisticus: aspectos filogenéticos y ontogenéticos del desarrollo de la mente y sus desviaciones

 

 

Vera Regina J. R. M. Fonseca

Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo sbpsp

 

 


RESUMO

O compartilhamento precoce das emoções é considerado, por alguns estudiosos do desenvolvimento, como uma característica que define o humano. Tal traço teria sido propiciado, segundo Sarah Hrdy, em Mothers and Others, pelo padrão de cuidado compartilhado das crianças que existiu a partir do Homo ergaster, descrito como tendo vivido há 1.800.000 anos. Nas últimas décadas, esta configuração sofreu transformações radicais nas sociedades ocidentalizadas. Os cuidados parentais agora são pouco compartilhados e intermediados, com frequência, por meios não humanos, como a televisão e computadores. O texto levanta a hipótese de que tais práticas possam estar ligadas, ainda que indiretamente, ao aumento marcante da prevalência dos transtornos autísticos.

Palavras-chave: transtorno autístico, desenvolvimento humano, psicologia evolucionista, psicanálise


ABSTRACT

Developmental psychologists consider early sharing of emotions as a trait unique to human beings. According to Sarah Hrdy, in Mothers and Others, such characteristic would have evolved from the practice of shared infant care, which can be traced back to Homo ergaster, around 1.8 million years ago. This practice has changed dramatically in the last decades in Westernized societies. Parental care is no longer shared, but rather intermediated by nonhuman means, such as video, television and computers. The author hypothesizes that such practices may be linked to the great increase in prevalence rates of autistic disorders.

Keywords: autistic disorders, human development, evolutionist psychology, psychoanalysis


RESUMEN

El compartir precozmente las emociones es considerado por algunos estudiosos del desarrollo una característica que define lo humano.
Este rasgo habría sido favorecido, según Sarah Hrdy, en Mothers and Others, por el padrón de cuidado compartido de los niños que existió a partir del Homo ergaster, que se según se describe, vivió hace 1,8 millones de años.
En las últimas décadas, esta configuración ha sufrido transformaciones radicales en las sociedades occidentalizadas. La crianza de los hijos no es más compartida y es intermediada, a menudo, por medios no humanos, tales como la televisión y las computadoras.
El texto plantea la hipótesis de que tales prácticas pueden estar vinculadas, tal vez indirectamente, al notable incremento en la prevalencia de los trastornos del espectro autista.

Palabras clave: trastorno autista, desarrollo humano, psicología evolutiva, psicoanálisis


 

 

Começo com um breve relato da vida cotidiana: estou parada no trânsito de uma grande e movimentada avenida e percebo, na calçada, uma jovem mulher carregando um bebê bem pequeno. Imagino que ela vá pegar o ônibus logo adiante e me ponho a pensar como ela fará para se equilibrar, já que precisará dos dois braços para segurar o bebê. Logo me vem a ideia de que, tão prosaica quanto possa parecer, esta é uma questão central para o desenvolvimento humano. Mantive a dúvida e levei-a para minhas colegas etólogas, estudiosas da psicologia evolucionista. Uma delas me sugeriu a leitura do novo livro de Sarah Hrdy, autora que eu já conhecia desde Mãe Natureza (2001). O título: Mothers and others (Hrdy, 2009).

A psicologia evolucionista do desenvolvimento, referencial teórico usado pela autora, parte do princípio que a caça e coleta foram o modo de vida característico do ambiente de adaptação humana, por mais de 90% da existência do Homo sapiens (por volta de 200.000 anos) e mais de 99,5% de nossos antepassados homininos (há 1.800.000 anos). A agricultura e criação de animais não devem ter tido um papel fundamental na formação da mente do homem moderno.

Os etólogos e a psicologia evolucionista consideram que nossos mecanismos psicológicos básicos de funcionamento foram moldados no modo de vida de caça e coleta para solucionar problemas específicos de adaptação. Entre tais bases, o modo de cuidar dos bebês no contexto acima descrito deve ter tido fundamental importância na formação de suas mentes/cérebros.

Resumo a seguir a tese central do livro. Hrdy parte da premissa de que o universal humano é um conjunto de capacidades sociais que se caracterizam pelo monitoramento do estado mental e emocional do outro, pela tendência conspícua a compartilhar emoções, a colaborar, e não apenas competir. A autora traz evidências de que os pré-requisitos para a empatia e a imitação existem até mesmo entre os primatas não humanos, mas que diferentes fatos na história da nossa espécie levaram ao desenvolvimento de uma especial característica de hipersociabilidade, anterior à emergência da linguagem e à capacidade de simbolização.

Há 1.800.000 anos surge na África o Homo erectus, espalhando-se depois para várias regiões (Geórgia, China, Java etc.); entretanto, apenas o grupo que permaneceu na África parece ter persistido e se transformado, sendo chamado de Homo ergaster e originando, há cerca de 200.000 anos a espécie Homo sapiens. O Homo ergaster vivia em grupos, sobrevivendo da caça e da coleta; já havia perdido os pelos (o que ocorreu por volta de um milhão de anos antes), portanto a cria, de lento desenvolvimento e demandando muitos recursos dos cuidadores, teria que ser carregada por vários meses e supervisionada por outros mais. Contrariamente aos chimpanzés e outros primatas não humanos, a mãe do gênero Homo permite que outras pessoas se aproximem de seus bebês. Esta característica parece ter propiciado o cuidado compartilhado e, ao mesmo tempo, pode ter sido moldada por necessidades prementes de ajuda num contexto de nomadismo, caça e coleta, no qual carregar um bebê, defendê-lo dos predadores e, ao mesmo tempo, coletar, seria extremamente custoso e arriscado.

A autora traz inúmeros exemplos para sustentar sua tese, entre eles dados provenientes das sociedades atuais de caça e coleta, nas quais o cuidado coletivo da criança é amplamente prevalente. Mas privilegia os dados ecológicos e históricos, descrevendo a vida na savana durante o Pleistoceno (período de 1.800.000 a 12.000 anos atrás), na qual os recursos eram espalhados e imprevisíveis, o que demandava a colaboração entre os indivíduos intra e intergrupos, pois a sobrevivência dependeria da ajuda do outro. A organização social se caracterizava por ser igualitária, sendo as posses transitórias e compartilhadas; a população era escassa e as taxas de mortalidade infantil altíssimas, situação que fazia com que a ajuda de outros indivíduos do grupo para prover sustento da cria fosse de extrema importância. Assim, tendo que ser cuidada por vários membros (irmãos maiores, avós, tios, pai etc.), as crianças que fossem mais competentes em ler intenções e compartilhar emoções teriam mais chance de sobreviver, possibilitando que tais traços de hipersociabilidade fossem selecionados ao longo dos milênios. Portanto, teriam sido nossos antepassados mais distantes que lançaram as bases para o desenvolvimento de tais canais de compartilhamento de emoções entre duas (e mais) mentes, e teria sido esta característica (associada a recursos anatômicos de fonação) que possibilitaria, mais tarde, o surgimento da linguagem (afinal, a motivação para a linguagem vem da tendência inelutável a compartilhar fatos e emoções) e o leque de consequências daí advindo.

Citando literalmente a autora:

hipotetizo que novas condições de cuidado dos bebês entre uma linha de homininos antigos consistiam em que as crianças crescessem dependendo de uma rede de cuidadores mais ampla que apenas as mães, e que tal dependência produziu pressões seletivas que favoreciam os indivíduos que fossem mais capazes de decodificar o estado mental dos outros, discernindo quem poderia ajudar e quem poderia prejudicar. (Hrdy, 2009, p. 66)1

Mais adiante, ela enfatiza como bebês de primatas não humanos nunca estão longe de suas possessivas mães, agarrados a seus pelos e em contato corporal constante; mas

Em certo ponto da emergência do gênero Homo, as mães ficaram mais confiantes, deixando outros carregarem seus bebês ainda muito novos. (Hrdy, 2009, p. 114)

Desta forma, o bebê humano estaria mais motivado a manter contato visual com a mãe, assim como a monitorar o estado mental do outro cuidador e tentar interpretar suas intenções,

uma atividade que acabou por afetar toda a organização de seu sistema neural ... os bebês humanos procuram entender o que os outros sentem ou pensam ... eles escaneiam a face das mães e dos outros cuidadores não apenas para prever o que eles irão fazer, mas também ... (os usam) como "curadores do significado". (Hrdy, 2009, p. 115)

A atenção prestada pelos bebês humanos aos ritmos, aos turnos das interações, como se fosse preciso estar sempre atento e testar o quão responsivo e contingente o cuidador é, nunca foi necessária para outros bebês primatas que estavam em constante contato corporal com a mãe. De fato, aqui já vemos o ritmo de união e separação surgindo há muito tempo em nossa história, quando perdemos os pelos e não pudemos mais garantir carregar os bebês e procurar meios de subsistência, pois ainda não dispúnhamos de instrumentos para fazê-lo sem as mãos (1.800.000 anos atrás!). O fato de que a separação da mãe era frequente, mas era substituída pela união com um outro cuidador, levou a um incremento do contato visual e do uso do mesmo para obter informações. E também levou a uma habilidade extra: emitir sons para estar em contato, mesmo sem o contato físico. Aí estão as bases do sistema de buscar compreender o outro e de manter a ligação com este outro, que é o início da linguagem, onto e filogeneticamente. Citando a autora:

Suspeito que tanto o balbucio como o manhês evoluíram em resposta à necessidade dos bebês e de suas mães de se manterem em contato enquanto o bebê era segurado por outros. (Hrdy, 2009, p. 123)

 

Um exemplo clínico

Passemos agora à segunda parte, introduzindo um exemplo clínico fictício em si, mas produto da condensação de muitos casos.

Vanessa e Paulo se conheceram na faculdade de Administração; foram morar juntos depois de três anos de namoro, enquanto cada um se dedicava a seu emprego, respectivamente na área de marketing e de finanças de grandes firmas. Era uma vida agitada, pois saíam às 6h30 para não pegar trânsito e só voltavam por volta das 21h.

Quando Vanessa completou 32 anos, começaram a pensar em ter filhos. Poucos meses depois, confirmou-se a gravidez. Vanessa continuou com seu ritmo de trabalho, até mesmo acelerando-o para deixar prontas várias de suas tarefas antes do parto. A data da cesárea foi combinada entre o obstetra e Vanessa, ambos achando que desta forma seria mais simples do que esperar um trabalho de parto que poderia ser difícil, doloroso (e em horário inconveniente). Bruno nasceu com 3.300g, com boas notas de apgar. Tiveram alta da maternidade após três dias e foram para casa. A avó materna, morando em outro estado, pôde ficar com a filha por 15 dias apenas.

Bruno era um bebê muito tranquilo, nem parecendo que havia uma criança em casa. Entretanto, após a partida da mãe, Vanessa sentiu-se progressivamente sozinha. Temia não saber cuidar de Bruno, não saber decifrar seus sinais...afinal, há 10 anos só lidava com números e finanças...Varria com o olhar o quarto do bebê, o móbile que tocava 5 músicas e acendia luzes, a cadeira que balançava e emitia sons para tranquilizá-lo, todo o conjunto de brinquedos ganhos e comprados nos últimos meses. Sentia-se um pouco mais segura, imaginando que tais brinquedos iriam com certeza estimular o filho do jeito certo, estimular sua inteligência como é preciso.

Paulo chegava tarde do serviço, já que estava no meio de uma concorrência importante para a firma. Eram muitas horas solitárias pela frente: os amigos, trabalhando até tarde também, só visitavam o casal nos fins de semana. Vanessa sentia-se triste e desanimada, não tinha mais vontade nem de se arrumar direito; a televisão, para a qual tinha tão pouco tempo antes, era agora uma companhia. Assim distraía-se até a noite chegar, e mais tarde, Paulo.

Os quatro meses de licença se arrastaram, e no final, ouvindo as notícias dos colegas de trabalho, não via a hora de voltar. Sentiria falta de Bruno em seu colo, Bruno dormindo aconchegado ao seu lado enquanto o pai não chegava, do cheiro de bebê que rondava suas coisas...mas o trabalho era mais vivo, animado, excitante!

Por sorte, segundo Vanessa, encontraram uma senhora muito calma com experiência no trato de bebês, recentemente aposentada, que se comprometeu a cuidar de Bruno; ela dormiria em seu quarto, poupando à mãe as interrupções eventuais no sono.

Os meses foram passando e, no fim de semana, quando ficavam mais longamente com Bruno, os pais se surpreendiam com a destreza com a qual ele manejava o Ipad de Paulo, como se concentrava nos programas de tv e nos dvds, tal qual um garoto de dez anos, como já sabia usar o controle remoto! Mas havia umas peculiaridades: Bruno só comia em frente à tv, e apenas comidas pastosas; detestava mastigar! Ficava tão envolvido com seus programas, que podiam chamá-lo quanto quisessem que ele não olhava. Imitava os movimentos dos bonecos do Backyardigans com perfeição! Mas era muito difícil tirá-lo de casa. A babá não reclamava, pelo contrário: Bruno era uma criança perfeita, que não dava nenhum trabalho; era só saber como tratá-lo, era só dar a TV e pronto! Quanto aos brinquedos preferidos, eram sempre aqueles relacionados aos programas, de preferência os que tivessem luzes e sons. Bruno gostava tanto que dava pulinhos e abanava as mãos de alegria ao manipulá-los!

Não irei me estender mais nesta história, pois está claro qual é o final. Bruno não desenvolveu nenhuma linguagem comunicativa até os três anos - não olhava, não atendia pelo nome, e sua ligação com o mundo era exclusivamente sensorial, não dialógica. Foi diagnosticado como pertencendo ao espectro autístico.

Casos como este são frequentes nos consultórios de psiquiatria e neurologia da infância. De fato, nos últimos 30 anos, a prevalência dos Transtornos autísticos mais que decuplicou no mundo ocidentalizado, particularmente em áreas urbanas! Ainda que artefatos como maior abrangência do diagnóstico e divulgação possam estar interferindo neste incremento, a conclusão é que sobra um aumento real. O número de abril de 2012 do International Journal of Epidemiology traz um aumento de 11 vezes na prevalência dos transtornos autísticos entre 1992 e 2002 na Califórnia (Keyes et al., 2012)!

Fatores genéticos são trazidos sempre como estando na gênese dos transtornou autísticos; mas não se nega mais que os fatores genéticos estão sujeitos a fatores ambientais que podem ativar ou desativar os genes. Cito um trecho que resume bem a questão:

Pesquisadores ... tendem a negligenciar uma distinção importante entre uma associação genética e uma causa genética. Isto levou à disseminada crença de que o autismo é iniciado/causado por um defeito genético... Mas especialistas em genética do autismo demonstraram ... que nenhuma2 das lesões genéticas associadas com o autismo parece causá-lo diretamente; cada lesão genética parece mais comprometer o desenvolvimento geral do cérebro de modo tal que o indivíduo fica mais suscetível a desenvolver autismo ou outra síndrome. (McDowell, 2010, p. 344)

 

O que estará então ocorrendo? Fatores ambientais?

Há muitos pontos polêmicos no que diz respeito à influência de fatores ambientais na gênese dos Transtornos autísticos, mas é surpreendente quão poucas publicações levam em conta sequer a possibilidade de que fatores ligados à cultura e às rápidas modificações ocorridas nas práticas parentais, particularmente nos centros urbanos que seguem o modelo ocidental, possam ter algum papel no mapa multifatorial da etiologia.

Foi preciso um acadêmico da área de economia, mais distante dos preconceitos e do gesso ideológico da psiquiatria e neurologia, para criar uma associação entre estilo de vida e aumento da prevalência de autismo.

Waldman e colegas (2012), em três estudos usando experimentos naturais (a partir apenas de dados já colhidos) na Califórnia e na Pensilvânia, mostraram que há uma significativa superposição entre aumento de prevalência de Transtornos autísticos e aumento de assinatura de TV a cabo com canais infantis em casas com crianças de 0 a 2 anos. A partir do tratamento estatístico dado, os autores excluíram a possibilidade de que houvesse o reverso (as crianças com autismo assistem mais TV e, portanto, em suas casas haveria mais assinatura), mas não excluiu outras associações, como por exemplo, que as crianças autistas assistissem mais TV porque passam mais tempo em casa que brincando fora de casa. De qualquer modo, a possibilidade que a TV seja um fator desencadeante é enfatizada pelos autores.

Na mesma linha, um pediatra americano, Leonard Oestreicher (2011), tendo um sobrinho autista em São Paulo, resolveu fazer uma revisão das pesquisas sobre a fisiopatogenia do autismo. O produto final foi um livro para pais e educadores, em que ele enfatiza o perigo da parafernália que é oferecida para os bebês em substituição às trocas humanas. Seu livro tem o sugestivo título de The Pied Pipers of Autism - How TV, Video, and Toys Cause ASD (O flautista de Hamelin do autismo - como a TV, vídeos e brinquedos levam aos transtornos autísticos).

McDowell (2010), um biólogo molecular que passou a trabalhar como analista jungiano, desenvolve um interessante artigo no qual hipotetiza que "a causa direta do autismo é o fracasso do contato de olhar entre a mãe e a criança" (McDowell, 2010, p. 1). Em 2005, de modo similar, já havíamos trazido uma hipótese (Fonseca, 2005) de que as trocas face-a-face, que constroem uma estrutura interacional, "internalizada em bloco, permitindo a representação mental tridimensional da díade", estaria prejudicada nos transtornos autísticos e teria um papel central na gênese do quadro (Fonseca, 2005, p. viii).

Assim, conjecturamos que suscetibilidades genéticas que favoreceriam os transtornos autísticos, possam, na presença de um ambiente humano/cultural com características muito diversas de nosso ambiente natural de evolução, encontrar maior número de fatores predisponentes, que poderiam contribuir, pelo menos em parte, para o aumento significativo nas prevalências.

Heidi Keller (2007), em um estudo magistral de psicologia cultural, mostrou a significativa distância que separa as práticas de cuidados parentais de diferentes culturas. Dividindo as mesmas entre tradicionais (que salientam o caráter de interdependência do self), autônomas (que favorecem a autonomia do self, privilegiando desde cedo a atenção compartilhada e a independência) e mistas, descreve como o estilo dos cuidados parentais mudou de maneira marcante entre as mães de classe média nos últimos 30 anos em Los Angeles, entre os vários centros em que sua pesquisa foi realizada. Pode ser coincidência, mas foi exatamente na Califórnia que se começou a se notar a "epidemia de autismo".

 

E o que a psicanálise tem a ver com isto?

A psicanálise tem enfatizado, há muitos anos, o caráter fundamentalmente intersubjetivo do desenvolvimento humano. Vários de nossos autores clássicos descreveram como o processo de identificação projetiva se dá, e seu papel central no desenvolvimento. É através do contato com um (ou mais) cuidador(es) que se abre(m) para receber e interpretar as expressões do bebê que este poderá não só ter um modelo de digestão psíquica, como também criar uma imagem de si mesmo e de outro (noção de self e outro) e uma estrutura interna que represente as trocas iniciais, trocas estas que moldam uma dialética entre ser igual ao outro, ser diferente do outro e estar em comunicação. Esta é uma aquisição paulatina que podemos descrever como "continência intersubjetivante", um fluxo de trocas e negociações de ambas as partes em que a discriminação e a união fazem contraponto.

Desde a vida intrauterina, o pano de fundo da experiência humana é a dialética entre estar unido/estar separado, entre continuidade e ruptura. Maiello (2001) descreve como o batimento cardíaco materno fornece a experiência de continuidade para o feto, que se contrapõe à voz materna, sujeita ao ritmo: presença, ausência e inflexões, chamando então a mesma de precursor do objeto. A negociação entre continuidade e separação ao mesmo tempo propicia e é o canal da intersubjetividade. Mas isto só se faz através do contato íntimo, persistente e suficientemente envolvente com outro(s) ser(es) humano(s). O bebê precisa ter um significado especial para o cuidador. Será um membro do clã, um elo na cadeia geracional, um companheiro, herdeiro, o que for. Mas alguém, que ao mesmo tempo que depende do adulto, é por ele considerado como tendo existência separada. Vários estudos mostram claramente a natureza dos ajustes necessários de ambas as partes para que a interação se mantenha (Acquarone, 2007).

Consideremos agora o papel da visão na relação face-a-face. A visão é o canal por excelência da rêverie, porta de entrada das identificações projetivas. "O modelo de desenvolvimento de Stern mostra porque o contato de olhar é importante. A mãe percebe a presença do mundo interno do bebê em parte através dos olhos do mesmo. Da mesma forma, o bebê percebe a vida interna da mãe através dos olhos dela" (Mc Dowell, 2010, p. 350). Se há evitação e prejuízo no contato por meio do olhar, vários passos da interação serão perdidos.

Mesmo que a visão possa ser substituída por outras vias, as trocas só podem ocorrer na presença de dois seres humanos responsivos, agentes e contingentes, o que dá o caráter interacional - o dar e receber - à relação.

A falha na construção de uma relação de objeto internalizada e estruturante que está na base dos transtornos autísticos produz um quadro clínico dominado por duas características interligadas: de um lado, a intolerância à alteridade, de outro uma adesão à sensorialidade. Subjacente a ambas, está a angústia de aniquilação. E também dependendo de ambas, o prejuízo na aquisição da tridimensionalidade, alimentada pela angústia de aniquilação, em uma reação circular.

Os seres vivos nascem com filtros perceptivos específicos para sua espécie, filtros que organizarão sua experiência de acordo com uma linha que faça sentido para o ambiente esperado. Nosso filtro é calibrado pela "hipersociabilidade" de nossa espécie. É mais importante para um bebê saber quem irá alimentá-lo e cuidar dele de bom grado do que qual é o padrão de claro/escuro do ambiente. Mas nos transtornos autísticos vemos profundas transformações da característica busca social do compartilhar, sendo o filtro prevalente o físico/ sensorial.

Ainda na linha acima, para alguns pesquisadores haveria um "dispositivo" inato, chamado por eles de "rastreador de contingência" (Gergely & Watson, 1996), que orientaria o bebê para os objetos - tanto humanos quanto não-humanos - que mais fossem contingentes/responsivos a suas expressões. Ocorre que, de início, o bebê prefere contingências perfeitas (como jogos ou brinquedos luminosos e musicais, para os quais a um apertar de teclas surge uma resposta previsível e imediata), mas aos poucos vai selecionando as respostas de contingência imperfeita, características das trocas sociais. Crianças autistas continuam preferindo as contingências perfeitas, aquelas que são previsíveis e imediatas, típicas das experiências fusionais ou com objetos não-humanos.

O bebê nasce com potencial para selecionar faces, contingências e expressões e usará tal potencial para uma relação enraizada nas trocas sociais. O que era potencial se transforma em capacidade, dadas condições adequadas de estabilização.

Mas o potencial para a busca do objeto humano pode ser insuficiente (por razões várias) e tomar uma rota diversa, caso não seja compensado. Bebês, que depois foram diagnosticados como autistas apresentam desde cedo clara preferência pela ligação com objetos em detrimento da atenção social (Muratori & Maestro, 2007). Nestes casos a percepção sensorial, que dá combustível para as trocas sociais, pode se desacoplar das mesmas e até mesmo competir com elas, privilegiando a sensorialidade em detrimento da intersubjetividade. Assim, a criança autista preferirá escorregar pelas poltronas, ver as peças de Lego caírem no pote, repetidamente, ou assistirem durante horas o mesmo desenho, ou jogarem o mesmo jogo eletrônico, a olharem e interagirem com alguém.

Os cuidados parentais, ainda que tenham sofrido profundas mudanças ao longo do tempo e sejam tão diversos ao redor do mundo, têm que permitir a vinculação íntima com uma ou mais mentes "dialogantes", movidas pelo interesse pelo bebê, literalmente como janelas abertas para facilitar, manter ou criar o fluxo de comunicação de emoções, o fluxo de interesse mútuo. Ao invés de uma ou muitas companhias vivas, de faces que teriam que encarar para decifrar e que estimulariam a criança a retomar as interações, hipotetizamos que um grupo de bebês (possivelmente menos responsivos), estão tendo que escolher entre sombras faciais passageiras e solitárias, ou um rosto/tela altamente excitante, que alia passividade com alto grau de contingência, deixando de fora toda a negociação e complexidade característica dos encontros sociais.

A criança ancestral estava imersa no grupo. Aprendia desde cedo a alternância entre a mãe estar junto ou longe, e o outro que não a mãe estar perto. Talvez o mais característico das sociedades urbanas ocidentalizadas do século XXI seja a solidão dos cuidadores (sejam eles quem forem): não estão mais em um grupo, que tanto dilui a carga do cuidado intensivo que um bebê exige quanto sustenta a identidade grupal do novo membro. A criança então pode ficar entregue por longo tempo aos cuidados de um adulto deprimido, ou protocolar, ou fusional. Se aliarmos a estas condições o recurso a meios não humanos como alternativa de companhia, uma companhia não-viva (ao contrário da "companhia viva" de Alvarez, 1992) e um modelo social em que a divisão de papéis sofreu rápidas e amplas modificações, levando a uma diluição das diferenças entre as funções parentais, teremos um quadro muito diferente do ambiente em que nossa espécie se formou. E para certo tipo de crianças o resultado de tal combinação pode ser um desenvolvimento muito diverso do propiciado pela "hipersociabilidade" típica dos seres humanos.

Consideremos a seguinte afirmação: "Mais nova pode ser a ideia de que a criança herda um ambiente típico da espécie tanto quanto um genoma típico da espécie, e que variações substanciais em tal ambiente podem resultar em comportamentos atípicos... Pesquisas com aves mostram que o filhote que recebeu estimulação além da norma da espécie frequentemente exibe habilidades cognitivas e sensoriais atípicas" (Bjorklund & Bering, 2002, p. 353).

É claro que não pretendemos uma volta para trás; não temos tal opção. E nem colocar toda a culpa pelo incremento da prevalência dos transtornos autísticos na mídia eletrônica. Mas isto também não nos impede de refletir sobre o impacto de tais mudanças ultra-rápidas no desenvolvimento humano.

Fomos do contexto da presença de vários cuidadores (H. ergaster) a um contexto de um cuidador físico (ainda que possam ser mais de um) na presença de uma legião de meios não humanos de estímulos contínuos altamente excitantes e contingentes, ou de uma ênfase excessiva na autonomia e na atenção compartilhada antes que a dependência e a atenção mútua pudessem ter sido estabelecidas. Ou ainda na presença de objetos humanos desvitalizados em sua condição de interlocutores, privilegiando a ligação sensorial/fusional, que também abre caminho para a continuidade encontrada nos meios eletrônicos.

A psicanálise teve, tem e continuará tendo um papel importante na retomada do desenvolvimento de tais crianças, independente da preponderância de fatores genéticos ou ambientais. Podemos compartilhar as ideias expressadas por Dawkins em sua afirmação:

As causas genéticas e ambientais não são, em princípio, diferentes. Algumas influências de ambos os tipos podem ser difíceis de reverter; outras podem ser fáceis. Algumas podem ser normalmente difíceis de reverter, mas fáceis se o agente adequado for usado. A questão importante é que não há nenhuma razão para se esperar que as influências genéticas sejam mais irreversíveis que as ambientais. (Dawkins, 1982, p. 13)

 

Referências

Acquarone, S. (2007). Signs of Autism in Infants. London: Karnac.         [ Links ]

Alvarez, A. (1992). Companhia viva: psicoterapia psicanalítica com crianças autistas, borderline, carentes e maltratadas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.         [ Links ]

Bjorklund, D., Bering, J. (2002). The evolved child 1 - Applying evolutionary developmental psychology to modern schooling. Learning and Individual Differences; 12:347-373.         [ Links ]

Dawkins, R. (1982). The Blind Watchmaker. Essex, England: Longman.         [ Links ]

Fonseca, V. R. (2005). A psicanálise dos transtornos autísticos - uma perspectiva interdisciplinar. Tese de Doutorado - IPUSP - Departamento de Psicologia Experimental.         [ Links ]

Gergely, G., Watson J. (1996). The social biofeedback theory of parental affect mirroring: The development of emotional self-awareness and self-control in infancy. Int. J. Psycho-Anal., 77:1181-212.         [ Links ]

Hrdy, S. B. (2001). Mãe Natureza - uma visão feminina da evolução: maternidade e seleção natural. (A. Cabral, trad.). Rio de Janeiro: Campos.         [ Links ]

Hrdy, S. B. (2009). Mothers and others: the evolutionary origins of mutual understanding. Cambridge, London: The Belknap Press.         [ Links ]

Keller, H. (2007). Cultures of Infancy. New Jersey, London: Lawrence Erlbaum.         [ Links ]

Keyes, K. M et al. (2012). Cohort effects explain the increase in autism diagnosis among children born from 1992 to 2003 in California. Int. J. Epidemiol., 41(2):495-503.         [ Links ]

Maiello, S. (2001). Prenatal Trauma and Autism. J. Child Psychother., 27:107-124.         [ Links ]

McDowell, M. (2010). Autism's Direct Cause? Failure of Infant-Mother Eye-Contact in a Complex Adaptive System. Biological Theory, 5:344-356.         [ Links ]

Muratori, F. & Maestro, S. (2007). Early signs of autism in the first year of life. In Acquarone, S. (Ed.) Signs of Autism in Infants. London: Karnac.         [ Links ]

Oestreicher, L. (2011) The Pied Pipers of Autism - How TV, Video, and Toys Cause ASD. http://www.toystvautism.com         [ Links ]

Waldman, M, Nicholson, S. & Adilov, N. (2012). Positive and negative mental health consequences of early childhood television watching - National Bureau of Economic. Research: http://www.nber.org/papers/w17786         [ Links ]

 

 

Recebido em 5/11/2012
Aceito em 12/12/2012

 

 

Vera Regina J. R. M. Fonseca. Av. Portugal, 1629 cj. 63 04559-003 São Paulo, SP. veraregina.fonseca@gmail.com
1 As traduções das citações dos artigos em inglês foram feitas pela autora.
2 Grifo da autora