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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.46 no.84 São Paulo jun. 2013

 

FORMAÇÃO: ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO

 

Psicanálise em São Paulo

 

Psychoanalysis in São Paulo

 

Psicoanálisis en San Pablo

 

 

Fabio Herrmann

Fabio Herrmann (1944-2006) era médico e psicanalista. Foi, na década de 1980, presidente da SBPSP e da FEPAL. Autor de pensamento psicanalítico original, expresso em vasta obra escrita, de que são paradigmáticos os livros da trilogia Andaimes do Real, cujas últimas edições foram publicadas pela Editora Casa do Psicólogo. (Notas de Leda Herrmann)

 

 


RESUMO

Trata-se de reflexão sobre um momento - meados dos anos 1980 - de consolidação de instituições de formação em São Paulo fora do âmbito da ipa. Reflexão sobre as características que essa formação apresentava de rede informal e institucional com a potencialidade de, ao exigir o cumprimento das funções de atender, escrever e estudar, permitir um percurso de autoria "para que o analista perceba que uma teoria é a visão geral de sua prática, que a critica e renova."

Palavras chave: formação psicanalítica, movimento psicanalítico, método da Psicanálise


ABSTRACT

This is a reflection about a moment in time - the mid '80s - when training institutions from São Paulo were consolidated outside the ipa ambit. It's a reflection on some characteristics of this kind of formation as being an informal and institutional network with the potential to - by requiring the fulfillment of actions such as attendance, writing and studying - provide a pathway for authorship "for the analyst to perceive that a theory is the general vision of his practice, which reviews and renews it."

Keywords: Psychoanalytical training, Psychoanalytical movement, Psychoanalytical method


RESUMEN

Se trata de una reflexión sobre un momento - mediados de los años '80 - de consolidación de instituciones de formación psicoanalítica fuera del ámbito de la ipa, en la ciudad de San Pablo. La reflexión aborda las características que esa formación presentaba, a saber, de red informal e institucional con la potencialidad de, al exigir el cumplimiento de las funciones de atender, escribir y estudiar, permitir un recorrido de autoría "para que el analista perciba que una teoría es la visión general de su práctica, que la critica y renueva."

Palabras clave: formación psicoanalítica, movimiento psicoanalítico, método del psicoanálisis


 

 

Introdução para o século XXI

Há 27 anos este texto era publicado no Folhetim, suplemento cultural do jornal A Folha de S. Paulo, em um número que tratava da forma como a Psicanálise estava inserida em nosso meio1. Curiosamente Marina Massi, agora editora do Jornal de Psicanálise, compartilhava da tarefa da organização daquele número e solicitava a Fabio Herrmann, então presidente da SBPSP, que também como autor psicanalítico, participasse com um artigo sobre o panorama da Psicanálise em São Paulo, que já se estendia por diversas instituições, marcando presença inclusive no ambiente universitário.

A solicitação de Marina de um artigo de Fabio para este número do Jornal que trabalha o tema da formação no âmbito do público e do privado remeteu-me imediatamente à "Psicanálise em São Paulo". Trata-se de reflexão sobre um momento de consolidação de instituições de formação em São Paulo fora do âmbito da IPA. Reflexão sobre as características que essa formação apresentava de rede informal e institucional com a potencialidade de, ao exigir o cumprimento das funções de atender, escrever e estudar, permitir um percurso de autoria "para que o analista perceba que uma teoria é a visão geral de sua prática, que a critica e renova." Hoje esta descrição do que acontecia nos meados dos anos 1980 e seu passeio histórico, podem ser entendidos como uma prospecção, um vaticínio, do caminho a ser trilhado dali para frente pela

Psicanálise e na formação, fruto de uma crítica aguda ao que nas décadas anteriores consolidou-se no movimento psicanalítico: uma perspectiva de se tomarem as produções teóricas das diversas escolas psicanalíticas como verdades factuais e, portanto imobilizadoras de novas descobertas. A necessidade desse exercício autoral, na própria formação, leva à conclusão que aparece no meio do artigo: "Quem não cria, crê."

O voo histórico que o texto propicia, tanto do percurso pessoal do autor, como do próprio movimento psicanalítico em nosso meio, reveste-se de outros sentidos quando considerado como premonitório de perspectivas futuras da Psicanálise para a formação e para os psicanalistas. Hoje sabemos como se consolidou a presença da Psicanálise na Universidade, seja nos departamentos de psicologia, como de letras e filosofia e como se organizaram várias instituições de formação psicanalítica - veredas no grande sertão da Psicanálise em São Paulo.

Leda Herrmann
Julho de 2013

São muitas as questões que Marina Massi me está enviando. Pede-me que trace, ao mesmo tempo, uma espécie de autobiografia psicanalítica, falando também do estado da formação em São Paulo, de suas instituições, do papel social do psicanalista, da análise didática, do custo da análise e da formação, da produção teórica brasileira, do ensino da Psicanálise na Universidade, da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e de seu processo de democratização.

Temo cansar o leitor com aquilo que tem escasso interesse, ou seja, meu roteiro dentro da Psicanálise, e confundi-lo com tantos assuntos diferentes. Mas se não for impaciente e puder perdoar uma espécie de crônica desconjuntada e salpicada de opiniões fragmentárias, talvez possamos roçar a superfície de todas essas questões, sem entrar seriamente em nenhuma. Quem sabe assim atenda ao pedido, sem me tornar demasiado maçante.

Por uma elementar questão de idade, não pude acompanhar os começos da Psicanálise em São Paulo. A 24 de novembro de 1927, ocorreu a primeira fundação da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, estimulada pelo Dr. Durval Marcondes, sendo eleito presidente o Prof. Porto Carreiro. Veio depois um numero da Revista Brasileira, que não teve sequência imediata. Só dez anos depois, com a vinda da Dra. Adelheid Koch, da Sociedade de Berlim, começou a formação de analistas em São Paulo, sendo este o primeiro centro formador da América Latina.

Mais doze anos, e a 14 de junho de 1949 lavrou-se a ata de constituição da Sociedade atual, registrada em cartório e, uns dois meses depois, em agosto, reconhecida pela Associação Psicanalítica Internacional (api). Isso é história. Aliás, o leitor curioso por um depoimento em primeira mão, só precisa consultar o numero 456 do Folhetim (20/10/85), que traz uma notável entrevista com o Dr. Flávio Dias, um de nossos pioneiros.

Como disse, não poderia ter assistido a tudo isso. Em compensação, tenho acompanhado a expansão vertiginosa da Psicanálise em nosso meio e participado de alguns experimentos de ensino, o que me permite ter uma opinião geral sobre o assunto. Em síntese, a opinião é a seguinte: o instrumento fundamental para a formação de analistas é simplesmente a própria produção teórico-clínica da Psicanálise. Atendendo no consultório, escrevendo suas teorias e estudando as alheias é que formamos psicanalistas.

Há uma rede informal de formação, se é cabível dizê-lo assim, de que participam modestamente todos os psicanalistas praticantes, analisando pessoas que desejam aproximar-se de nossa disciplina, supervisionando os primeiros ensaios de tratamento dos mais novos, dirigindo grupos de estudo, contando e ouvindo casos. Isso é o essencial, creio. Há também as instituições, como se costuma dizer um tanto pomposamente; mas essas ficam para depois.

Ao leitor atento, talvez não tenha escapado a ordem em que coloquei as prioridades. Atender, escrever, estudar. É intencional. Não se trata de uma sequência temporal, claro. Primeiro é necessário estudar e muito. Acontece porém que existe uma espécie de regra proporcional para o aprendizado da Psicanálise. Sem um tanto de prática, as teorias são letra morta. Disso todos sabem. O que muitos parecem ignorar é que, para compreender as teorias psicanalíticas com inteira propriedade, ao menos para transmiti-las, faz-se necessário conhecer a maneira pela qual são produzidas; o que só se consegue experimentando produzir alguma.

Não é indispensável ser original nem ser um gênio, basta frequentemente um ensaio de produção teórica, para que o analista perceba que uma teoria é a visão geral de sua prática, que a critica e renova. Numa palavra: teoria é a crise renovadora e global do trabalho clínico. E só se sabe disso experimentando fazer. Do contrário, alguns equívocos são cometidos. O primeiro deles consiste em confundir teoria com fato psíquico.

Como é comum escutar colegas transmitindo conceitos teóricos como se fossem coisas que se passam materialmente na mente humana! Outro equívoco é o de se querer posicionar. Parece que mesmo os mais iniciantes têm de ter uma posição em face da Psicanálise, a qual desconhecem profundamente.

Imagina-se que os diversos corpos teóricos das Escolas Psicanalíticas possuem uma verdade intrínseca e indissociável do mestre-pensador; assim é mister engolir tudo de uma vez, acreditar no conjunto para poder usar qualquer de suas partes. Por fim, para quem nunca experimentou inventar teoricamente, a gradação do valor de diferentes asserções costuma ser incompreensível.

Segue-se que a formação obedece então ao princípio religioso, onde a supressão de um só til é já abominação, como no Catecismo, e todos os recursos passam a ser válidos para comunicar o cânon sagrado. Análise, supervisão e ensino convertem-se em tribunas, ou melhor, em púlpitos, e a formação vira forma, pura e simplesmente. São os azares da ausência de produção teórica. Quem não cria, crê.

Por sorte, não por méritos, minha formação seguiu um caminho diferente. No mais, dentro deste número de intenção autobiográfica, minha história de formação não possui qualquer interesse. Não tive de inserir-me numa Escola estrangeira nem sequer numa nacional. Como quase todos hoje, antes de chegar às instituições, passei pela rede informal. Com uma diferença. Nos anos sessenta, ela não estava tão desenvolvida como hoje. Isso sim foi interessante. Éramos dois colegas de classe da Pinheiros, Elizabeth Milan e eu, que nos juntamos a uma psicóloga mais velha, a inesquecível Regina Chnaiderman, que, se bem me lembro, havia recém instalado seu consultório. Constituiu-se assim um seminário, a que se viriam juntar muitos outros amigos, ao longo de quase quinze anos de duração. De inicio, chegávamos a ter mais de três seminários por semana, estudando tudo o que nos caía nas mãos, orientados à distância por Isaias Melsohn. Este caminho foi bom. De tanto estudar coisas diversas, ficava um pouco difícil aderir a uma delas, pelo menos por princípio.

Depois, veio a Sociedade de Psicanálise, ou seja, as famosas instituições. De 1971 para cá, tenho podido compreender um pouco melhor o problema da formação institucionalizada. Não diria que é um mal necessário, mas que é uma necessidade de que se deve cuidar para que não vire um mal. Vejamos. Como a matéria de nossa formação é, em parte grande, a vida psíquica do próprio formando, torna-se lamentavelmente fácil passar da cura à curatela e, desta, à tirania absoluta - ao despotismo asiático, na fórmula clássica, onde a relação de autoridade, que deveria ser a do autor com sua criação, converte-se em posse direta e domínio pessoal de todas as relações.

Em termos mais simples, quando alguém se forma sob a curadoria de um só mestre, grande ou pequeno, reina o princípio político da ciumeira generalizada, onde até conversar com o vizinho já configura traição. Para evitá-lo, ou nos convertemos em autodidatas - o que não é para todos e, pensando bem, não deveria ser para ninguém -, ou entramos para um grupo pluralista, para uma instituição onde o poder se fragmenta pela presença de vários professores e legalizam-se as relações. É refrescante saber que, se pretender tiranizar minha Sociedade, acabarei sendo deposto ou pelo menos substituído.

Isso não é novidade alguma. Imagino que quase todos os que já escreveram sobre a institucionalização da Psicanálise - e são legião, como diria o Autor Sagrado -, insistiram sobre o mesmo ponto. A formação e qualificação de psicanalistas não é tarefa que se possa adjudicar a nenhum analista isolado, nem é permissível que uma instituição formadora seja fundada sobre os ensinamentos de um analista em particular. Está até na Constituição da api. Se todos o dizem, é porque têm razão. Há uma tendência constante a que tal desvio ocorra, que um mestre proclame a verdade final e ocupe fisicamente o lugar da verdade inconsciente, ou da Psicanálise real, ou do método psicanalítico justo, ou de continuador de Freud etc. Instituições são formas precárias de lutar contra esse abuso.

Pois bem. A Sociedade cresceu muito. Em 1971 havia uns 10 didatas, hoje há quase o triplo. Somos ao todo perto de quatrocentos - os números exatos são: 167 membros e 223 candidatos. A prevalência de candidatos já mostra como o crescimento tem sido acelerado, nos últimos anos. Quando comecei minha formação, achava que era cara. Hoje também acho: é cara mesmo. Custa muito, em termos de tempo, esforço e dinheiro. O que encarece a formação, sabemos, é a exigência de análise pessoal dos candidatos. De um modo geral, é o mesmo em toda parte. Espera-se que um analista tenha sido analisado por um colega bastante experiente e bem formado, que haja dado provas de capacidade clínica e teórica, que escreva e ensine, que se dedique integralmente à Psicanálise. O grupo assim selecionado chama-se analistas didatas, nas Sociedades filiadas à api, ou em quase todas elas. O nome é um resquício dos tempos heroicos do começo do século, quando a análise didática era uma forma de ensino da teoria, inserida numa experiência terapêutica. Hoje o didata não ensina durante a análise. Analisa, somente. Em nossa Sociedade, ele nem pode opinar sobre seu analisando, junto ao Instituto, o órgão de ensino, tampouco é o conjunto dos didatas que decide sobre a qualificação de seus novos pares, eleitos por voto direto de todos os membros2. Análise didática é uma análise, nada mais. Outras entidades de formação não têm didatas. Mas todas, ao que sei, exigem algum tipo de análise de seus alunos e selecionam de algum modo, aconselhando ou validando, o conjunto de analistas aceitáveis para a função. Às vezes de maneira indireta.

Costuma-se dizer, sensatamente, que o alto custo da formação do analista limita o acesso a uma minoria economicamente privilegiada. É óbvio. No entanto, terapeutas em geral e psicanalistas em particular têm seu número rapidamente crescente em nosso meio. Diria que mais do que praticamente em qualquer lugar. Com efeito, há em São Paulo uma larga possibilidade de formação psicoterápica. São muitas as correntes e instituições; porém, insisto que, de fato e de direito, o mérito, se o há, cabe principalmente a já mencionada rede informal de formação.

O custo médio da análise no Brasil não é, como se pensa, superior ao dos países mais industrializados. É bem menor. Basta converter os valores citados nas entrevistas que figuram neste Folhetim, acrescentando os 50 a 150 dólares, estimativa razoável do preço da sessão analítica nos eua. O que se dá aqui é que há maior variação de custo, refletindo, é de se supor, a desigualdade imensa entre os rendimentos dos grupos sociais. Este é um problema e tanto.

O acesso à formação é possível, o número de candidatos é enorme, porém não se corrigem as desigualdades existentes no edifício social. Nem seria possível, no âmbito estreito de uma profissão. O papel social do psicanalista há de ser duplo, portanto. De um lado, seu trabalho de consultório, limitado, como o de qualquer especialista, a uma esfera social bastante circunscrita. De outro, uma ação indireta sobre a sociedade, que comporta dois momentos distintos. Difusão da Psicanálise, ajudando os profissionais iniciantes a atenderem melhor a população, sobretudo através dos órgãos públicos. Para isso é necessário que ao menos uma parcela dos analistas se empenhe no ensino universitário, ou participe diretamente do organismo de atendimento público. Não menos importante vem a ser o trabalho de reflexão sobre a sociedade, que contribui no aprimoramento da consciência social. O ofício analítico é por natureza solitário, todavia não é preciso torná-lo autista.

Por experiência pessoal, posso garantir que não existe incompatibilidade alguma entre o trabalho de consultório, o ensino em diferentes entidades e a participação numa Sociedade de Psicanálise. Hoje, ensino na puc, mas participei também da criação do curso do Sedes Sapientiae, faz uns dez anos3. São modos diferentes de ensinar e intenções diversas. Um mais clínico, outro mais acadêmico. Qual o problema? Desde que se ponha de parte uma espécie de porfia filial pela marca registrada de psicanalista que nos colocaria na descendência direta de Freud e se considere que descendentes são aqueles que fazem progredir a Psicanálise, não se experimentarão grandes conflitos de identidade institucional, vaga ameaça que paira sobre os que se pretendem pluralistas. Pelo contrário, a diversidade de terapias, de correntes, de instituições oferece uma inestimável chance de perseguir o que é essencial à Psicanálise, cancelando a confusão entre partido científico e ciência.

Pois é este o caminho que vejo para a democratização da Psicanálise, seja da Sociedade de Psicanálise, seja do mundo psicanalítico em geral. Por toda parte, em Londres ou Paris, nos eua ou na América Latina, grassa uma epidemia de posicionamento. Psicanálise versus terapias, o que é ridículo, considerando que a Psicanálise é também uma terapia - não me consta que Freud mesmo pensasse o contrário, apesar daquela história hesiodiana de ouro e cobre4, que se referia, se não me falha a memória metalográfica, fundamentalmente ao problema da sugestão.

Analista de Sociedade versus analista independente, kleinianos versus lacanianos versus psicanalistas do self e sei eu mais quantas denominações. Certo que ecletismo é o mesmo que ignorância, no mais das vezes. Contudo é preciso ser razoável, mesmo em assuntos absurdos. O nosso é um ofício absurdo - impossível não é, visto que se exerce. Lidamos com o mundo pelo avesso, é verdade. Mais uma razão para sensatez, naquilo que é passível de sensatez. Nossas organizações e grupos pretendem tratar suas diferenças como se fossem psicanalíticas, ou se fossem matéria de elevadas opções ideológicas. Geralmente não são. São questões políticas; o que não é vergonha, desde que, em lugar de questões políticas de hegemonia, convertam-se em questões de política científica. Perguntam-me a respeito da democratização da Sociedade de Psicanálise. Fico satisfeito que se considere haver maior liberdade e democracia na Sociedade. Espero que seja um processo evolutivo, creditável, em parte, a seu crescimento demográfico.

Onde há muita gente, há muitos grupos e nenhum se impõe totalmente. De vez em quando, mas não para sempre. Pelo menos quando se trata de um grupamento científico que tem encarado seriamente a convivência de muitos pontos de vista a respeito da Psicanálise e com respeito pela Psicanálise. Nosso problema maior, em São Paulo, é a pequena produção científica original e independente de correntes dogmáticas. Como já fiz notar, reside na produção o melhor antídoto para a crença e o partidarismo. Temos importado, junto com as teorias, produto valioso, as querelas domésticas dos centros produtores. A estas últimas, sugiro que a Cacex5 casse as guias. Seria maravilhoso transformar São Paulo num centro de livre debate das produções estrangeiras, filtradas através da reflexão local. Isso ainda estará longe?

Ora, para esta crônica, meio biográfica, meio crítica, a propósito da Psicanálise de uma cidade imensa e sofrida, mas explosivamente expansiva, fica bem talvez terminar utopicamente. Digamos que somos apenas uma parte do que somos. Explico. A Psicanálise em São Paulo é, no horizonte de suas potencialidades presentes, muito mais do que encarnam nossas instituições. A formação é bem mais que a formação institucionalizada; a reflexão e a teorização ultrapassam o que se publica; nossos filósofos descobriram a Psicanálise e os clínicos começamos a teorizar, timidamente é certo.

Atualmente, a Psicanálise é um dos centros irradiadores de perguntas acerca do homem e um lugar onde se encontram ciências e artes para seu colóquio. Da antropologia à crítica literária, da psicologia à filosofia, da medicina à ciência política, são incontáveis os debates intelectuais que tomam a Psicanálise por interlocutor, no meio cultural de nossa cidade. Pois bem, todo esse debate, de que o interesse do jornalismo cultural é testemunha, e mais a expansão da prática clínica, psicanalítica ou psicanaliticamente orientada, tudo isso é a Psicanálise em São Paulo. Nossas instituições não a podem comportar e ela nos ultrapassa. Por outro lado, o Método Psicanalítico, essência de nossa disciplina, tem o poder de criar inúmeras psicanálises, conjunto do qual as psicanálises existentes, as que conhecemos, é tão somente o exemplo provisório. Naturalmente, o que conta é o que há. Todavia, creio ser possível afirmar que o olhar voltado para as psicanálises possíveis é o que melhor enxerga aquelas que hoje existem.

Quando escrevo Psicanálise, com maiúscula, quero sempre referir-me ao Método e a esse conjunto em grande parte vazio das psicanálises concebíveis, as que não há mais e as que por enquanto não há. Considerando o conjunto dos possíveis, encaramos com mais comedimento as divergências presentes, posicionamos - ainda uma vez esse termo, porém agora no sentido legítimo - as diferenças institucionais e escolásticas na sua medida própria. Tenho me referido frequentemente à terceira geração de psicanalistas, que se deve seguir e superar o período das grandes Escolas. Há, pelo mundo, autores ocupados com o problema, cada qual usando expressões diferentes, mas perfeitamente conversíveis. Sob o ângulo de uma futura política científica para a Psicanálise de São Paulo, é de se esperar uma colaboração efetiva com esta rede informal de pensamento analítico, comunicante com a rede informal de formação, acima mencionada. Caberá às instituições, no mínimo, não se interporem como obstáculo de tal processo. Como nunca sediamos uma das grandes Escolas, nossos partidarismos são um tanto epidérmicos. Assim, é de se esperar que São Paulo, sendo um centro possível da Psicanálise, não se recuse a participar da criação das psicanálises possíveis. Nesse âmbito, na medida em que somos mais do que somos, há, com toda certeza, Psicanálise em São Paulo.

 

 

1 Folhetim, nº 488, Folha de São Paulo de 15 de junho de 1986.
2 Em meados dos anos 1980 institui-se na SBPSP o sistema de escolha de novos analistas didatas por eleição pelo corpo societário. Até aquela época a eleição era prerrogativa da Comissão de Ensino, composta apenas por analistas didatas. O analista, membro efetivo, que se postulasse para a função didática, apresentava-se ao corpo diretivo com seu currículo. Era então constituída uma comissão formada por três analistas didatas que cuidava do exame do currículo para apresentar o colega ao corpo societário. Essa apresentação era feita em uma Assembleia Geral Extraordinária convocada especialmente para aquele pedido de passagem a analista didata. A decisão da AGE era tomada através de votação secreta. Fabio Herrmann foi o primeiro analista da SBPSP a se apresentar nessa forma de escolha de novos didatas.
3 Trata-se do primeiro curso de formação psicanalítica a organizar-se em São Paulo fora dos muros da ipa, no Instituto Sedes Sapientiae, em 1976.
4 Transpondo ironicamente para nosso ofício o sentido de se atribuir a Hesíodo importante fonte da mitologia grega.
5 Sigla que designava a entidade governamental responsável pela concessão às empresas de guias autorizando importações.