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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.46 no.84 São Paulo jun. 2013

 

Carta-convite - formação: entre o público e o privado

 

 

Marina Massi; Abigail Betbedé; Alexandre Socha; Any Trajber Waisbich; Cinthia Maria Arcuri Jank; Dora Tognolli; Gustavo Gil Alarcão; Heloisa Helena Sitrângulo Ditolvo; Maria do Carmo Meirelles Davids do Amaral; Suzana Kiefer Kruchin

 

 

Nada mais importante para chamar a atenção sobre uma verdade do
que exagerá-la. Mas também, nada mais perigoso, porque um dia vem a
reação indispensável e a relega injustamente para a categoria do erro, até
que se efetue a operação difícil de chegar a um ponto de vista objetivo,
sem desfigurá-la de um lado nem de outro.
(Antonio Candido, 2006, p. 13)

 

Com o tema "Formação: entre o público e o privado" a equipe editorial do Jornal de Psicanálise dá início aos trabalhos da nova gestão. A escolha do tema tem como ensejo voltar nossa escuta, foco e reflexão para as questões relativas à formação psicanalítica nas instituições.

Partimos do interessante trabalho de Marcio de Freitas Giovannetti, "Sobre a natureza e função do currículo na formação analítica", no qual o autor re-situa o currículo da formação psicanalítica em seu contexto originário (seguindo Freud em "A questão da análise leiga"), como um espaço fronteiriço e dialógico com as humanidades. No artigo, Giovannetti nos alerta para o fato de que o tripé básico da formação se compõe de duas partes privadas - análise de formação e supervisão - e uma pública - os seminários teóricos e clínicos. Assim, diz o autor:

E é justamente essa coexistência entre privado e público que dá o tom especial e único da formação do psicanalista, definindo de algum modo o lugar do psicanalista como este topos outopos1, um lugar terceiro, por assim dizer, um lugar instável, uma "terceira margem do rio"2. Se a análise e a supervisão são um lugar das transferências elas podem muito bem servir como facilitadoras das estabilizações transferenciais dentro das instituições; os seminários clínicos e teóricos, por se situarem no registro da pólis e não do oikos,3 carregam em si o potencial interpretante daquelas cristalizações transferenciais inevitáveis em toda análise e em toda supervisão. Pois mais do que as diversas correntes teóricas são esses restos transferenciais que, sombreando melancolicamente cada analista dentro de sua instituição, são os responsáveis maiores pelas criações de subgrupos totêmicos dentro dela. (Giovannetti, 2010, p. 182)

Na tentativa de articular os espaços público e privado que caracterizam nossas instituições, vários questionamentos e reflexões emergem sobre a formação e sobre a inserção de cada novo membro dentro do tecido institucional: Quais seriam nossos pontos fortes - os que promovem movimento de escuta do material psíquico, no sentido ético, do paciente e dos analistas; e nossos pontos fracos - os que paralisam, enrijecem, tocam a utopia nefasta da verdade última, própria das religiões e não da psicanálise? A nossa tradição e história nos permitem viver a passagem do tempo, ou propõe uma nostalgia de um passado que fecha a escuta para o novo e sua força disruptiva? Como podemos pensar a possibilidade de diálogo produtivo numa sociedade diversificada que abriga simultaneamente várias tendências da psicanálise contemporânea? Haveria como se contrapor à aparente prevalência do privado que incide indiretamente sobre o público, como bem apontado por Giovannetti?

São questões que circunscrevem o modo como ocupamos os espaços institucionais, em suas dimensões pública e privada. A expressão alemã Besetzung - ora traduzida como catexia, ora como investimento - vem também ao encontro da discussão. Derivada do verbo besetzen, pode também ser traduzida como ocupação (Hanns, p. 89), termo que em nossas considerações presentes nos remete ao seu inerente sentido político: aponta para a apropriação e o preenchimento dinâmico de um espaço, que já existe previamente à chegada de cada um de nós, mas que se transforma na medida em que o investimos libidinalmente (ocupamos) e nele encontramos, assim, as marcas de nossa presença. Tendo em vista as particularidades de uma instituição psicanalítica, marcada por uma grande rede transferencial na qual estamos todos também envolvidos, um dos riscos que corremos é o da cristalização de espaços de silêncio, espaços apolíticos, onde predominariam os restos não elaborados e que devem ser mantidos sagrados, intocáveis.

O vir-a-ser analista é inseparável do interesse e apreensão dos próprios movimentos psíquicos, assim como do Outro dentro de nós mesmos. A constante tensão entre a esfera pública e a privada está presente nos institutos de formação, que têm a difícil função de acolher e promover o desenvolvimento a partir da intersecção entre esses polos opostos. Pede-se que o membro filiado mergulhe em sua análise, supervisão, repense a sua clínica; e ao mesmo tempo produza, escreva, publique, se apresente, transforme a sua intimidade e subjetividade em algo público, aprendendo a transitar e a ocupar espaços simultâneos e de lógicas contrárias. Os seminários teóricos, clínicos e as atividades científico-culturais, ou seja, a circulação de ideias e o contato entre os membros, desempenham um papel tão relevante na constituição da formação analítica quanto o da experiência íntima da análise e da supervisão. Sabemos que a integridade da formação não permite adotar nenhuma dessas visões dissociadas, e que só podemos compreendê-la a partir da relação dialética que se estabelece entre o público e o privado. Afinal, cada analista vive ao seu modo as experiências institucionais e coletivas, da mesma forma que a instituição também se faz presente entre as quatro paredes dos consultórios de nossas análises e supervisões.

A nossa proposta é convidá-los a refletir e problematizar essa tensa e delicada relação entre público e privado em nossa formação e seus desdobramentos. Respeitando a tradição do Jornal no tratamento de assuntos referentes à vida institucional e de dar voz aos membros do Instituto e da Sociedade, a escolha do tema traz o investimento desta Equipe na ideia da escrita como depoimento e reflexão de uma experiência vivida. Assim, o convite é lançado a todos os membros, sem distinção. Desejamos que o Jornal possa ser ocupado (besetzung) e que se ofereça como um importante espaço entre o público e o privado na circulação de ideias e no arejamento institucional.

O prazo estabelecido para entrega dos trabalhos é 11 de junho de 2013. Lembramos que também serão aceitos artigos não-temáticos, e que todos os trabalhos enviados devem seguir a orientação editorial e normas para publicação que se encontram no final de cada número do Jornal.

Para finalizar, gostaríamos de agradecer a Eunice Nishikawa e sua equipe pela abertura e generosa transição para que pudéssemos assumir esta tarefa com tranquilidade e confiança.

 

Referências

Candido, A. (2006). Literatura e sociologia. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul.         [ Links ]

Giovannetti, M. de F. (2010). Sobre a natureza e função do currículo na formação analítica. Jornal de Psicanálise, 43(79),181-185.         [ Links ]

Hanns, L. A. (1996). Dicionário comentado do alemão de Freud. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

 

 

1 Topos outopos significa algo como fora do lugar.
2 Terceira margem do rio, usada aqui no sentido de um lugar intermediário, instável. Título de um conto de João Guimarães Rosa (1994).
3 Oikos em grego significa o espaço doméstico contrapondo-se à pólis, o espaço público.