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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.45 no.83 São Paulo dic. 2012

 

APREENSÕES

 

As novas traduções de Freud: uma renovação bem-vinda!

 

The Freud's translation: a welcoming renovation!

 

Las Nuevas Traducciones de Freud: ¡Una renovación bienvenida!

 

 

Mariangela O. Kamnitzer Bracco

Membro filiado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP

 

 


RESUMO

Dispomos hoje de vários textos de Freud vertidos diretamente do alemão para o português por competentes tradutores. Entretanto um número significativo de leitores ainda tem como texto-referência a Edição Standard Brasileira. A autora desse artigo, após ressaltar o singular papel da Edição Standard Inglesa na divulgação da Psicanálise e o trabalho pioneiro da psicanalista e tradutora Marilene Carone, aventa algumas explicações para compreender a lenta assimilação das novas traduções.1

Palavras-chave: novas traduções, Edição Standard Inglesa, Marilene Carone, recepção


ABSTRACT

Many Freud's texts translated directly from German to Portuguese by renowned translators are nowadays available. However a significant number of readers still use the Brazilian Standard Edition as a reference. The author of this article emphasizes the unique role of the English Standard Edition in spreading Psychoanalysis, and the pioneer work of the psychoanalyst and translator Marilene Carone. The author also makes some reflections about why the new translations are being so slowly assimilated.

Keywords: new translations, English standard edition, Marilene Carone, reception


RESUMEN

Disponemos hoy de varios textos de Freud vertidos directamente del alemán para el portugués por traductores competentes. Sin embargo un número significativo de lectores aún tienen como texto de referencia la Edición Standard Brasileña. La autora de este artículo, después de resaltar el papel singular que tuvo la Edición Standard Inglesa en la divulgación del psicoanálisis y el trabajo pionero de la psicoanalista y traductora Marilene Carone, ofrece algunas explicaciones para comprender la vagarosa asimilación de las nuevas traducciones.

Palabras clave: nuevas traducciones, Edición Standard Inglesa, Marilene Carone, recepción


 

 

Até que enfim você nos libertou, agora não somos mais reféns da Standard! Assim Paulo César de Souza foi saudado por uma de nossas colegas, quando esteve na sbpsp lançando os dois primeiros volumes das Obras Completas de Freud pela Editora Companhia das Letras. A saudação efusiva expressava a alegria de muitos que, após longa espera, viram as obras de Freud entrarem para domínio público em 2009 e, agora, podiam contar não só com a versão de Luis Alberto Hanns, que era publicada desde 2004 pela editora Imago, mas também com a de Paulo César de Souza. Ainda em 2010, outro competente tradutor, Renato Zwick, começou a publicar traduções de textos de Freud pela editora L&PM.

Passados poucos anos pude perceber que esse entusiasmo inicial diminuiu. Em 2012 participei de um seminário teórico na sbpsp no qual a maioria dos colegas, e inclusive o orientador, faziam suas leituras de Freud na velha Standard, ainda que os textos lidos já se encontrassem traduzidos tanto por Hanns, quanto por Souza. Senti um grande desconforto. Comecei a exercer uma certa militância junto ao nosso grupo a favor das novas traduções, e encontrei resistências. Meu desconforto transformou-se então em curiosidade, e comecei a conversar com colegas de outro grupo sobre suas leituras de Freud: que tradução liam, o que achavam etc. Nesse outro grupo os leitores da Standard eram minoria e me foi relatado que a comparação entre as versões era frequente. Mas, tanto num grupo, como no outro, aqueles que estavam "apegados" à Standard como fonte de referência alegaram o mesmo motivo: nela estavam suas anotações e grifos.

Resolvi verificar nos três números da Revista Brasileira de Psicanálise publicados em 2012, e no Jornal de Psicanálise também desse ano, qual seria a versão brasileira mais utilizada pelos respectivos colaboradores. Dos vinte artigos consultados, catorze citavam a Standard, enquanto que cinco as novas traduções, e um fazia referência às duas. Minha pesquisa pareceu confirmar o que já tinha observado: há uma assimilação lenta das novas traduções. Como compreender isso? Uma natural inércia em aceitar algo novo?

Antes de prosseguir com possíveis respostas para essa indagação, quero abordar dois assuntos correlatos. Primeiro - mostrar como a Edição Standard Inglesa tornou-se referência para muitas outras, inclusive para a versão brasileira feita pela editora Imago. Para escrever sobre esse assunto recorri ao ótimo livro de Pedro Heliodoro Tavares (2011), Versões de Freud: breve panorama crítico das traduções de sua obra. Segundo - ressaltar o trabalho corajoso e inovador da psicanalista e tradutora Marilene Carone, que tendo feito uma crítica rigorosa da Edição Standard brasileira, abriu caminho para que novas traduções de Freud pudessem ser realizadas no Brasil.

 

A Edição Standard inglesa e sua versão brasileira

Mesmo os mais ferrenhos críticos da tradução de Strachey reconhecem sua enorme importância para a história da Psicanálise. Tavares (2011) lembra a oportuna comparação feita pelos tradutores franceses de Freud, Cotet, Laplanche e Bourguignon entre a Edição Standard inglesa e a Vulgata de São Jeronimo. Esta era uma compilação e versão dos textos bíblicos para o latim, idioma dos romanos, e serviu, como nenhuma outra, para difundir o cristianismo. Tavares comenta:

Assim como o cristão tem seu vocabulário tão impregnado pelo latim de Jerônimo, muito mais que pelo hebraico, aramaico e pelo grego koiné dos originais bíblicos, também as primeiras gerações de freudianos seguiram o vocabulário e estilo germânicos de Freud por intermédio do vocabulário e do estilo ingleses de Jones e Strachey. (Tavares, 2011, p. 42)

E Tavares prossegue:

Esta versão por muito tempo valeu como original com um argumento bastante forte: Strachey não fora um "santo-tradutor" mas, numa abnegação quase beneditina, traduzira muitos dos textos essenciais enquanto Freud era vivo e este último, grande conhecedor do idioma de Shakespeare, os teria lido e aprovado, fazendo-os assim bastante canônicos. (Tavares, 2011, p. 43)

De fato, nos árduos anos do pós-guerra, Strachey não somente procedeu uma revisão dos textos de Freud já existentes em língua inglesa, como também fez traduções inéditas e proveu todo esse material com ricas apresentações e notas explicativas. Quanto à Freud, sua correspondência com Jones testemunha o alto apreço que tinha pelo talento de Strachey; achava que suas traduções eram tão cuidadosas e fiéis que tornava dispensável a supervisão de Jones. Entretanto a opinião de Freud era um tanto quanto "suspeita", pois no afã de divulgar suas ideias, relevava eventuais críticas que tinha em relação à tradução de Strachey. E novamente cito Tavares:

Grande ironia: o mestre dos efeitos da palavra no psiquismo, tão rigoroso na atenção aos detalhes quanto ao quê e como algo é dito, nunca pareceu tão rigoroso quanto à preservação do rigor ou a fidelização conceitual das traduções de suas obras. (Tavares, 2011, p. 43)

No Brasil, as primeiras traduções das Obras Completas de Freud, foram feitas no final da década de 1950 pela editora Delta do Rio de Janeiro, a partir da edição espanhola de Lopez-Ballesteros. Entretanto, a tradução que realmente prevaleceu, foi a realizada pela editora Imago na década de 1970 a partir da Edição Standard inglesa. Logo tornou-se notório que a versão Standard brasileira era bastante precária: não só por reproduzir o viés acadêmico da edição inglesa que, nas palavras de Laplanche, trouxe um ressecamento de toda a vivacidade poética da linguagem freudiana, mas também por apresentar graves erros de tradução, na passagem do inglês para o português.

Entretanto, apesar de suas deficiências, é preciso reconhecer que a Edição Standard brasileira cumpriu a função de difundir o pensamento freudiano no Brasil, ainda que às vezes distorcido.

 

A crítica bem-humorada de Marilene Carone

Em 1985, Marilene Carone publicou três artigos memoráveis no Folhetim do Jornal Folha de São Paulo2 onde, além de fazer uma crítica contundente e bem fundamentada da Standard brasileira, nos alertou para as distorções do pensamento freudiano decorrentes da falta de uma boa tradução para o português.

Disse, por exemplo, que o conceito de insight não se encontrava no texto original de Freud, e que foi acrescentado na versão Standard Brasileira pelo tradutor. Isso equivaleria à dar um colorido kleiniano ao texto de Freud, ou nas suas palavras "transformar Freud num seguidor de seu discípulo" (Carone, 1987, p. 173).

Recomendo, ainda hoje, vivamente, os artigos de Carone, tanto pelo assunto, quanto pelo raciocínio brilhante da autora que é temperado com muito bom humor. Ao apontar erros crassos da Standard brasileira, cita que o título de um texto: Uber wilde Psychoanalyse (Wild Psychonalysis) foi traduzido por "Psicanálise silvestre" em lugar de selvagem. Ora a palavra wild em alemão, que é a mesma em inglês, pode significar tanto selvagem como silvestre, porém a escolha do tradutor é muito bizarra dentro do contexto. Assim Carone humoriza essa gafe dizendo que seria o equivalente a traduzir a expressão "capitalismo selvagem" de Karl Marx por "capitalismo silvestre" e acrescenta: qual sociólogo aceitaria isso?

Também ela fez uma valiosa contribuição para a literatura psicanalítica brasileira ao traduzir: "A negação", "Conferências Introdutórias à Psicanálise" e "Luto e melancolia".3 Infelizmente Marilene Carone teve morte prematura em 1987, o que interrompeu seu profícuo trabalho.

Entretanto seu empenho frutificou. Nos anos seguintes ocorreram animados debates em torno das diretrizes que deveriam nortear as futuras traduções de Freud. Deles participaram psicanalistas, germanistas, filósofos e outros profissionais. Não pretendo aqui citar nomes, pois tantos foram os que se interessaram e contribuíram para a discussão que eu poderia cometer alguma omissão. Mas quero destacar o psicanalista Luís Carlos Menezes, que se tornou um engajado militante da causa. Dessa forma, na sbpsp, durante a gestão de Nosek (1992 a 1995), Menezes que fazia parte da diretoria, obteve autorização junto à Editora Imago para que Paulo César de Souza realizasse algumas traduções de Freud em caráter experimental, as quais foram publicadas no Jornal de Psicanálise.

Espero ter transmitido para o leitor o clima entusiasmado de uma época, o anseio não só de psicanalistas de diferentes instituições e regiões, mas de toda uma comunidade de leitores de Freud por uma boa tradução. A psicanálise havia se expandido, dos institutos psicanalíticos para as universidades e para a cultura em geral. Sem este anseio e apoio, certamente Hanns, Souza e Zwick, para além dos esforços individuais, não teriam levado adiante a empreitada de traduzir Freud.

Após essas considerações, quero voltar à indagação inicial que deixei em aberto e que motivou esse artigo: o apego de muitos leitores à Edição Standard brasileira.

Parece-me que há duas repostas possíveis: uma de caráter mais abrangente e outra mais específica. A primeira aponta para a desvalorização do trabalho do tradutor e, para discorrer sobre isso, vou me valer do excelente livro de Lia Wyler (2003) Línguas poetas e bacharéis: uma crônica da tradução no Brasil. Já a segunda remete para o interesse do leitor e a importância que atribui para o estudo de Freud atualmente.

 

A "invisibilidade" do tradutor

Mesmo que a gente goste de negar: a profissão do tradutor é a mais antiga do mundo. Porque embora no início estivesse o Verbo, ninguém o entendia. E até hoje o entendemos de um modo tão imperfeito que a tradução e a interpretação nunca terão fim. Mesmo que na pirâmide dos ofícios o tradutor ocupe economicamente um patamar bastante baixo, a sua importância para a história da cultura o coloca bem no alto. (Willemsen, 2010, p. 41)

No Brasil, segundo Lia Wyler (2003), 80% dos livros de prosa, poesia, referência, manuais e catálogos são traduzidos, enquanto que na Inglaterra e Estados Unidos traduções de livros estrangeiros não ultrapassam a margem de 3,5% do mercado editorial. O expressivo percentual de 80% revela quão importante é o tradutor em nosso país, que verte para o português não somente livros, mas um amplo repertório de informações de países mais desenvolvidos que vão abastecer vários setores da vida nacional e, especialmente, a produção, reprodução e transmissão do conhecimento.

Apesar dessa realidade, o tradutor e seu trabalho permanecem desconhecidos do grande público. Mesmo pessoas de nível cultural mais elevado mostram não dar muita importância ao tradutor. Quando vão assistir a um concerto, por exemplo, logo perguntam pelos intérpretes e regente, porque sabem a enorme diferença que faz ouvir uma sinfonia ser tocada por uma boa orquestra ou por outra de menor expressão, entretanto quando vão comprar um livro de um grande escritor estrangeiro, dificilmente se interessam pelo tradutor.

Lia Wyler cita em seu livro, vários fatores que contribuem para a invisibilidade do tradutor. Vou mencionar alguns deles. O primeiro se refere a própria natureza do seu ofício; é lugar-comum dizer que a fluência é uma característica da boa tradução, portanto o tradutor só é percebido quando o texto está truncado ou não é compreensível, paradoxalmente quanto melhor o seu trabalho, menos ele é notado. Um segundo fator seria o pouco destaque que a imprensa e até mesmo os editores dão para o tradutor. No que se refere à imprensa diz ela:

Elogiam o estilo do autor, a prosa enxuta, deliciosa, sem jamais mencionar o tradutor brasileiro que manteve a narrativa enxuta, deliciosa, levando o leitor a concluir, inconscientemente, que todas as qualidades mencionadas saíram diretamente da pena do autor estrangeiro... em português. (Wyler, 2003, p. 28)

Assim, todo mérito de uma obra é atribuído quase exclusivamente ao autor, ficando o tradutor relegado ao limbo do esquecimento.

Apesar dessa pouca valorização, que é expressa também pelo fato dessa profissão nem sequer ser regulamentada oficialmente, apenas no caso dos tradutores juramentados houve avanços. Atualmente os suplementos culturais dos grandes jornais e algumas revistas já estão dando destaque ao trabalho dos tradutores das obras por eles resenhadas. E algumas editoras, em publicações de obras clássicas da literatura, chegam até mesmo a fazer uma pequena biografia do tradutor como sinal de reconhecimento de seu trabalho.

 

O leitor e Freud

O segundo motivo para o interesse "comedido" dos leitores em relação às novas traduções brasileiras parece ser uma cautela frente à atualidade efetiva da obra freudiana.

Depois de um período inicial em que Freud era a autoridade inconteste nos assuntos psicanalíticos, a Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo passou a se orientar, na década de 1960, pela escola inglesa de Melanie Klein, no que não se distinguia das demais sociedades latino-americanas. A partir de 1970 ocorreu uma nova virada, incentivada pelas duas visitas de Bion ao Brasil. Seu pensamento, uma vertente da escola kleiniana, passou então a predominar na Sociedade.

O entusiasmo pelas ideias de Klein, e depois de Bion, levou na década de 1970 a um descuido curricular no estudo mais dedicado e consistente de Freud, relatou Maria Olympia França (2012) em artigo do livro Dimensões. Entretanto, apesar das falhas curriculares, alguns psicanalistas estudaram profundamente a obra freudiana.

No final da década de 1980 ocorreu um reavivamento mais generalizado do interesse pela obra de Freud. Luís Carlos Menezes e Sandra Schaffa (2012) relatam no mesmo livro Dimensões o que motivou essa mudança. Citam Antonio Carlos Eva que, durante um debate, assim se expressou:

Como ele (Bion) não deu conta do que a gente quer, que é conhecer o inconsciente, saber como a gente funciona, nós estamos, eu tenho a impressão, voltando a Freud, porque Freud talvez tenha respostas, talvez a gente tenha passado por Freud e não viu, então vamos voltar lá. (Eva, 1991, citado por Menezes e Schaffa, 2012, p. 49)

A fala de Eva prossegue no sentido da revalorização da teoria como alicerce da prática, o que ia em direção contrária ao pensamento de Bion de que a teoria seria uma decorrência da experiência clínica. E Menezes e Schaffa (2012) concluem:

Fica bastante claro que houve um período na Sociedade em que o estudo, a teoria em geral, toda reflexão mais concatenada, foram vistos como resistência, como defesa pela intectualização. (Menezes e Schaffa, 2012, p. 49)

Nos anos subsequentes houve uma reabilitação da importância do estudo Freud na Sociedade Brasileira de São Paulo, que resultou numa mudança curricular bastante expressiva em 1991.

Se Freud esteve durante algum tempo relegado a um segundo plano no Instituto, porque era considerado um teórico e não um clínico, hoje o estudo de sua obra voltou a ser central na formação dos novos psicanalistas. Certamente as novas traduções de Freud irão contribuir para uma melhor compreensão desse autor magistral.

 

As novas leituras de Freud

Não podemos chegar à gênese dos conceitos, se não chegarmos ao espiríto e ao estilo que norteavam o pensamento freudiano. Lemos Freud como uma obra que se constrói na carne da linguagem, e a linguagem usada por ele em seus escritos é a linguagem cotidiana coloquial, caminhando para a conceituação muitas vezes por sendas fantasiosas e oníricas. Mas ao chegar ao conceito, há algo na natureza do próprio conceito na qual se encontram uma hegemonia e unidades invioláveis. (Sonia Curvo de Azambuja, 2006, p. 111)

A palavra "standard" presente no título da versão inglesa de Freud remete a uma rigidez de interpretação do pensamento freudiano. Por acaso há uma tradução "padrão" de Shakespeare, Goethe, Platão ou de qualquer outro grande escritor ou pensador? Certamente não, pelo menos nunca ouvi falar. Strachey, sob a supervisão de Ernest Jones, fez uma tradução com um viés acadêmico, o que é compreensível nas circunstâncias de sua época. Mas isso não autoriza que suas escolhas sejam sacramentadas como padrões imutáveis.

Entretanto, até recentemente, em virtude das cláusulas legais relativas aos direitos autorais, ficamos presos à Edição Standard brasileira. Assim, foi por seu intermédio que o pensamento de Freud foi apresentado a gerações de psicólogos, médicos, e estudiosos em geral. Contudo, os próprios avanços no estudo da Psicanálise, as comparações com traduções feitas em idioma estrangeiro e a divulgação das críticas de Bruno Bettelheim (1983/1994) e de outros quanto à versão Standard inglesa, somadas ao trabalho crítico de Carone, tornaram evidente que a tradução da editora Imago teria que ser substituída.

A propósito, inspirada no bom humor de Marilene Carone, quero fazer aqui uma ousada analogia. Refiro-me ao "mito científico" do parricídio e canibalismo aventado por Freud em "Totem e tabu" (1913/2013). No Brasil, a Editora Imago detinha os direitos de publicação das obras de Freud até 2009, o que corresponderia ao pai tirânico. Os filhos, leitores de Freud, insatisfeitos aguardavam o fim das restrições legais para usufruir da liberdade de se "banquetear legitimamente, como filhos vorazes, do espólio do corpus do pai da psicanálise" (Bastos e Beividas, 2003). Os filhos canibais, apesar do acontecido, ainda tinham um apreço pelo pai e por isso assumiram o compromisso de respeitar sua memória. Também os filhos da Standard brasileira, que haviam devorado criticamente aquela edição, permaneceram apegados a ela. Combinaram, então, que daí em diante ninguém se apossaria da obra de Freud e faria a verdadeira e definitiva (padronizada) tradução dela!

Hoje temos o privilégio de contar com algumas boas traduções de Freud e certamente novas virão! Os tradutores estão cumprindo sua tarefa. Agora cabe a nós leitores cumprir a nossa. Quero terminar endossando as seguintes palavras de Menezes:

Mas nossas leituras de Freud não têm nenhum interesse se forem enfadonhas, rituais, é preciso que sejam elas próprias traduções, mesmo de um texto traduzido, para que interpelem e avivem o pensamento clínico do analista sem o que seriam apenas perda de tempo para psicanalistas, ainda que "em formação". (Menezes, 2003, p. 431)

 

Referências

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Bastos, A. e Beibidas, W. (2003). Freud: dos salões para as salas de aula. In Blickwechsel - Atas do XII Congresso latino-americano de germanística. (pp. 439- 444). São Paulo: EDUSP.         [ Links ]

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Carone, M. (1987). Freud em português: uma tradução selvagem. Freud em português: tradição e tradução. Freud em português: ideologia de uma tradução. In P. C. Souza (org.), Sigmund Freud e o gabinete do Dr. Lacan. São Paulo: Brasiliense. (Trabalho original publicado no Folhetim do Jornal Folha de São Paulo em 1985)         [ Links ]

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Freud, S. (2013). Totem e Tabu. In S. Freud, Obras Completas de Sigmund Freud. (P.C. Souza, trad., Vol. 11, pp. 13-243)São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1913)         [ Links ]

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Wyler, L. (2003). Línguas, poetas e bacharéis - uma crônica da tradução no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco.         [ Links ]

 

 

Recebido em 4/11/2012
Aceito em 19/12/2012

 

 

Mariangela O. Kamnitzer Bracco. Al. Rio Negro 911, cjto 610, Alphaville 06474-160 Barueri, SP. Tel: 11 4193-5846. mkb@bracco.com.br
1 Ao longo do artigo, a título de simplificação, nomeio The Standard edition of the complete psychological works of Sigmund Freud como Edição Standard inglesa e a Edição standard brasileira das obras psicológicas de Sigmund Freud como a Edição Standard brasileira.
2 Esses artigos foram reunidos e publicados em 1987 no livro Sigmund Freud e o gabinete do Dr. Lacan, organizado por Paulo César de Souza.
3 O texto de Freud, "A negação", traduzido por Carone, foi publicado na revista Discurso (n. 15) do Departamento de Filosofia da USP em 1983. Já a tradução de "Luto e melancolia" foi publicada pela Cosac Naify em 2012.