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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.46 no.84 São Paulo jun. 2013

 

FORMAÇÃO: ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO

 

Entre o público e o privado: o espaço intersticial

 

Among public and private: the interstitial space

 

Entre lo público y lo privado: el espacio intersticial

 

 

Vera Lucia Colussi Lamanno-Adamo

Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP e do GEP-Campinas

 

 


RESUMO

A autora tece breves considerações sobre o espaço intersticial nas instituições, espaço de sustentação entre o público e o privado. Fundamentada nas formulações de Roussillon (1988) e no conceito de interstício utilizado na arquitetura. Discute-se funções e formas do espaço intersticial na instituição psicanalítica.

Palavras-chave: instituição psicanalítica, público, privado, espaço intersticial


ABSTRACT

The author provides brief considerations about institutions interstitial space, as a space of maintenance among public and private ambits. Based on Roussillon formulations (1988) and on the concept of interstice used in architecture, functions and forms of the interstitial space in the psychoanalytical institution are discussed.

Keywords: psychoanalytical institution, private, public, interstitial space


RESUMEN

La autora hace breves consideraciones sobre el espacio intersticial en las instituciones, espacio de sustentación entre lo público y lo privado. Fundamentada en las formulaciones de Roussillon (1988) y en el concepto de intersticio utilizado en arquitectura, discute funciones y formas del espacio intersticial en la institución psicoanalítica.

Palabras clave: institución psicoanalítica, público, privado, espacio intersticial


 

 

Conceber psicanaliticamente a instituição psicanalítica consiste
em descobrir, no campo do trabalho psicanalítico, o que do
inconsciente e dos seus efeitos está ligado pelos analistas na
instituição que eles formam e em estabelecer os efeitos disso na
prática e na teoria.
(Kaës, 1988, p. 5)

Tomando como ponto de partida a formulação de Márcio Giovanetti (2010) sobre a formação analítica como sendo constituída da coexistência entre o privado (análise e supervisão) e o público (seminários teóricos e clínicos), vou tecer uma breve consideração sobre o espaço intersticial: espaço de sustentação entre essas duas estruturas contíguas.

Interstício em histologia refere-se a pequenas áreas, orifícios ou espaço existentes na estrutura de um órgão ou tecido orgânico. Na religião é o intervalo de tempo entre a recepção de uma ordem sacra e a seguinte. Interstício militar designa o tempo mínimo que um militar deve permanecer num posto ou graduação antes de ser promovido. Interstício trabalhista é o intervalo mínimo de descanso entre um turno de trabalho e outro. Em economia é o ramo que surge em função de uma inovação no mercado. No jurídico é o intervalo de tempo necessário entre atos do procedimento legislativo. Em linguagem arquitetônica significa o fundo sobre o qual os edifícios assentam.

Tal como nos tecidos orgânicos cujos arranjos celulares delineiam espaços intersticiais de várias formas e funções, também na instituição a organização das atividades oficiais em um determinado espaço-tempo dá origem a interstícios do mesmo tipo.

Roussillon (1988) considera o espaço intersticial nas instituições, definindo-o como sendo os lugares institucionais comuns a todos, lugares de passagem: corredores, cantina, secretaria, pátio, salas de descanso. Lugares de trânsito entre uma atividade e outra, lugares de encontro, mesmo que rápidos, lugares do momento de folga entre as atividades institucionais estruturadas. Pode também acontecer desses lugares se situarem extramuros, como por exemplo, o bar da esquina, o café, a padaria ao lado. Para este autor o espaço intersticial "assegura uma função de vínculo, estabelece pontes, conforta narcisicamente, permite arranjos contrafóbicos, evita um sentimento muito doloroso de solidão" (Roussilon, 1988, p. 144).

De acordo com Roussillon (1988) o espaço intersticial na instituição exerce diferentes funções: de retomada, de depósito, de cripta.

Na retomada o que é dito ou feito no interstício está em latência explícita de sentido, para ser retomado ulteriormente e integrado no espaço oficial. Enquanto no depósito o que é dito ou feito no interstício é reservado, a fim de ser conservado, congelado ou imobilizado. De acordo com o grau de angústia, o interstício pode ser, então, o lugar de segredo ou do enquistamento. Quando o espaço intersticial funciona como cripta, isso supõe uma clivagem, o que é dito ou feito é encriptado, posto de lado, sem possibilidade de retomada, forçado a residir no interstício e proibido de aparecer no espaço oficial.

O espaço intersticial sustenta e trata aquilo que não pode ainda se oficializar na estrutura institucional, aquilo que não pode ainda fazer-se reconhecer. Aquilo que não pode ainda encontrar forma grupal ou individual aceitável, mas que deve ser protegido para não ser destruído ou enquistado, passa a ser suficientemente expresso no espaço intersticial até poder adentrar a estrutura oficial.

Na formação analítica, aquilo que não pode ser tratado e contido nem no público e nem no privado (nem na análise e supervisão, nem nos seminários clínicos e teóricos), aquilo que não pode ser elaborado alhures na vida institucional irá "pipocar" no espaço intersticial. Restos transferenciais, desacordos com os ideais vigentes, rivalidades interindividuais e intergrupais, angústias paranoides ou esquizoides transbordantes, surgem, tomam forma e amplitude, no espaço intersticial, e podem se desenvolver até uma eventual retomada no seio dos espaços oficiais.

O conteúdo veiculado no espaço intersticial pode ser primeiramente encriptado, proibido de entrar no espaço institucional propriamente dito, ou pode ser mantido em segredo, até ser retomado e inserido no espaço oficial.

Na análise individual, o espaço intersticial - sala de espera, trecho do corredor e a sala onde ocorre a sessão, parte dessa sala onde acontece a sessão, hall diante da porta ou da escada, é o espaço-tempo amplamente utilizado na compreensão da própria sessão.

há pacientes que só relatam algo essencial no momento de partir, na soleira da porta, usando o último cartucho para reter um objeto que está fugindo, para apresentar um "segredo", colocá-lo de "reserva", ou "dizer tudo" a um analista que "nada pode fazer", pego de surpresa, impossibilitado de qualquer intervenção, condenado a conter aquilo que se temia que ele viesse a rejeitar.

(Roussilon, 1988, p. 142)

Mas sendo o espaço intersticial o lugar das práticas não tuteladas pela segurança da verdade estabelecida e pelo pré-determinado, é também o lugar do perigo, pois fora do mundo seguro das atividades oficiais, não valem as seguranças da verdade, da cultura, do saber, do sentido. É o lugar do risco, do imprevisto, um lugar marginal, habitado pela diversidade caótica. Os espaços intersticiais são espaços para a realização de projetos e de inovações no modo de fazer, no modo de agir, no modo de pensar. É nesse espaço que os membros da instituição podem divagar num livre pensar e ousadia. A ocorrência de experiências autênticas ocorrem geralmente no espaço intersticial.

Conta-se (Nichols & Schwartz, 2007) que o surgimento da terapia familiar, a ousadia de colocar toda a família no consultório para tratamento (havia muitas restrições, na época, para este tipo de atendimento), ocorreu numa troca de conversas entre Bowen e Bolwby, durante o café em um Congresso de Psicanálise na Inglaterra. Bowen, eminente psiquiatra especializado no atendimento a pacientes esquizofrênicos, no final da década de 40, foi o primeiro a se interessar pela relação entre mães e filhos, abordando a questão da simbiose entre este par e trazendo uma importante contribuição com o conceito de diferenciação do self, mas sua estratégica clínica com a família era fracionada na medida em que reconhecia a doença em todos os membros da família, mas indicava terapeuta diferentes para cada componente do grupo familiar. No entanto, na conversa com Bowlby, no espaço do café, ele entendeu (parece que erroneamente) que Bowlby estava ousando colocar toda a família na sala de análise para tratamento. Assim, Bowen se sentiu autorizado a fazer o mesmo se aventurando a colocar todos os membros da família na sala de análise.

No entanto, justamente por ser um lugar não tutelado pelas verdades vigentes e, portanto, um espaço de risco, não raro, os processos de encriptamento de um espaço intersticial tornam-se dominantes, decretando a falência ou obscurecimento das funções de retomada.

O filme Bárbara, de Christian Petzold (2012), oferece um retrato interessante sobre a falência do espaço intersticial. O filme se passa na Alemanha Oriental em 1984, cinco anos antes da queda do muro de Berlim. Época de polaridades fortes. Embora esteja trabalhando em uma cidade da província (devido a um castigo do regime por ter pedido visto para o exterior), Bárbara é vigiada quase que em tempo integral. E, o pior, o sentimento de que todos estão, de uma forma ou de outra, sendo vigiados. O espaço, em Bárbara, é um personagem central: esta mulher passa a história toda percorrendo grandes florestas abertas, ruas desertas, corredores longos e vazios de um hospital. O fato de estar sendo constantemente vigiada, retrata sua solidão e alienamento. E, até a cena final, não é possível saber se o médico, seu colega, quer ajudá-la ou se simplesmente a está espionando a pedido do governo. Não se pode confiar em ninguém, indicando o terror da vigilância constante. A vida é tensa e alarmante com longos silêncios, sem que se possa saber, de fato, quem são os patrões do crime e da opressão. Excesso de proibições com renúncia quase completa das pulsões, gerando níveis de tensão intoleráveis.

O interstício é o lugar de passagem, um espaço-tempo de regulação psíquica das relações interindividuais e intergrupais. Sem este espaço, o indivíduo, semelhante a Bárbara, perambula sozinho sobre longos espaços vazios, evitando sequer "esbarrar" em seus colegas.

Vou retomar o conceito de interstício mas, agora, enfatizando como ele é utilizado na arquitetura. Este designa o espaço não edificado resultante da disposição e agregação dos edifícios. Guerreiro (2009) descreve três modelos de cidades e caracterização de seus interstícios: o modelo cósmico, o modelo de cidade-máquina e o modelo orgânico ou biológico.

O modelo cósmico ou da cidade sagrada, que tem a China e a Índia como exemplos, toma o plano da cidade como uma interpretação do universo e dos deuses. O espaço intersticial é algo muito importante e simbólico. Os espaços públicos caracterizam-se pelos grandes eixos monumentais, pelo centro sagrado, pelos pontos cardeais, devido as suas relações com o sol e com as estações do ano. Nestas cidades domina a ordem, a precisão, a forma clara e o controle perfeito do espaço.

No modelo máquina, o conjunto da cidade se desenvolve por adição. Não tem qualquer significado mais abrangente, é simplesmente a soma das respectivas partes autônomas, com funções e movimentos claramente diferenciados. Centra-se, portanto no zoneamento, na separação ordenada das atividades e nos transportes, nos processos de produção, na saúde dos trabalhadores e nos serviços públicos.

Os espaços intersticiais produzidos por este modelo de cidade, ao contrário do anterior e do seguinte, são apenas espaços residuais entre os edifícios, pois estas cidades foram construídas com o objetivo de distribuir terras e recursos mais rapidamente possível, são exemplo deste modelo os inúmeros conjuntos urbanos, cujo espaço público tem sempre um caráter secundário. (Guerreiro, 2009, p. 17)

O modelo orgânico ou biológico objetiva a cidade como um organismo vivo, incorporando os conceitos atuais de sustentabilidade e de ecologia. Tal como um organismo vivo, não altera a sua dimensão pela simples expansão, dilatação ou adição indefinida das partes. Antes, reorganiza a sua forma à medida que muda de dimensão.

Os espaços intersticiais do modelo orgânico, são anatômicos mas também dinâmicos. Podem mudar de aspecto ao longo dos anos com o devir do ciclo solar e das estações, o que provoca alteração do seu aspecto e consequentemente do seu uso. São estes espaços os mais bem sucedidos, os que têm mais vida. As praças, pracetas ou pequenos largos, os becos e as ruelas, são um exemplo da função a que se destinam: o uso coletivo. O interior dos quarteirões, os pátios e os quintais, estes interstícios, são um complemento importante da vida das cidades e representam microcosmos organizados dentro da malha urbana compacta. (Guerreiro, 2009, p. 17)

É instigante pensar o espaço intersticial na Instituição Psicanalítica tomando como analogia estes três modelos de cidade. Na Instituição Psicanalítica - cidade sagrada, os espaços oficiais caracterizam-se por grandes eixos monumentais e o espaço intersticial é dominado pela ordem e a precisão. A Instituição Psicanalítica - máquina, por sua vez, caracteriza-se por espaços oficiais que crescem por adição, com o objetivo de distribuir recursos, sendo que o espaço intersticial é tido como secundário, é, meramente, o espaço residual dos espaços oficiais. Na Instituição Psicanalítica - orgânica, os espaços oficiais, tais como um organismo vivo, não alteram a sua dimensão por simples extensão ou dilatação, mas reorganizam a sua forma na medida em que se muda a dimensão. O espaço intersticial neste modelo é anatômico e dinâmico, podendo alterar o seu aspecto e uso de acordo com as mudanças nos espaços oficiais. Os espaços público, privado e intersticial formam um complexo conjunto que não pode ser compreendido pelo conhecimento específico de cada uma das partes, uma vez que estas funcionam em sistema.

 

Referências

Giovanetti, M. de F. (2010). Sobre a natureza e a função do currículo na formação analítica. Jornal de Psicanálise, 43(79),181-185.         [ Links ]

Guerreiro, M. R. (2009). Interstícios urbanos e o conceito de espaço exterior positivo. Sociológico, 18,13-19.         [ Links ]

Kaës, R. (1988). Realidade psíquica e sofrimento nas instituições. In R. Kaës(Org.), A instituição e as instituições. (pp. 1-36). São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Nichols, M. P. & Schwartz, R. C. (2007). Terapia familiar: conceitos e métodos. (7ª edição). Porto Alegre: Artmed.         [ Links ]

Roussillon, R. (1988). Espaços e práticas institucionais. O quarto do despejo e o interstício. In R. Kaës (Org.), A instituição e as instituições. (pp. 133-149). São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 20/5/2013
Aceito em: 28/5/2013

 

 

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