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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.45 no.83 São Paulo dic. 2012

 

APREENSÕES

 

Toques de mestre

 

Master touches

 

Toques de maestro

 

 

Maria Regina Henrique Branco Volpe

Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP. Mestre em psicologia clínica (PUC-SP)

 

 


RESUMO

Trata-se da apresentação e narrativa de acontecimentos, de eventos e de pessoas com quem aprendi a escutar, acolher, interpretar e ser psicanalista.

Palavras-chave: escuta, acolhimento, interpretação, ser psicanalista


ABSTRACT

In this article the author presents events, facts and people with whom she has learned to listen, to accept, to interpret and to be a psychoanalyst.

Keywords: listening, reception, interpretation, being a psychoanalyst


RESUMEN

Se trata de la presentación y relato de acontecimientos, hechos y personas con quien aprendí a escuchar, acoger, interpretar y ser psicoanalista.

Palabras clave: escucha, acogida, interpretación, ser psicoanalista


 

 

Seu apelido era Nézinha, seu nome Maria Genésia de Ávila, professora de português da segunda série do Ginásio. Mulher jovem, de um olhar negro profundo e tênue sorriso. Fui me desabafar com ela. Achava que minha mãe não ligava para mim. Ela me fez algumas perguntas e eu lhe contei que minha mãe tinha muitos filhos que estudavam aqui em São Paulo e que meu pai, por depressão, havia voltado para a cidade do Interior onde moravam antes. Lá ainda mantinham um sítio com pomar e, assim, periodicamente ele enviava frutas via Correio. Meu pai vinha a São Paulo de vez em quando. "E penso muito nele", concluí.

Após esse relato, a professora disse: "nossa, que mulher bonita e forte que é sua mãe! Deve ter muitas saudades de seu pai, é muito corajosa ao cuidar dos filhos que aqui precisaram ficar! Acho que ela gosta muito de você, sim! Só que não tem tanto tempo para dedicar a você. E seu pai também foi forte vendo que, se continuasse na cidade grande, ia ficar mais doente ainda! Por isso voltou, para não piorar as coisas!" A menina nunca tinha pensado nisso. Dessa forma.

O sentimento de acolhida de uma mulher que embora não sendo casada nem mãe consegue intuir e acolher a dor, a fadiga e a solidão de outra mulher, casada, cansada, saudosa e mãe. Ao acolher tudo isso em si própria, sem medo das turbulências que ocorrem ao ampliar a alma e vivenciar sentimentos alheios, ela pode falar de outra mãe para a aluna-filha que a procurara.

A menina se sente outra. Volta para casa, que é outra casa. Volta para sua mãe, que é outra mãe... corajosa, forte, terna e boa. Ela mesma percebendose uma menina maior e mais valorizada... De outra família... De uma família de pessoas mais fortes.

Eu tinha 12 anos de idade, então. Começara a conhecer a importância de ser ouvida-compreendida-mudada... Sem saber o valor da "escuta analítica", seus efeitos terapêuticos e os novos horizontes daí decorrentes! Comecei a dizer a todos que um dia faria Psicologia ou seria "ouvidora de crianças", por conta da experiência vivida com a professora Nézinha.

Muitos e muitos anos mais tarde, ao fazer análise com Manoel Laureano de Castro, passei por um momento de vivência de uma clareza arrepiante, semelhante a esse de jovem.

Eu estava saindo de uma depressão graças à análise: minha irmã mais velha que me ajudara muito nos estudos estava muito doente. Manoel havia me ajudado bastante na superação dessa depressão. Eu havia finalmente conseguido dar um curso fora de São Paulo, supervisões, uma entrevista ao jornal dessa cidade sobre o atendimento de crianças e adolescentes. Tanto a entrevista como minha foto haviam saído no jornal. Contente e extremamente grata ao analista, contei-lhe tudo isso e quis mostrar-lhe o jornal. Ele me respondeu que não precisava nem queria ver o jornal, pois não tinha o mesmo interesse que eu pela reportagem.

Chorando muito, levantei-me do divã e impedindo-me de sair disse-me: "Maria, eu me interesso por você e por nosso trabalho! Mas você não precisa me trazer uma provação com seus resultados no jornal nem sua retribuição para comigo! Acredito na sua gratidão mas o jornal é seu, o mérito é seu, a vida é sua! Não é minha nem de sua irmã que também te favoreceu!" Fiquei zonza! Nunca mais me esqueci dessa vivência psicanalítica de fato sofrida mas que, depois, trouxe-me muita leveza no caminhar desse campo.

Bem, voltemos aos tempos... do assim chamado Colegial: tive um grupo de música e de violão. Tínhamos a mania de fazer e de ler poemas, de estudar as letras da MPB, Chico Buarque, Caetano, Vinícius, entre outros... Eles me ajudaram a iniciar o gosto pela interpretação dos textos e da música propriamente dita. Eram tempos nos quais, mais do que em outros, precisávamos apreender, ler e vibrar nas entrelinhas, nos recônditos do texto, para além da linguagem. O sentimento de cada sílaba, tom, som e nota: "Cálice!"

Outro elemento de ajuda foi a participação nos grupos da Ação Católica: JEC (Juventude Estudantil Católica) e JUC (Juventude Universitária Católica). Nesses movimentos, seríamos responsáveis por descobrir e perceber os líderes dos grupos, os mais sensíveis e "nucleá-los". Isto é, motivá-los e orientar essa sensibilidade para coisas importantes da vida, a saber: o bem comum, o conhecimento e desejo de transformação dos problemas sociais circundantes, o amor a Deus...

Mais tarde, na análise didática com Fábio Herrmann, lembrei-me um dia da expressão "nuclear". Ele a conhecia muito bem. Era exatamente do seu tempo. De JUC. Deu muita risada, pois me disse que nunca mais ouvira tal expressão, que não sabia de onde eu a "desencavara". E daí, como dizia ele, "deixou surgir e levou em consideração!" Disso pudemos desencavar outras vivências escondidas no baú de minha onipotência e de minhas certezas. E, sem a necessidade de "salvar o mundo", pude sair mais leve para a vida. Também analisamos como esses movimentos (JEC, JUC) me ajudaram a desenvolver a atenção a diferentes características de uma pessoa, à importância do respeito aos compassos de espera, de ouvir e deixar o outro falar..."Eu sou eu e muitos", como diz Guimarães Rosa, em Grande sertão: veredas.

Bem, continuando a falar de coisas que me ajudaram a aprender Psicanálise, ainda no final do Colegial pensei em ser freira. Fui. Entrei para uma congregação onde fiz 5 anos de estudos teológicos. Entrei com 17 anos. Minha inquieta alma me levou a sair aos 23. Foram anos muito importantes de muito saber, sabor e crescimento. Além de aprender a meditar, a escutar minha reserva interior e a do outro, aprendi um pouco de Filosofia, Teologia e Pedagogia...As noviças deveriam estar preparadas para as futuras tarefas educacionais, diziase. Nesse período, eu tinha muito tempo para o estudo e a leitura. Luís Carlos Menezes e Sonia Azambuja, em suas supervisões anos mais tarde, trouxeram ajustes e afinações na escuta dessa reserva interior.

Eu continuava com o desejo de cursar Psicologia; já lia um pouco de Freud. Com Françoise Dolto aprendi a ler e a amar os Evangelhos e seu Autor, com mais um olhar, um olhar profundamente psicanalítico.

Ao sair da Congregação, fiz Psicologia no Sedes Sapientiae. Na mesma instituição cursei especialização em Psicanálise com Crianças e Adolescentes. Fiz o curso de Psicodrama, depois tornei-me professora e supervisora do Depto. de Psicodrama do Instituto Sedes Sapientiae... Tornei-me Mestre em Psicologia Clínica pela puc-sp. No entanto, devo dizer que aprendi a fazer psicanálise com vários e diferentes mestres nos inúmeros campos do meu viver, onde me coloquei como ouvinte-aprendiz. Desses diferentes mestres, cito apenas alguns.

Com as crianças, que trabalhei em grupo, aprendi que a pulsão de cada púbere quer ser encontrada e nomeada. Assim, por exemplo, nas brincadeiras de Gato Mia, esses púberes miavam muito alto para serem tocados e encontrados pelo colega que estava com a venda nos olhos. Era parte da regra não interromper o jogo, antes que o último dos colegas fosse encontrado. Assim, todos eram tocados. Só depois havia o revezamento de papéis e todos desejavam e ficavam atentos na hora do compartilhamento das experiências. Falávamos da força da sexualidade, da vida ali presente.

Também com meus filhos quando tinham 3, 4 anos de idade, aprendi que ao deitar era preciso que eles escutassem a mesma história, do mesmo jeito, igualzinha, todas as noites. As angústias que cada história levava implícita são as próprias da criança. Estas necessitam serem ouvidas devagar, repetidas vezes, ao lado do adulto que as narra e as sustenta. Assim, as crianças se encontram com seus próprios medos, devolvidos à sua intimidade, podendo deles se apossar, como algo inerente ao ser humano.

Aprendi a esperança no exercício da psicanálise com Joreny Nasser Kedhy, Diretora de um colégio onde trabalhei. Essa profissional, grande amiga, priorizava a atenção e o cuidado dedicado a cada aluno com qualquer dificuldade ou necessidade especial...Ela sempre dizia que algo iria brotar e nascer a partir do trabalho com essas dificuldades. Ficava estampada em seu rosto a alegria de ver o empenho e desenvolvimento de cada um, aluno e professor. Quando nada acontecia, quando nada parecia acontecer, dizia: "esse é o aprendizado! Aceitar o não acontecido ainda!"

Quero falar ainda o que aprendi com o Manu. Um barqueiro que me levava pelas águas do Rio Araguaia, de São Felix a Santa Terezinha, ao longo da Ilha do Bananal. Em Santa Terezinha, quase na divisa com o Pará, durante 20 anos, atendi uma equipe do bispo Pedro Casaldáliga. Nesse trajeto de "voadeira" (canoa com motor) que durava 4, 5 horas, dependendo dos bancos de areia, do tamanho e profundidade do rio, Manu dizia: "é preciso ir devagar, lendo as águas, de perto e de longe!" Referia-se às variações, às turbulências do rio, ao "banzeiro" (ondas tumultuadas debaixo da superfície), às redes dos Karaja amarradas e atravessadas ao longo do rio, à presença de jacarés e, ainda, às tempestades que poderiam sobrevir no caminho.

Com Pedro Casaldáliga também aprendi psicanálise. Aprendi a entrar com delicadeza na interioridade do outro. O modo de se vestir, ouvir e falar com seu povo revelaram-me seu profundo respeito para os que não tem vez, voz, nem lugar. Também vi nele a força e tenacidade na busca de uma vida digna para todos, sua coragem em romper os campos que se opõem a isso.

Com Fábio Herrmann, aprendi a não rotular..., não me assustar com os surtos, regressões ou confusões do ser humano, pois como já avisara Klein, mudamos de humor, da posição esquizoparanoide à depressiva, várias vezes ao dia. Faz parte! Com ele, aprendi a escutar e a respeitar todos e, principalmente, os que têm pavor da angústia e medo da loucura. O único perigo é que estes, em geral, das angústias, só sabem a teoria! Também faz parte.

Continuo aprendendo minha profissão, no dia-a-dia, apreendo novos significados, desapreendendo outros, atenta à "leitura das águas", como dizia Manu, que rolam dentro e fora dos rios da nossa psique.

 

 

Recebido em 5/11/2012
Aceito em 12/12/2012

 

 

Maria Regina Henrique Branco Volpe. Rua Antero Mendes Leite, 155, Paraíso 04108-020 São Paulo, SP. Tels: 11 5571-6574 | 98571-4511. mariareginavolpe@hotmail.com