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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.46 no.84 São Paulo jun. 2013

 

FORMAÇÃO: ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO

 

De ocupações e errâncias

 

 

Marcio de F. Giovannetti

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de São Paulo SBPSP

 

 

Avec ma gueule de métèque
De juif errant, de pâtre grec,
Et mes cheveux aux quatre vents1
(Georges Moustaki, Le métèque)

O corpo editorial deste Jornal convocou-me a uma tarefa: escrever um texto-comentário sobre os artigos que compõem a seção Tema deste Jornal.2 "Tornar o Jornal mais aberto a questões e debates, saindo do isolamento do texto definitivo", assim instigou-me Marina Massi, apesar do parco tempo que deu para cumprir a tarefa: quinze dias. Dei uma rápida e diagonal lida nos artigos e fiquei totalmente seduzido pela ideia. Compromisso feito, comecei a lê-los com a atenção devida e o prazo me aterrorizou: o campo abarcado por eles é tão vasto e complexo, suscitando tanta reflexão que peço, antes de tudo, desculpas aos seus autores e também aos leitores por saber que não consegui fazer jus a nenhum deles e muito menos ao seu conjunto. Mas conforme escreveu Kristeva, citada por Elias Mallet da Rocha Barros, "todo texto se constrói como um mosaico de citações", e este é o mosaico possível para mim em tão breve tempo.

"Nossa tradição e história nos permitem viver a passagem do tempo, ou propõem uma nostalgia de um passado que fecha a escuta para o novo e sua força disruptiva?" pergunta a equipe do Jornal em sua carta convocatória para o eixo temático "Formação: entre o público e o privado"; "A Psicanálise como disciplina é um saber estrangeiro, daí sua formação dever ser pensada em termos singulares e distintos de quaisquer outras disciplinas" pontua Mariano em seu belo artigo; o "espaço intersticial como espaço de risco" nas agudas reflexões que Vera Adamo fez, partindo de ideias de Roussilon; a recuperação de nossa história através das figuras de Lygia e Virginia sendo acusadas de charlatanismo pelo establishment médico dos anos 1950, ao mostrarem em público a cara do psicanalista, reatualizada no canto de Cazuza tão bem aproveitado no texto de Gustavo Alarcão; a ideia da clínica extensa já indiciada no texto escrito para a Folha de S. Paulo nos anos 1980 por Fabio Herrmann, aquele que foi para mim "o amigo necessário para o psicanalista", segundo Pontalis; e, a fortíssima imagem do "meteco", aquele que se faz sempre estrangeiro não importando a cidade que habite, também trazida por Mariano. É a partir do impacto dessas vozes e dessas falas - outras virão depois - que vou construindo meu mosaico. Desafinadamente tentando parafrasear Georges Moustaki, cantor e compositor greco-francês, que no final dos anos 1960, com seu canto, apresentou-me à figura do "meteco". Nessa mesma época fui me iniciando na errância da Psicanálise.

Errância e ocupação. Está aí colocado o paradoxo que define o lugar do psicanalista, o lugar fora do lugar, o lugar do meteco. Intersticial, impreciso, imperfeito. Nossos institutos de Psicanálise tem como proposta a formação possível daqueles que nos procuram para se tornarem psicanalistas, uma ocupação errante. Mas ao oferecerem esse espaço, correm muitas vezes o risco de deturparem a própria proposta. Mariano trabalha bastante com essa questão, seja apontando os riscos de uma identificação daquilo que é o privado dentro da instituição com o doméstico, com o familiar, seja na interferência do "público", isto é, de certa pressão institucional que adentra inevitavelmente os espaços privados da análise e da supervisão, enfatizando que a lei, instância pública necessária para impedir o "acoplamento sem fissuras" entre o didata e seu analisando não deve ser confundida "com um sacrossanto respeito aos standards que tendemos a colocar em um lugar idealizado". Mas também, e aqui discordo um tanto dele, é importante que pensemos o lugar da instituição como um lugar dentro de um lugar maior, a cidade. Pois se ele é um meteco, ele também é um cidadão comum, sendo fundamental que não transforme a instituição psicanalítica em sua casa ou seu país. É o trabalho de Gustavo aquele que traz mais explicitamente essa questão. Ao tratar da inserção do psicanalista em lugares outros que não seus consultórios, ele denuncia a tendência que temos a não mostrar a cara. Não seria essa também uma razão a mais para a nossa dificuldade em debatermos até entre nós, aumentando um pouco a lista proposta pelo Elias?

Também o "mostrar ou não a cara" tem a ver com os espaços intersticiais dentro da instituição. Pois nem sempre se sabe qual é a própria cara, conforme nos mostrou Freud, e os agrupamentos totêmicos dentro de instituição psicanalítica colocam em evidência. Mais do que inserções escolásticas, ser freudiano, kleiniano, pós-kleiniano, bioniano, winnicottiano, greeniano, e outros sobrenomes que não cessam de ser adjetivados, esses agrupamentos se prestam como máscaras que escondem a própria cara. Pois é a própria cara que, não importa quanta análise tenha sido feita, se mantém sempre em xeque: são esses restos, sempre e inesgotavelmente transferenciais, que deslizam rápida e sutilmente para o interstício das instituições. O que implica pensarmos sempre na análise como algo profano, nunca sagrado, isto é, a questionar sempre a própria análise e a própria instituição. Os mais perigosos de nossos fetiches são sem dúvida a própria análise e a "excelência" da instituição. É por aí que leio "Binoche como analista" que nos trouxe Mariano. Piera Aulagnier (1990), em "Sociedades de psicanálise e analistas de sociedade", já trazia à tona esta problemática ao pontuar que a análise mais bem sucedida de todas foi aquela que Freud fez com Fliess, pois nem Fliess sabia que era analista nem Freud sabia que era analisando. A análise impossível de ser fetichizada só poderia ser aquela realizada avant la lettre, pois nenhum dos dois lugares estaria ainda institucionalizado. Nem haveria ainda o lugar do suposto saber, que corre sempre imenso perigo quando se vê e se vive a instituição como "excelência" e a análise como sagrada.

Não apenas o lugar do analista é aquele do suposto saber, como definiu Lacan, mas nosso grande acervo conceitual necessita assim ser apreendido. Essa é mais uma das dificuldades que incluo à lista feita pelo Elias. Pois o que fica mais claro em um debate entre nós é a errância de nossos conceitos, a sua imperfeição, como disse Luiz Tenório de Lima,3 o seu caráter nominalista. Por isso, acho infrutíferos os debates em busca de uma "precisão conceitual" e aqui estou frontalmente em desacordo com o Elias. Também não penso que as aproximações que tendemos a fazer com a literatura, com a filosofia, com a antropologia, enfim, com as demais humanidades sejam formas de escapismo. Ao contrário, nosso campo, o lugar da Psicanálise é justamente o fronteiriço, o intersticial com as demais humanidades. Isso já ficou evidente na própria obra de Freud que, na maioria de seus textos se socorreu sempre dos outros saberes. Seria mesmo uma perversão da própria ideia psicanalítica pensar em uma "precisão conceitual": se nós estamos às voltas com a talking cure como tornar "precisa" a própria língua? Não são os lapsi linguae aquilo de mais revelador segundo o próprio Freud? Não são os sonhos a "estrada real" para aquilo que ele chamou de inconsciente? Estamos sempre às voltas com uma língua desconhecida, uma língua estrangeira, não para aprendê-la ou traduzi-la, mas para nos darmos conta do imenso campo semântico que não cessa de estar sendo sempre criado por nossos pacientes. O trabalho de Mariano aponta para isso e também o de Vera, se lermos os vários significados que a palavra "interstício" adquire dependendo do campo em que ela está sendo empregada. Vale também lembrar aqui o pensamento de Fabio Herrmann a respeito das "altas teorias" e do método psicanalítico.

As recentes manifestações nas ruas brasileiras nos trouxeram o melhor exemplo de uma fala viva e nova para a qual não havia resposta já conceituada: nenhum dos políticos conseguiu dar uma resposta satisfatória a elas por escutá-la a partir de parâmetros já consagrados. Um líder, não havia. Uma palavra de ordem, também não. Havia sim, uma grande quantidade de falas e muitas vozes, característica básica deste início de um novo milênio trazida pelas novíssimas redes sociais. Mas o que vimos e ouvimos todos nós foi que a juventude

ressignificou o mapa do Brasil, profanando o mais sagrado sentimento de brasilidade até então existente. Pois o que ela dizia ao mundo é que o Brasil não é mais o país do futebol. É um país! Sem complementos adnominais. O Brasil mostrou sua nova cara. Em plena sintonia com o novo, foi justamente o mais jovem entre os autores dos trabalhos aqui discutidos, Gustavo Alarcão, aquele que, resgatando as figuras fundadoras de nossa sociedade, leva a instituição psicanalítica às ruas, resituando-a em seu lugar originário, a cidade. Mas, não mais a Viena do final do século XIX, e sim a megalópole contemporânea, lugar de uma nova subjetividade.

Errância, ocupação, público, privado. São palavras-ideias que, à semelhança de forças magnéticas, configuram e estruturam o campo psicanalítico, que é maior, bem maior do que nosso acervo conceitual e as diversas escolas de pensamento conseguem abarcar. Por que então nossos institutos deveriam fechar suas portas a palavras outras de saberes outros para os seminários daqueles que estão em formação? Não seria um enorme ganho para nossa instituição fazer parcerias com as boas universidades, incluindo em nosso currículo, cursos outros de outros campos? De forma alguma trazendo-os para dentro da instituição, mas estimulando o jovem aprendiz a buscar também fora dela, para além de suas fronteiras, um tanto da psicanálise. Na pior das hipóteses, estaríamos passando a eles a mensagem de que somos apenas suposto saber, e que a análise, seja ela didática ou leiga, não leva nenhum de nós à excelência. E que, não havendo mesmo texto definitivo, o espaço institucional se manteria aberto, servindo de ancoragem à dualidade originária de seu campo.

 

Referência

Aulagnier, P. (1990). Sociedades de psicanálise e psicanalista de sociedade. In P. Aulagnier, Um intérprete em busca de sentido. (Vol. 1, pp. 59-100). São Paulo: Escuta.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 14/6/2013
Aceito em: 18/6/2013

 

 

Marcio de Freitas Giovannetti. Rua Desembargador Joaquim Celidônio, 36 | Jardim Paulistano. 01443-060 São Paulo, SP. Tel: 11 3159-8604. nnetti@uol.com.br
1 "Com minha cara/garganta de meteco, de judeu errante, de pastor grego, e meus cabelos aos quatro ventos"
2 O artigo de João Frayze-Pereira não consta neste texto, pois foi recebido pelo Jornal após o envio deste comentário.
3 Em debate recente na SBPSP (abril 2013).