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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.46 no.84 São Paulo jun. 2013

 

AULA INAUGURAL DO INSTITUTO DE PSICANÁLISE

 

Os desafios da clínica: um analista construindo seu itinerário*

 

Clinical challenges: an analyst building his pathway

 

Los desafíos de la clínica: un analista construyendo su itinerario

 

 

Myrna Pia Favilli

Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBSP

 

 


RESUMO

O texto organiza-se como testemunho da construção do itinerário psicanalítico de um analista. Expõe reflexões em torno dos desafios da clínica no mundo contemporâneo na perspectiva de uma visada epistemológica ao conjunto de conhecimentos aí exigido, e dos rumos para a formação psicanalítica. Trata de conceitos que orientam o analista na construção de seu pensamento clínico-teórico, desde Freud até os pensadores atuais e como se organizam para constituir uma ampla abordagem da Psicanálise e suas relações com a cultura.
Metaforiza uma das tradições que envolvem o casamento, a que diz respeito a certos objetos que a noiva deve levar consigo no momento do sim, como garantia de uma união feliz. É o símbolo desta magia que orienta a descrição do percurso de um analista pela Psicanálise no caminho da sedimentação de conhecimentos: algo antigo, algo novo, algo emprestado, algo azul.

Palavras chave: formação analítica, pensamento clínico-teórico, mundo contemporâneo


ABSTRACT

The text is organized as a testimonial of an analyst psychoanalytical itinerary construction. It reveals some reflections about contemporary clinic, using an epistemological approach to the knowledge therefor required and the direction of the psychoanalytical training. Describes concepts that guide the analyst's clinical-theoretical thought construction, from Freud to the present authors, and how they are organized to constitute a wide approach to psychoanalysis and its relations with culture. For this purpose, the author uses a wedding metaphor that tells about some objects the bride must carry with her at the moment of the marriage vows, to ensure a happy relationship. The symbol of this magic guides the description of an analyst course through psychoanalysis in his way to sediment knowledge: something old, something new, something borrowed, something blue.

Keywords: psychoanalytic training, clinical theoretical thinking, contemporary world


RESUMEN

El texto se organiza como testimonio de la construcción del itinerario psicoanalítico de un analista. Expone reflexiones sobre los desafíos de la clínica en el mundo contemporáneo desde una perspectiva epistemológica con respecto al conjunto de conocimientos requeridos y de los rumbos para la formación analítica. Analiza conceptos que orientan al analista en la construcción de su pensamiento teórico-clínico, desde Freud hasta los pensadores actuales, y como se organizan para constituir un amplio abordaje del psicoanálisis y sus relaciones con la cultura. Metaforiza una tradición relacionada al casamiento, aquella que menciona ciertos objetos que la novia debe llevar consigo en el momento de dar el sí, para garantizar una unión feliz. Es el símbolo de esa magia lo que orienta la descripción del recorrido de un analista por el psicoanálisis en el camino de la sedimentación de conocimientos: algo antiguo, algo nuevo, algo prestado, algo azul.

Palabras clave: formación psicoanalítica, pensamiento clínico-teórico, mundo contemporáneo


 

 

No momento em que comecei a refletir sobre o meu vínculo com a Psicanálise, com a clínica psicanalítica e pensando imediatamente na relação analítica ocorreu-me um dos vínculos mais fundamentais da existência humana, o casamento: a escolha de um destino, a dedicação a um propósito, a um desejo e o que a escolha de um trabalho, ou uma profissão, significam na história de uma vida.

Fazem parte do vínculo matrimonial as tradições que propiciam uma união feliz. Uma dessas tradições diz respeito a certos objetos que a noiva traz consigo no momento do sim. É o símbolo desta magia que atualizo na minha trajetória na Psicanálise: algo antigo, algo novo, algo emprestado, algo azul.

 

Algo antigo

A clínica psicanalítica envolve, em seu interior, duas vertentes: primeiro a formação analítica, segundo a formação pessoal.

Fiquei em dúvida por onde começar. Mas seguindo os caminhos mais fáceis e mais simples, como é de praxe querer resolver os problemas humanos, falemos um pouco de nossa formação específica. Como veremos a história irá se complicar espontaneamente. Todos nós, na busca de sermos analistas (curiosos da mente humana), nos deparamos com o saber da Psicanálise. Freud nos captura, desde o início, com sua intensa busca de sentido para as dificuldades que sua clínica e suas pacientes lhe apresentavam. Paulo Francis dizia que a ópera e o balé eram artes cujo brilho era devido à performance das mulheres (as divas, por sua excelência) que faziam de um momento específico, perdido para sempre, algo de essencialmente fundador de sentimentos instigantes que provocam, nesse momento, revelações estéticas nunca antes sentidas.

Na Psicanálise também. Alguém duvida do impacto das "Belles Hystériques" na obra de Freud? Estas mulheres adoeciam de paixão, paixão proibida, paixão edípica, tal como a quisermos chamar. Levantaram o problema do sintoma, da psique que se esconde por trás dos disfarces, da vida impedida de representação. Trago aqui Pirandello (1956) e seu Sei Personaggi in cerca d'Autore.

Para os que não se lembram da peça, Pirandello nos mostra, (dentro de sua trilogia do teatro no teatro) um ensaio teatral onde se encontram os funcionários do teatro, o diretor de cena, e os atores. Eles são interrompidos, bruscamente, pela aparição dos seis personagens (o pai, a mãe, o filho, a enteada, o rapazinho e a menina que desejam representar seu drama). Foram deixados à deriva pelo autor, e necessitam representar seu drama que pulsa e deve ser exposto. Chamaremos estes personagens e suas histórias como a cena pulsional, e chamaremos o diretor de cena e os atores de Ego, que para representá-los, devem configurar-se conforme as regras do teatro e fazer que esta representação seja palatável à plateia. Devem fazê-los entrar na ordem do simbólico.

Começa a ficar claro que a dupla convergência de tornar-se analista se mistura. A história pessoal, com seus desejos e sublimações, se imiscui na formação e busca parâmetros onde situar sua própria forma de pensar. Caso vocês se lembrem, na peça citada, os personagens querem fazer encenar seu drama, em última análise, o incesto, dentro da ficção permitida do teatro. Algo impossível. A tragédia explode e as crianças são sacrificadas. Tudo no palco. A atmosfera especial é retratada no jogo de luzes. Quando os personagens falam seu drama verdadeiro o palco escurece - na penumbra - e o spot especial reflete um clima onírico para revelar o desejo paterno, o desejo da filha, forças da pulsão que estão sempre prestes a se realizar.

Freud, a arte, uma coisa antiga própria a fazer junções na psique do analista, é isto que inicia uma clínica? Impossível generalizar. Cada analista deve procurar, dentro do si mesmo, qual força motora o leva a desencadear, dentro de si, o desvelamento dos mistérios humanos. A clínica se inicia assim, da antiguidade interna, mesmo que suas molduras sejam obscurecidas por aquilo que chamamos vida profissional. A formação se inicia no primeiro momento de um encontro especial para cada um. Algo antigo sempre está nas fímbrias da revelação.

A história continua. Continuamos em vivências passadas. Em Psicanálise, a histórias dos pioneiros. Em nossa história os conhecimentos adquiridos na sua pertinência epistemológica. As crianças nem sempre precisam ser sacrificadas. Como, por exemplo, desconhecer Melanie Klein e sua arrebatadora trajetória a partir da análise de crianças até as profundezas das tragédias primitivas? Melanie Klein se tornou bússola. A clínica se esclarece: quer as angústias revelem seu caráter persecutório, o ego suas defesas tão violentas quanto os ataques fantasiados e uma relação de objeto tão fusionada que a mais leve percepção de separação é vivida como catástrofe, quer as angústias depressivas anunciem a noção de perda, essa fantasia terrorífica que nos acompanha como se realmente fôssemos sucumbir por excesso de remorso e culpa que teriam inviabilizado a dualidade eterna. A clínica se esclarece.

A revelação edípica precoce, de uma angústia sem nome capaz de nos projetar num espaço cósmico frio, gelado pela exclusão total, através da fantasia da figura combinada marca um momento trágico do rompimento da onipotência da fantasia e do fantasiar: ou começamos a tentar pensar (mesmo que através de toscas equações simbólicas), ou estaremos condenados aos suplícios eternos por temor do conhecimento, aprisionados para sempre numa caverna cheia de tesouros, mas que impedirá daí por diante o nascimento para o social, ou seja, para o humano.

Elaborar a posição depressiva nada mais é do que pertencer ao humano. Ou parar no limiar, como dizem hoje os teóricos das organizações patológicas e todos que chamamos de borderline, pacientes limítrofes, pacientes de difícil acesso etc. Entre Freud, Klein, Bion, Winniccot e seguidores, muita coisa antiga, dos pioneiros que pensaram a psique humana, se mantém dentro dos analistas. Fazem parte da clínica no sentido de que é possível pensá-la como formação analítica. Apontaram o caminho. Me orientam quando o impacto do novo parece desconstruir a história analítica. São alicerces. Não oprimem se soubermos mantê-los como os antigos sábios que sempre sustentam as comunidades com suas colocações experientes. Fazem parte de uma revelação sobre a psique que organiza as origens de um saber, que sabemos não ter fim, justamente, porque as teorias inauguradas sobre a psique não esgotam seu próprio objeto.

O que fazer? Como tratar as teorias e sua coerência epistemológica? Quando escolhemos uma vertente teórica negamos as descobertas que o mesmo objeto, a psique, despertou em outros pensadores? E as evidências clínicas? (Os exemplos clínicos de Freud, Klein e suas crianças e todos os analisandos passados). Tocamos o mistério do saber. As teorias psicanalíticas alcançam suas formulações e suas generalizações conceituais. Temos estas bússolas a nos conduzir, a nos orientar. Muitos costumam esquecer as antigas dores que eles nomearam e fazem derivar implicações tão abstratas que poderíamos espremê-las, que não mais verteriam sangue. Para mim, fazem sentido os que ainda trazem este cheiro de carne e sangue, próprio do nascimento. São momentos privilegiados que nos iluminam na pesquisa dos processos mentais.

Acredito que nestes fatos antigos se vislumbra toda clínica. Eu os mantenho vivos, os meus pioneiros todos. Fazem parte dos meus ingredientes para pensar. Podem se ocultar, se transformar, sofrer alguns impactos, mas estão sempre à disposição para um esclarecimento clínico particular. Afinal, o ser humano, no seu diálogo específico consigo mesmo e com aquele analista particular, revive a cada momento em sua história transferencial, algo de velho, algo de novo, algo emprestado, algo triste.

Somos antigos: a história pessoal, a história da formação. O paciente viverá, no novo da transferência (este contato inaugurado na especificidade de sua análise), também o antigo sedimentado. Sem privilégios de um sobre o outro. O momento analítico que presencio transforma, mas não anula a história já vivida; o aqui e o agora psicanalítico possuem, como Janus, esta dupla face: olha o novo e o velho ao mesmo tempo. Em minha clínica, nem ignoro este vínculo atual e nem sou fanática na busca de uma "causa infantil". Minha experiência, há tempos, me revelou que somos ambos, paciente e analista, o precipitado do que nossa história nos permite ser naquele momento específico. Algo de antigo se revela sempre na atualidade de nossa relação.Podemos, como nossos ancestrais, honrar nossos Deuses Lares.

 

Algo novo

Penso naquelas teorias que se agregam à ossatura básica do corpo teórico e que incluem, no seu pensar a Psicanálise, uma gama conceitual de que também não poderia deixar de me apropriar para esclarecer melhor a compreensão da psique humana.

Chamo de algo novo aquele conceito que se insere a despeito de um certo desalojamento dos alicerces coerentes de uma determinada corrente de pensamento. Na nossa Sociedade localizo, por exemplo, as teorias de Isaías Melsohn, Fabio Herrmann e Armando Ferrari. Chamo de algo novo, por exemplo, os conceitos de Armando Ferrari sobre desenvolvimento psíquico: o conceito de objeto originário concreto (ooc), o conceito de adolescência como segundo desafio. Ferrari (1996) introduz uma inquietante e polêmica teoria sobre o desenvolvimento mental, com visíveis consequências na clínica. Partindo da análise de adolescentes, por exemplo, ele nos propõe, que a adolescência é um novo momento na história da estruturação mental. Para entender isso vale uma rápida visão sobre sua teoria do objeto originário concreto (ooc), exposta em seu livro O eclipse do corpo (1995).

A mente é chamada a funcionar pelas emanações corpóreas, físicas, sensoriais e emocionais, desde o nascimento. É através das vivências deste corpo inaugural que a vida mental se inicia para dar conta do caos do recém-nascido, facilitada pela função catalisadora materna. Aos poucos, o mental vai pondo o corpo em eclipse, sem que este nunca desapareça. Esta função materna primária, um conceito amplo de rêverie, estabelece um quadro mental onde o modelo corpo-mente cria uma relação intrapsíquica, vertical, em que se originam as indagações específicas daquele indivíduo, sua vertente de originalidade, pois emana daquele corpo particular. Ao lado desta vertente vertical, o espaço mental se completa com a coordenada horizontal, que diz respeito às relações com os objetos e o mundo exterior, simbolizado em seus primórdios, pela relação mãe-criança (boca-seio), onde a mãe inaugura a primeira relação com esse mundo exterior. Neste nível, a figura materna é o primeiro objeto da criança, tal como o definem as teorias das relações objetais. Chamo de coordenada interpsíquica.1

A teoria, pois, sugere uma vida mental não linear, um espaço onde as coordenadas inter e intrapsíquica vão ordenar as relações com o mundo e consigo mesmo num determinado ponto. Do relativo equilíbrio das duas vertentes teremos uma maior ou menor harmonia psíquica.

A teoria segue propondo, então, um novo nascimento na adolescência, através do aparecimento de um novo corpo que a mente, agora já existente, terá que rearranjar para lidar com as angústias emergentes ocasionadas pelas metamorfoses corporais a partir da puberdade. Esta tarefa, que no entender do autor, vai transformar a adolescência num segundo desafio, coloca a problemática nascente como causa de novas estruturações de defesas para fazer frente às novas angústias. Sem entrar especificamente na análise de adolescentes podemos dizer que nada mais resta ao adolescente senão enfrentar esses desafios. Negar-se a esta experiência será negar-se a enfrentar os grandes desafios do viver o que iria perturbar inevitavelmente toda vivência adulta, uma vez que as formas eficientes e originais da resolução dos conflitos não foram equacionadas pela dor da experiência. A vida adulta resultante desta negação nada terá a haver com a qualidade criativa da experiência que se fez saber. Alguns adultos se sentem totalmente desamparados, buscando, na análise, uma segunda chance de as experimentar.

Temos, portanto, um desafio a ser pensado. Se o desenvolvimento linear se rompe e se for possível aceitar, como hipótese, que esta teoria esclarece muitos quadros de pacientes fronteiriços, convém deixar existir, dentro de nós e ao lado do antigo, esse espaço do novo e mantê-lo nunca preenchido por completo?

Afinal, somos herdeiros e originais ao mesmo tempo. Podemos pensar a clínica nesta dicotomia?

 

Algo emprestado

Como vemos, nossa formação nos obriga a contatar vários tipos de pensamentos. É possível? Seremos execrados caso não sigamos as correntes como dogmas indiscutíveis? Será possível por entre parênteses a exigência de coerência própria de conhecimento sistemático e adentrarmos a clínica com empréstimos colhidos de diversas fontes de riquezas conceituais? Acredito que sim. Afinal, estamos falando de clínica. Estamos falando de relação analítica, estamos falando de dores e transtornos cuja problemática humana nos interroga a cada momento. Poderíamos dispensar, em nome de uma exigência epistemológica, essas contribuições originais que configuram mais nitidamente este vínculo tão precioso? Acredito que não. Buscar uma síntese seria, no meu entender, a tarefa sempre viva da Psicanálise.

Esta relação analítica é viva e acontece cotidianamente na nossa clínica. Criamos um espaço, um setting, mais ou menos estável e vivemos dentro dele um espaço transferencial único, capaz de criar uma história nova, capaz de criar o que chamamos a segunda chance.

O analista traz consigo sua formação e tudo que isso implica. Não pode evitar. Teorias, supervisões, vida científica, vida pessoal, tudo se acumula dentro dele como função e não pode mais ser detida. Enfim, o que viver dentro desse espaço especial? Minha experiência se cristaliza na possibilidade de emprestar-me às fantasias do paciente e tentar, com ele, um diálogo que seja ao mesmo tempo totalmente livre e totalmente compromissado. Afinal, as probabilidades de uma segunda chance vir a ser mais adequada dependem disso: de nossa originalidade pessoal e nossa formação analítica. Como lidar com isso?

Voltando ao jogo dos conceitos que me orientam posso postular, dentro da relação analítica, um lugar onde ocorre uma dupla cena:

a) uma relação horizontal, transferencial onde ocupo o lugar específico ditado pela fantasia do paciente. Desse lugar interpreto, emprestando a esse personagem projetado uma voz e uma palavra nova, sem necessidade, é claro, de desmascarar essa fantasia (por exemplo, você está me vendo como). Poderia dizer, por analogia, que assim como no teatro, é o mistério que acontece. A penumbra se instala e a representação contida passa a primeiro plano e a tragédia re-acontece. Mas vamos agora, tal como nas revelações subliminares, tentar que elas revertam em novas palavras, novas metáforas, novos brinquedos e buscar, com isso, que o diálogo estabelecido possa abrir uma brecha na solidez de uma imagem estagnada. Tarefa dura é verdade. Poderíamos passar horas falando nisso, aliás, o fazemos cotidianamente com nossos pacientes e entre nós mesmos. Falamos sempre desse lugar virtual que buscamos alcançar. A interpretação é a proposta de um novo re-arranjo que deve deslizar, dentro do diálogo, entre ambos os membros do par. É o passa-anel da transferência.

b) A segunda cena: uma relação do paciente consigo mesmo, espaço vertical intrasubjetivo onde minha presença assegura apenas o holding necessário para um mergulho dentro de si mesmo, o diálogo interior que não poderia acontecer se deixado à deriva, pelas angústias persecutórias envolvidas. É evidente, para mim, neste momento, que a busca do mental incluída no diálogo interno do analisando é de importância fundamental no sentido de uma finalização que vai poder resolver de um só golpe, o final de uma transferência e o término de uma análise, quando quer que ela aconteça.

Portanto, é da percepção desse ponto de intersecção entre a projeção feita pelo paciente na figura do analista e o seu diálogo intrapsíquico que o analista vai gestar a interpretação. Discernir qual o lugar que está ocupando na cena analítica será a tarefa fundamental: ora apenas um coadjuvante capaz de nomear ao paciente suas vivências que na turbulência emocional ele mesmo não pode alcançar; ora um co-protagonista, depositário e suporte das fantasias. Temos em mente traduzir ao paciente ora a natureza dos sentimentos e das emoções, ora privilegiar a relação de objeto que isso promove. Em ambos os casos, possibilitar serem pensadas.

Assim sendo, a contratransferência vai dizer respeito não apenas à captação das fantasias projetadas, mas também colocar em jogo a capacidade do analista em captar e conter a originalidade de cada mente específica. Trata-se, a meu ver, de respeito à condição humana que se caracteriza na relação analítica. Um encontro de si mesmo, dentro do espaço analítico, só vai acontecer se existir, dentro dele, o espaço de liberdade capaz de garantir as formas de funcionamento mental específicas.

Afinal, é esta assunção de suas formas de funcionamento mental que vai permanecer após as transformações vividas, quando da dissolução do vínculo transferencial. Também aqui, emprestamos por algum tempo as ferramentas para o pensar.

 

Algo azul (algo triste)

Dissolução de vínculos, término de análise, fantasias de perda, apenas tocamos estes assuntos. Chegou a hora. Uso o duplo sentido da palavra em inglês "blue" (azul-triste). A tristeza como sentimento integrador; nem perseguição nem melancolia. A clínica analítica se faz até a chegada da tristeza das despedidas.

O que isso significa? Caso a análise tenha podido acontecer, caso este vínculo tenha proporcionado a visão do avesso escondido nas costuras mal feitas da alma, vislumbramos que a fantasia vai se esmaecendo. Tal qual um objeto transicional este vínculo analítico, fantasia desde o início, vai se organizando em percepção real de duas pessoas que percorreram uma longa caminhada e que devem seguir em frente separadas. Ficção ou realidade? Pergunta o personagem diante do sacrifício das crianças. Infelizmente, no teatro, as cenas não passíveis de representação culminam com a morte das crianças, a enteada afastando-se horrorizada da cena que todos eles criaram, cruzando a plateia num riso desesperado enquanto a mãe, o pai e o filho permanecem estáticos no palco, fixados para sempre, num diálogo nunca mais possível. Realidade ou Ficção?, nos desafia Pirandello. Ambas ou nenhuma, diríamos nós analistas. Nossa projeção no mundo fará dele, sempre, algo único (o enigma das identificações projetivas). Qual objeto transicional, a relação vai ser esquecida. Nem guardada nem destruída. Ao cumprir seu caráter revelador o vínculo transferencial leva consigo não apenas as perdas necessárias das fantasias, mas a revelação mesma da função de fantasiar.

O desejo se revela na sua impossibilidade, e seguir em frente será o que realmente foi possível colher dessa experiência única de saber de si. Se o sorriso é triste, podemos esperar que ele se abra para a amplidão de um azul sereno. Se fôssemos poetas, ou se pudéssemos pedir emprestado à poesia a palavra certa teríamos a capacidade de exprimir o que aconteceu. Carlos Drummond de Andrade, na minha lembrança, nos diz: "o mais é barro sem esperança de escultura".

Estamos diferentes. Acredito realmente que todos nós, analistas que passamos e testemunhamos essa experiência, saberemos como exprimir esse momento de madureza. É o que queremos propor aos outros.

Qualquer que seja o momento moderno de sua existência, a experiência psicanalítica revela, no meu entender, o que de melhor pôde acontecer entre duas pessoas. Não é preciso temer nem se assustar por uma clínica contemporânea.

Contrapor ambos os termos cultura atual e Psicanálise como dois universais diferentes seria quase rogar uma maldição sobre nós, pois essa cultura contemporânea é a nossa, está aí, é a que vivemos hoje no nosso aqui e agora. Estamos dentro dela. É a de nossos filhos e netos e candidatos que deverão entendê-la e adequá-la àqueles valores que, esses sim, são universais na história da espécie humana e que a Psicanálise tem como meta construir a cada passo, em cada relação analítica - capacidade de pensar, capacidade de reparação, de sublimações e, fundamentalmente, como base e sustento disso tudo, a capacidade de gratidão. Melanie Klein nos fala do âmago de qualquer cultura e teremos que buscar, em cada paciente, qual dor que eles nos propõem nesses momentos atuais (penso nas crianças tarefeiras, nos adolescentes atordoados, nos jovens em luta pelas angústias do trabalho, nas mulheres em conflito pela dupla tarefa de profissionais e mães).

Marc Augé (1994), antropólogo, falando da sociedade supermoderna, define-a como de excessos: excesso de tempo, excesso de espaço, excesso de informações, excesso de individualidade (de opiniões), e monta o conceito de não-lugares, os espaços de trânsito, provisórios, não investidos afetivamente (aeroportos, hotéis, estações de trânsito) em contraposição aos lugares (casa, família, cidade) investidos emocionalmente com significados estruturantes. Diz que o que predomina na cultura contemporânea, cada vez mais, é viver-se nesse não-lugar, nesse espaço que, segundo ele, não cria identidade singular, nem relação, mas sim solidão e similitude. Enfim, finalizando a sua profunda observação, coloca como possível o podermos estudar e tentar entender esse paradoxo que chama de sociedade da solidão. É ela que invade nossa clínica através dos dramas específicos dos nossos pacientes.

Os tempos modernos sempre virão; devemos pensar nossa clínica dentro desse tempo atual e investigar as condições possíveis. Temos que continuar, em nossas análises, a tarefa de construção de pensamento levando em consideração este a mais de solidão que nos é proposto, esta falta de sentido dos não-lugares dos tempos atuais. Acredito que uma escuta aprimorada dos conteúdos de nossa cultura, impressos no mundo interno que abordamos, não visa apenas atropelar-nos ou destruir-nos. Quem sabe, nossos pacientes procurem ser ouvidos dentro desse clima que nos envolve a todos (rapidez, alívio de tensões) e que nós, privilegiadamente, podemos deter pelo curto espaço de tempo de uma sessão.

Se o trabalho analítico revela o desejo, a busca de sentido, o lugar onde ser e existir, este universal vai nos acompanhar quaisquer que sejam as configurações culturais existentes naquele momento dado. Tocamos assim a esfera do universal escrito na originalidade de cada um e na originalidade do momento cultural existente. Basta acolhê-lo como criatividade humana e observar as demandas que ocasiona. Sempre foi assim. Para uma determinada época, aquele momento sempre foi moderno e contemporâneo.

Falei de liberdade. Se pudermos exercê-la sem temor sempre haverá uma linguagem capaz de responder às demandas específicas que o caminho analítico levantou em sua estrada na modernidade. Buscar esse caminho (e falo agora aos analistas em formação) acarreta, perdoem-me o lugar comum, ir ao encontro do céu azul de um novo amanhã. Não se pode temer a cultura. Temos que buscar sua alma e nos fazer porta-voz das transformações específicas que ela propõe para a evolução humana. Buscar Eros e combater Tanatus será sempre o conflito analítico. É por isso que sempre poderemos analisar, pois o conhecimento que daí advém é precioso. Interpreto com toda a bagagem que me fez analista e que me fez o que sou. Interpreto com todos os momentos que marcaram meus sentimentos do mundo. Interpreto a partir do que sou, sempre na veracidade do meu trabalho, na aceitação da minha vida e no respeito à vida do meu paciente.

Obrigada a todos!

 

 

Referências

Auge, M. (1994). Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus.         [ Links ]

Ferrari, A. B. (1995). O eclipse do corpo: uma hipótese psicanalítica. (Marcella Mortara, trad.). Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Ferrari, A. B. (1996). Adolescência. O segundo desafio. (Marcella Mortara, trad.). Casa do Psicólogo: São Paulo.         [ Links ]

Pirandello, L. (1956). Sei personaggi in cerca d'autore. In Arnoldo Mondadori (Ed.), Maschere Nude. (Vol. 1, 4ª ed.). Milão: Mondadori.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 5/4/2013
Aceito em: 23/4/2013

 

 

Myrna Pia Favilli. Rua João Moura, 647 Conj. 41 | Pinheiros. 05412-011 São Paulo, SP. Tel: 11 3062-3603. myrnapf@superig.com.br
* Aula inaugural do Instituto de Psicanálise "Durval Marcondes" da SBPSP, em 25 de fevereiro de 2013. Este texto representa uma síntese de minhas ideias sobre a clínica psicanalítica e sua relação com a formação e a cultura, cujo eixo central foi apresentado em vários eventos da SBPSP e no painel Reflexões Psicanalíticas do xxi Congresso Brasileiro de Psicanálise, Porto Alegre, 2007.
1 Esta teoria sofre evoluções dentro da obra de Armando Ferrari, no que diz respeito à existência de dois objetos.