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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.46 no.84 São Paulo jun. 2013

 

HISTÓRIA DA PSICANÁLISE

 

Entrevista com a professora Judith Seixas Teixeira Carvalho Andreucci1

 

 

Entrevistadores: Amazonas Alves Lima; Haroldo Pedreira; Paulo Cesar Sandler

 

 

Ao longo de 2013, a SBPSP comemora o centenário de nascimento de Judith Seixas Teixeira de Carvalho Andreucci. Contemporânea de Virginia Bicudo e Lygia Amaral, da mesma forma que elas chega à psicanálise tendo passado pela Escola Normal da Capital - mais tarde Escola Caetano de Campos - e pelo curso de Visitadoras Sanitárias da Faculdade de Hygiene. Sua formação se enriquece com o Curso de Filosofia e uma especialização em Psicologia, ambos realizados na USP. Ingressou no Instituto de Psicanálise da SBPSP em 1959. Figura notável como professora, analista didata e supervisora, deixou sua marca pessoal no trabalho clínico que exerceu até o fim de sua vida, em fevereiro de 2001. Voltar a publicar sua entrevista na ide, n. 12, de 1986 oferece a oportunidade de um rico contato com uma pessoa muito interessante.

(Maria Helena Teperman em nome da equipe da ddphp da SBPSP)

 

Eu apenas canto com palavras

ide - A Sra. poderia nos dar uma visão retrospectiva da sua experiência como didata? Se possível, nos dizer o que acha que deveria ser reformulado ou preservado?

Profa. Judith - Penso que a minha experiência como didata está ligada à experiência como analista e como ser humano. As raízes perdem-se no acervo de conhecimentos que venho adquirindo, através da própria vida. Existem invariáveis, características singulares que marcam cada ser humano como único no tempo e no espaço e infinitas variáveis que tornam difícil apresentar uma visão retrospectiva em relação a uma experiência que está sempre se renovando, num fluir constante. Nenhum homem, disse, um dia, o velho Heráclito, consegue tomar duas vezes banho no mesmo rio, porque o rio e o homem mudam a cada momento.

Quanto ao que deveria ser reformulado ou preservado, creio que o didata deve, essencialmente, preservar a sua autenticidade e liberdade e reformular tudo que possa impedi-lo, falseando-o e deturpando-o na sua verdade.

ide - A Sra. se intitularia, ainda hoje, uma "Kleiniana"? Por quê? Seria possível nos explicar suas vinculações teóricas?

Profa. Judith - É difícil responder a uma pergunta que não encontra eco em mim, pois jamais fui "freudiana, kleiniana, bioniana, winnicotiana, lacaniana, kohutiana etc., fui e sou apenas a analista que se nutre de todas as fontes ricas de húmus psicanalítico, selecionando, em cada uma, aquilo que mais e melhor se adapta à minha forma particular de ser. É contra o meu feitio enquadrar-me em rótulos ou modelos que, a meu ver, limitam o pensamento e o dogmatizam por mais ricas e geniais que sejam as mentes que o produzam.

Fui e continuo sendo soldado sem general. As vinculações teóricas, usando uma metáfora, representam, para mim, o galho da árvore que a lagarta se apoia para formar o seu casulo e, daí transformada em borboleta, voar pela amplidão em busca de novos horizontes, símbolos de novas ideias, de aberturas desconhecidas.

 

 

ide - A Sra. acha que o fato do analista didata fazer parte da instituição e ser o mesmo analista do candidato prejudica o setting, mesmo que interfira, diretamente, nos assuntos de ensino?

Profa. Judith - Penso que não podemos aspirar a uma assepsia perfeita, pois somos, inexoravelmente, imperfeitos. Seria impraticável isolar o analista didata da instituição. Entretanto, cabe ao seu bom senso e respeito para com seus candidatos, colocar-se, o mais possível, distante de situações que contribuam para causar-lhes sofrimentos desnecessários. Os problemas, porém, que possam surgir, constituem, a meu ver, material de análise.

ide - É quase uma rotina que o candidato apresente seus relatórios de supervisão no grupo do seu supervisor. A Sra. acha isto bom?

Profa. Judith - Eu não acho bom nem ruim o que me perguntam. Porém, acho produtivo o que melhor puder proporcionar ao candidato um encontro enriquecedor. E isto pode acontecer num grupo com o supervisor ou professor, e contribuir para um clima cooperador, integrativo e fértil entre todos os componentes do grupo.

ide - Se a Sra. tivesse que escolher uma escola de pensamento, em qual se enquadraria?

Profa. Judith - Penso que esta pergunta já foi respondida. Entretanto, vou repetir que não me enquadro, não me engaiolo, nem me engradeio.

ide - No seu modo de ver, quais são as principais insatisfações dos candidatos? Apontaria soluções?

Profa. Judith - As insatisfações dos candidatos, a meu ver, não diferem das insatisfações dos analistas e dos seres humanos em geral. Aliás, é a insatisfação do homem que o leva a desenvolver o pensamento em busca de um estado mais satisfatório para seu progresso e crescimento.

Eu não tenho soluções para a insatisfação humana e, penso que, até hoje, ninguém a conseguiu. Entretanto, se uma fada me segredasse a solução eu não a revelaria para não contribuir para o fim do progresso e da civilização, pois sem insatisfação, o homem não cresce. A solução seria mais nociva que a bomba atômica.

ide - O que a Sra. acha da participação dos candidatos na política da instituição e nas comissões?

Profa. Judith - Acho que faz parte de um direito que lhes assiste, como candidatos, pertencentes à instituição. Sua participação não só é útil, mas revigorante, como a participação dos jovens em todas as sociedades.

ide - Soubemos que a Sra. é poetisa, apesar do sigilo e recato da sua conduta. Alguns de nós já viram a sua poesia e não nos referimos à sessão de análise... Poderia nos reproduzir alguma?

Profa. Judith - Acho o título de poesia demasiado para mim. Eu, apenas canto com palavras, para minhas filhas e netos que me pedem, lhes deixe, um dia, os meus cantares. Estes, são transformações de vivências que se estendem através da minha vida. Entram nos mundos dos seres que contatuo, espraiam-se nos mares, mergulham em mim mesma, penetram nos sertões e segredam o que ouço das gentes que vivem naqueles perdidos, banhados de sol, de estrelas e de magia.

Satisfazendo ao pedido, para falar de alguma poesia, vou tentar reproduzir algo acontecido em certa noite de sertão que sucedeu a uma tarde cismarenta em que eu lia Shakespeare, parecendo-me escutar as vozes das feiticeiras de Macbeth. Algo, tão profundo, que, de súbito, me fez unir os tempos, o homem primitivo e o civilizado, nas suas grandezas e misérias, mistérios e pavores, beleza e monstruosidades...

Mãe terra
Da praça nua de gente,
De árvores, cheia de lua,
Vem ela, a mulher da terra
Rompendo a quietude crua...

Surge da noite macia,
Irrompe da selva escura,
Vultos a seguem nas sombras
Em vagas iluminuras...

Súbito, sua voz ressoa
No silêncio e no luar
E conta histórias de amores
De ódio e sangue a jorrar

Fala de espíritos que vagam,
De monstros que habitam os montes,
Canta os milagres dos santos,
Achados por retirantes.

Imita o grito dos pássaros
Que sentem o "estranho" passar
E os arrepios das matas
Sinistros, a cochichar...

Tomadas pelo feitiço
Da voz profunda, velada,
Os vultos escutam as lendas
Daquela terra abrasada.

E a mulher, sussurrante,
Revela a voz da "boiuna",
"Embandeirando" no rio,
Em cachoeiras soturnas...
O "cachear" da "boiuna"
Pelos espaços se espraia,
E gente treme de medo,
Com os lamentos do Araguaia

Povo que sofre e que mata,
Gente que ama e odeia,
Povo que morre nas secas,
Gente que afunda nas cheias...

Uma voz, meio abafada,
A interrompe enfeitiçada,
Pergunta a mulher tremendo:
Mãe! Que tempo tu foi gerada?...

A mulher da terra cresce,
Enche o espaço como um templo
E seu brado ecoa, longe,
- "Eu sou de todos os tempos!...

ide - A Sra. teria alguma definição para psicanálise?

Profa. Judith - Eu li muitas, ouvi, meditei e não me satisfizeram, pois as definições cerceiam e não abrangem os desconhecidos que não alcançam. Lembro que Bion usou o termo função, por considerá-la um continente vastíssimo... E a psicanálise não seria um continente ilimitado para um conteúdo ilimitado no seu desconhecimento que é o mundo mental e emocional do homem?

ide - A Sra. poderia explicar as modificações pelas quais passou a prática psicanalítica - a sua prática, desde que iniciou seu trabalho?

Profa. Judith - Colocaria as modificações da minha prática analítica na razão direta do alargamento da minha visão interior e do mundo que me tornou mais livre, mais eu mesma, para aproximar-me da realidade interna do meu analisando e criar a forma mais adequada para transmiti-la.

ide - Estas modificações foram importantes do ponto de vista teórico?

Profa. Judith - Claro que sim, pois creio que um posicionamento mais livre, facilita maior criatividade e permite ao analista, mergulhar mais profundamente na mente, no mundo emocional do seu paciente, trazendo, como o escafandrista dos fundos dos mares, surpresas estranhas nas suas pesquisas. Estas descobertas podem confirmar teorias existentes, suscitar dúvidas, aberturas, ideias novas e enriquecedoras.

ide - Com quem a Sra. fez análise?

Profa. Judith - Fiz minha primeira análise com a Dra. Adelheid Koch e, até hoje, sinto que existem sementes hibernadas deste trabalho, que, surpreendentemente, se transformam em flor. A sua imagem permanece viva dentro de mim.

A minha reanálise a fiz com o Prof. Frank Philips, que me permitiu abrir portas fechadas ou apenas entreabertas a novas estradas. Sou-lhe profundamente grata, pois ajudou-me a desatar as amarras que ainda me prendiam, impedindo de penetrar cada vez mais longe, nos sertões da minha mente e de outras mentes.

ide - Como a Sra. encara o fenômeno de famílias terem vários analistas em seu seio? A Sra. mesma tem duas filhas tentando trabalhar nesta área - estamos sempre tentando, não é? - e é muito comum a ocorrência de casais de analistas, tanto aqui como no exterior - sem dúvida a proporção é maior do que casais de engenheiros ou artistas, na população geral. O que a Sra. acha disto?

Profa. Judith - Eu penso que todo ser humano deve ser livre para escolher o caminho que quiser, porém, bastante inteligente, sábio e emocionalmente equilibrado, para saber se o que ele quer é, justamente, aquilo para o qual possui dons e capacidade. Se aliar qualidades, que julgo inatas, ao amor e à "garra" para seguir determinada profissão, certamente, será um vencedor. Na minha opinião, um analista já nasce feito, e o que podemos fazer pelos nossos candidatos é ajudá-los a desenvolver potencialidades.

Em uma família na qual vários membros são analistas, somente o resultado do trabalho de cada um deles poderá esclarecer se escolheram ou não o caminho certo. Quanto à maior porcentagem de casais de analistas relativa a casais de outras profissões, sinceramente, não tenho dados estatísticos para responder.

ide - Como a Sra. vê o mercado de trabalho para os analistas hoje? Acha que em relação à época que a Sra. iniciou, está melhor, pior ou não mudou?

Profa. Judith - É claro que tudo muda. Hoje, há um fator favorável: o maior conhecimento sobre psicanálise, mais pessoas desejando analisar-se. Entretanto, não podemos esquecer a situação econômica difícil que atravessamos, a luta competitiva e o número assustador de terapeutas das mais diversas precedências. Uma coisa, porém, parece existir, desde que iniciei a minha carreira: as condições individuais, muito especiais, de cada analista, como determinantes do seu sucesso, neste campo.

ide - Como a Sra. vê a expansão numérica, em termos de quantidade de membros da SBPSP?

Profa. Judith - Acolho com muita satisfação, interesse e entusiasmo. Espero, sinceramente, que todos se sintam no caminho adequado.

ide - O que a Sra. teria que comentar a respeito de uma opinião da saudosa Dra. Koch, que existiriam "analistas de divã" e "analistas teóricos"? Ela não escondia seu xodó pelos primeiros, embora seu trabalho não "desse IBOPE"...

Profa. Judith - A Dra. Koch era uma criatura excepcionalmente sensível e intuitiva e acreditava que um analista pobre destas qualidades, jamais conseguiria ajudar um paciente a atingir profundas estruturas. Chamavam de analistas teóricos aqueles, que, a seu ver, possuindo apenas ricos acervos culturais, eram frios, sem vida, incapazes de comunicação afetiva.

Penso que todo analista necessita possuir a riqueza tão apreciada pela Dra. Koch e um bom acervo cultural que lhe permita criar suas construções e interpretações. Psicanálise é muita ciência e muita arte e o cientista artista precisa de material para sua criação e realização. Quanto a não dar ibope, a posição da Dra. Koch, não concordo. Foi sempre muito considerada e admirada.

ide - Como a Sra. vê a questão da difusão da psicanálise? Há pelo menos dois grupos distintos: uns encaram como prioritária, uma campanha composta de cursos e aulas, de atividades de propaganda comunitária. Outros acham que a difusão que cabe aos analistas se faz pela própria prática da psicanálise. O que a Sra. acha?

Profa. Judith - Penso que a maneira mais profunda e segura de difundir a psicanálise, nasce da prática da análise, pois está ligada às pessoas que se beneficiaram através dela. Estas pessoas são capazes de difundir a psicanálise porque acreditam nela. Quanto à opinião do primeiro grupo acho que tem o seu valor desde que seja usada com bom senso, fins construtivos e não degenere em seus objetivos.

ide - Ainda dentro do espírito da pergunta anterior; a Sra. acha possível ensinar psicanálise?

Profa. Judith - Sinceramente, não. Já disse antes que para mim, o psicanalista já nasce feito e o analista, apenas contribui para desenvolver potencialidades. As qualidades necessárias para ser um analista, não se dão, não se vendem, não de compram, não se ensinam, nem se transmitem. Por isto, penso que a corrida às estrelas pode ocasionar perdas irremediáveis nos espaços siderais...

ide - Como a Sra. vê o (triste) fenômeno existente em todas as sociedades do mundo, de brigas e dissenções? A referência mais significativa para nós foram os problemas que Melanie Klein teve.

Profa. Judith - Ao tentar responder esta pergunta, convidaria a considerarem, mais gestalticamente, o problema, mergulhando-o no passado e estendendo-o a todas as sociedades do mundo, até chegarem, por exemplo, à Sociedade das Nações. As dissenções não são privilégio das sociedades psicanalíticas mas se encontram em todas as sociedades do mundo. Atingem povos, nações, raças, culturas, religiões, todos os grupos constituídos por seres humanos que, na sua essência, são portadores de vida e de morte e não conseguem relacionar-se sem ódio, inveja, voracidade, sadismo etc.

Partem, inevitavelmente, para o holocausto dos elementos que mais se destacam. Tentam destruir os gênios e sacrificam nas guerras a parte mais bela da sociedade humana, que são os jovens com seu direito à vida. O problema de M. Klein, essencialmente, é o problema que Freud e Bion tiveram que suportar.

E na noite dos tempos, o problema de Abel, Sócrates, Spinoza, Galileu, Mozart etc. É o problema de todos os que possuem "algo a mais"... E valendo-me da linguagem, através da qual expresso melhor os meus sentimentos, vou destacar um trecho que escrevi sobre "Caminhantes dos Serrados". Cerrados são grandes extensões a perder de vista, de árvores, pobres ressequidas, definhadas.

Uma igualdade de verde que se estende
E não se alça para o céu, fica no chão
Presa à mediocridade que domina,
E não permite algo novo, uma
ascensão.

Assim, os homens, árvores pobres dos cerrados
Se estendem em procissão sem deixar traços,
Numa linha, sem curvas, sem alturas
Sem talentos de gênios, rumo ao espaço...

De quando em quando, um jatobá se ergue,
E os vultos se quedam desvairados,
Pois, os grandes, os que criam, causam medo
E perturbam os caminhantes dos cerrados...

ide - A séria dissertação na Sociedade Inglesa foi colocada em termos científicos: acusavam os assim chamados kleinianos de serem duros e insensíveis e de atuarem com precocidade indevida e perigosa em áreas psicóticas da personalidade. Os "annafreudianos" advogavam maior "cuidado" e técnicas mais suaves; e a réplica foi uma contra-acusação, que eles seriam, por sua vez, "maternais" e que não faziam psicanálise, e sim terapia de apoio. Estas acusações mútuas se verificam em outros meios, inclusive nos eua e no Brasil: aqui sob o rótulo de que existiriam "bionianos", culpados pelo mesmo "crime" dos antigos "kleinianos". As acusações de volta também são semelhantes. O que a Sra. acha disto? Sendo algo que se repete no tempo e no espaço, seria o caso de "vinho velho em odres novos"? Sabemos que a Sra. já foi involuntariamente envolvida neste tipo de coisa. Pode nos contar sua experiência?

Profa. Judith - Creio que a minha resposta anterior abrange esta pergunta, a meu ver, ligada à patologia das sociedades. Haverá, enquanto o homem existir sobre a terra, os mesmos conflitos, sejam batizados em termos científicos ou literários. Os vinhos velhos como a idade dos homens foram sempre colocados em odres através das gerações. Dizem saber que fui envolvida neste tipo de coisas. Acho que sabem mais do que eu, pois, pessoalmente, nunca me envolvi nisto. Digo-lhes, com sinceridade, que há muito, nem mesmo me fazem sentido. Sobretudo, depois que percebi em que grau intenso funcionam as identificações projetivas e, evocando Pirandelo, compreendi a sabedoria das suas palavras: "Assim é, se lhe parece..."

ide - Como a Sra. qualifica o atual estado de coisas na SBPSP? Há manifestações expressas relativas a mudanças. A Sra. acha que elas estão mesmo ocorrendo?

Profa. Judith - As mudanças ocorrem independente da vontade do homem, a começar no seu próprio corpo. Todo crescimento constitui uma mudança precedida de desorganização para que haja uma nova organização. Este é sempre difícil para o ser humano que teme o desconhecido e se opõe com sua tendência ao estático, à inércia, provinda do instinto de morte.

Há, porém, mudanças sinistras. São aquelas em que a desorganização não é sucedida por uma nova organização mais produtiva. Desejo que as que estão acontecendo na nossa Sociedade sejam rumo ao progresso e à vida do nosso grupo.

ide - A Sra. acha que a humanidade evoluiu nestes últimos dez mil anos? Digo sob o ponto de vista mental do acesso ao inconsciente e do enfrentamento da agressão.

Profa. Judith - Sobre o ponto de vista do acesso ao inconsciente, claro que evoluiu muitíssimo. Negá-lo seria afrontar o gênio de Freud. Entretanto, quanto ao uso deste conhecimento no sentido de enfrentar a agressão, evitar as guerras e os holocaustos, bem pouca gente tem sabido usá-lo. Praza aos céus que o uso deste conhecimento seja muito mais positivo, e a agressividade usada para fins de morte seja transformada em agressividade pró-vida. Isto seria um fruto da sabedoria tão pouco utilizada pelo ser humano.

ide - Qual seria o "saldo" da sua experiência com os chamados psicóticos?

Profa. Judith - Creio que a análise pode ajudá-los a conviver melhor com a sua parte psicótica e com o mundo, sempre levando em conta, em cada caso, o grau de intensidade da sua destrutividade e a capacidade do analista para contê-la. Entretanto, jamais se transformam em outras pessoas mais harmoniosas. Vários casos que analisei vivem hoje socialmente bem e familiares e amigos acham que a análise foi um sucesso, embora eu não tenha uma opinião tão entusiasta. O limiar de suporte à frustração nestes pacientes é frágil e eu nunca sei se resistirão a um estímulo demasiado intenso que atinja seus pontos vulneráveis.

Desejaria acrescentar que analista e analisando são limitados e há casos que excedem o limiar de ambos na sua capacidade de conter a intensidade destrutiva. São os casos, no atual momento da psicanálise, considerados inanalisáveis por vários analistas. Resta a esperança que a teoria e a técnica se desenvolvam e, no futuro, estes pacientes possam ser mais ajudados.

ide - A Sra. diria que os loucos estão dentro ou fora do hospício?

Profa. Judith - Creio que em ambos os lugares; porém, há muita gente dentro dos sanatórios, menos perigosa, que os soltos por aí afora, perturbando a vida da humanidade.

ide - O Dr. Pierre Fédida fez a seguinte afirmação em sua conferência: que a única análise interminável é a do próprio analista que vai sempre, eternamente, se analisando, através dos seus pacientes. Quer dizer, por jamais "se curar", este espécimen, o dito analista, resolve ser analista de outros para continuar se tratando, Roger Money-Kyrle já havia dito isto, em outras palavras, há uns 10 anos atrás, quando afirmou que os pacientes se constituem em uma espécie de pós-graduação do analista, sendo, a graduação, a sua própria análise. Fedida completou seu comentário dizendo que só era uma brincadeira; Money-Kyrle falava sério - e nós vemos uma verdade profunda nisto. O que a Sra. comenta?

Profa. Judith - Acho um tanto exagerado o enfoque em que é apresentado o analista por Fédida e Money-Kyrle. Toda análise, a meu ver, é interminável seja a do analista ou a do paciente. Jamais o ser humano chega ao fundo do poço. E as experiências no decorrer da vida, para todos nós, analistas ou não, constituem a graduação e pós-graduação, quando bem aproveitadas.

Há, porém, infelizmente, pessoas que jamais se graduam na capacidade de viver a vida, quanto mais de chegar à pós-graduação, chamem-se elas analistas ou não. E o pior é que julgam graduados, pós-graduados, mestres, docentes e catedráticos.

ide - O Dr. James Grotstein, em entrevista ao ide, acha que as instituições sociais provêm um "locus" para um psicótico, que aí não é detectado como tal - é o caso daquele indivíduo que atendia pelo nome de Joseph Mengele e a Alemanha Nazista. Tal fato já era reconhecido pelos estudiosos da Psiquiatria Social. Seriam então todas as Instituições, não só os hospícios, deste tipo? E se as Sociedade de Psicanálise forem instituições, sociologicamente falando, como outras quaisquer, não proveriam tais "locus" também? O Dr. Wilfred Bion pensa algo semelhante, conforme expressa no volume III da sua obra póstuma, a "Memória do Futuro". A Sra. poderia comentar isto, com base na sua privilegiada posição de uma longa experiência?

Profa. Judith - Estou de acordo que certas instituições provêm, especialmente, um "locus" para o psicótico e, isto, na razão direta da patologia das estruturas. Sem nos referirmos ao caso Mengele e ao nazismo, sabemos que, ainda hoje, no nosso meio rural, um psicótico que reaja, violentamente, a qualquer frustração, é considerado, apenas, "um enfezado". Serve para matador e pode até ser disputado como jagunço. Uma certa debilidade mental não aparece. Um doente delirante, preso de alucinações, pode ser visto como "santo", "tomado do espírito". Há pouco, um médico dos Servidores foi baleado e seu companheiro morto, por um capitão psicótico, no norte do país, cujas ordens foram, religiosamente, obedecidas pelos soldados. E o problema levantado foi o seguinte: seria crime os soldados matarem ou crime desobedecerem ao capitão? A confusão se relacionava com o ponto do horizonte em que se colocava o observador. Nas guerras, mercenários se alistam, para satisfazer instintos sádicos, e são chamados de heróis, quanto mais matam. O soldado, porém, que se nega a matar, é considerado covarde e desertor.

Acredito que certas instituições são tão - estruturalmente - patológicas, que provêm esplêndidos "locus" para o psicótico; porém, creio que existem outras mais sadias, mais dominadas pelo instinto de vida, que proveem "locus" para o indivíduo crescer e desenvolver-se. Todas as instituições cujo campo está ligado ao interesse pelo conhecimento da mente e das emoções do homem atraem pessoas muito perturbadas, que criam a ilusão de, através delas, resolverem os próprios problemas. Os cursos de psicologia, psiquiatria, as Sociedades de Psicanálise oferecem esta atração. Aceitando termos a nossa parte psicótica e desejando melhor lidar com ela, creio que a maioria de nós, não a tenha em grau que nos impeça de viver, razoavelmente, e a ajudar outros a consegui-lo.

ide - Até que ponto sua vivência como fazendeira no cerrado - seu contato com um ambiente que produziu os tesouros de Guimarães Rosa - ajudou-a ou atrapalhou-a na psicanálise?

Profa. Judith - Uma mina de ouro produz ouro e não cascalho. Entretanto, pode ser que quem ache o ouro não tenha capacidade para reconhecê-lo. O camponês, que achou um preciosíssimo vaso chinês, usou-o para guardar o carvão da lareira. Não é o meu caso. O sertão, a natureza paradoxal dos trópicos, e, sobretudo, os seres extraordinários com os quais tenho contato, só têm fornecido ouro, diamantes, esmeraldas ao meu acervo de conhecimentos sobre o ser humano. Jamais o meu trabalho analítico enriqueceu-se tanto.

ide - Poderia dar uma contribuição aos leitores no que tange aos ditados populares? Sabemos que a Sra. é um depósito vivo desta rica herança de sabedoria. Conte pelo menos aquela do casal e das inconveniências de pessoas de fora se meterem! Ou outros que lhe ocorram...

Profa. Judith - Os ditados populares surgem, espontaneamente, na minha mente, nas ocasiões adequadas. No momento, não me ocorrem, talvez porque não seja a ocasião adequada.

ide - O que a Sra. acha de analistas desenvolverem atividades extra-analíticas? Não só como hobbies, queremos dizer.

Profa. Judith - O analista é um ser humano livre. Penso que poderá desenvolver as atividades que quiser, desde que preserve o espaço para sua função como analista e se discipline contra interferências. Isto, porém, é, extremamente, individual, depende das potencialidades de cada um. Há homens que podem exercer muitas funções dada a sua vitalidade, criatividade, capacidade de discriminação. Outros não conseguem manter a própria identidade.

ide - O que a Sra. achou da entrevista?

Profa. Judith - Muito agradável e gratificante.

 

 

 

1 Publicado na ide da SBPSP, n. 12, 1986.