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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.46 no.84 São Paulo jun. 2013

 

TRADUÇÃO

 

A metapsicologia passados quarenta anos1

 

 

O. Wisdom

 

 

O professor Wisdom, lógico e filósofo, é um velho amigo da psicanálise que tem observado com ativo interesse o desenvolvimento dos campos kleiniano e de relações objetais da psicanálise na Inglaterra. Suas contribuições representam uma crítica em profundidade do trabalho de Bion, apresentado em seu primeiro livro metapsicológico Aprendendo da Experiência, não abrangendo seu trabalho subsequente em Elementos de Psicanálise, Transformações etc. Como tal, ela constitui a crítica mais extensa já feita até agora de seus livros. Sua contribuição, de certa maneira, iguala-se àquela crítica também exaustiva de Matte Blanco. Ele esquadrinha cuidadosamente o minério das primeiras escavações de Bion, questiona as deficiências sem compromisso, e então chega aos ganhos que eles representam para a metapsicologia psicanalítica. Ele acredita, antes de tudo, que as formulações de Bion transcenderam às de Freud e Klein, mas, também alçou ambas a um status mais firme. Em especial, ele cita a importância da função-alfa como um aperfeiçoamento em relação ao processo primário; a novidade do conceito de uma "não-coisa" como o pré-requisito para o pensamento; a importância do modelo psicótico para o desenvolvimento infantil em lugar do neurótico; a origem do pensar na identificação projetiva dirigida ao interior de um continente maternal; o papel do sonhar em preservar a barreira de contato entre sono e vigília etc., Wisdom não deixa dúvidas de que o impacto que Bion causou, e ainda está causando, na psicanálise pode muito bem ser o mais significativo feito por qualquer pessoa desde Freud: e tudo isso, em função da crítica de um único livro de Bion

 

1. Introdução

Freud desenvolveu continuamente a sua metapsicologia, mas, sua complementação principal poderia ser considerada a de 1923, com a publicação de O ego e o id, ou talvez a de 1925, quando ele alterou radicalmente sua teoria da ansiedade. A partir daí, prestou-se bem menos atenção à metapsicologia. O crescimento da Psicologia do Ego, e as mãos do próprio Freud (mêsmo após os 70 anos), de Melanie Klein, de Anna Freud e de Fairbairn, estavam intensamente relacionados com os processos clínicos. Assim, o conceito de objeto transicional (Winnicott, 1951), para mencionar uma das contribuições adicionais mais conhecidas, apesar de encerrar sutilezas metapsicológicas, é clínico. Um certo número de conceitos metapsicológicos, de fato, foram se evidenciando: a fantasia criada pelo instinto de morte (esta ideia kleiniana está mais clara em Isaacs, 1952); amor primário (Balint, 1937); agressão neutralizada (Hartmann, Kris e Loewenstein, 1949); a esfera livre de conflito (Hartmann, 1939); o esquema corporal (Scott, 1952); a divisão tripartite do ego (Fairbairn, 1944); o papel central das relações objetais (Balint, 1935; Fairbairn, 1941). Todos eles possuíam em comum a função de esclarecer as neuroses. É verdade que alguns pretendem abarcar também as psicoses, mas somente a partir de um ponto de fixação diferente, sem levar em conta qualquer diferença específica nas manifestações clínicas: nenhuma se originara de um fenômeno puramente psicótico.

Uma nova arrancada foi dada por Bion (1962), exatamente ao tentar resolver um problema originado num fenômeno peculiar à esquizofrenia.

O problema confrontado por Bion, me parece, ligava-se às perturbações do pensamento na esquizofrenia. E por que surge este problema? Porque ao ouvir os esquizofrênicos produzindo ostensivamente pensamentos no divã, ele não conseguira compreender esses pensamentos como comunicação a respeito do mundo em volta ou em termos das teorias que aprendera. Sentiu-se, portanto, tentado a encarar estes pensamentos de alguma outra maneira para tentar compreendê-los. Percebe-se, de imediato, que ele estava às voltas com um duplo problema: a esquizofrenia e as perturbações de pensamento. Naturalmente, o segundo levanta a seguinte questão: o que é que produz a desordem de pensamento e o que é que induz o processo de pensamento a se desordenar? É assim, com efeito, que eu vejo a emergência de seu problema, e o que desencadeou sua bem-elaborada metapsicologia.

É preciso assinalar que esta metapsicologia de Bion não é uma teoria que se apoia na clínica, mas uma teoria estimulada pela clínica - nenhuma teoria apoia-se em observações, mas são somente estimuladas ou provocadas por elas, e esta não é uma teoria que ele construiu a partir da observação de esquizofrênicos, mas uma teoria que ele inventou por ruminar a respeito dos problemas do esquizofrênico.

O projeto de Bion poderia, em minha opinião, ser resumido como "Um retorno aos sonhos", porque uma de suas ideias mais interessantes, frutífera, e central é a ideia de que um esquizofrênico, pelo menos em algumas fases, não está nem adormecido nem acordado, já que o esquizofrênico não consegue sonhar. Isto talvez seja o indicador de que os sonhos, no fundo, são algo que merecem uma revisita. Freud disse que os sonhos eram a via régia para o inconsciente, e eu acho que Bion pode estar dizendo isto de novo, de outra forma. Não se trata dos analistas terem rebaixado a importância dos sonhos: mas, seja como uma ferramenta para pesquisa ou para aprimoramento da teoria, os sonhos não têm sido utilizados hoje como costumavam ser.

É essencial relacionar a metapsicologia na obra de Bion com as ideias metapsicológicas clássicas ou pós-clássicas, principalmente as de Freud e Melanie Klein, já que seu ponto de vista se aproxima ao deles. No entanto, antes de entrar nesta incumbência precisaremos avaliar detalhadamente suas ideias, formuladas no livro O aprender com a experiência (1962).2

 

2. Conteúdos

Bion ocupa-se de três temas principais: (i) O desenvolvimento de uma nova metapsicologia (por enquanto estou aderindo a esta expressão, face a seu uso disseminado); (ii) A aplicação desta nova metapsicologia ao problema do pensar e do aprendizado, ou seja, oferecer uma teoria a respeito de que consiste o pensar e o aprender, ou de como eles se originam; e (iii) A aplicação desta metapsicologia aos fenômenos do consultório. Poderia se acrescentar que há uma ligação entre (ii) e (iii): como o estímulo para o trabalho está obviamente nas desordens de pensamento dos esquizofrênicos, então os fenômenos do consultório ligados a falhas no pensar e no aprendizado surgem no mesmo contexto. Derivadamente, podia se dizer que Bion pretendia aumentar nosso conhecimento sobre a mente (e, portanto, sobre os neuróticos), explorando a psicose. É claro que ele poderia ter desenvolvido sua metapsicologia independentemente desses problemas práticos, num setting puramente teórico. Mas é um procedimento comum, e, de fato excelente, que um autor proponha uma nova teoria, visando desenvolvê-la na atmosfera de uma de suas aplicações3.

 

3. A Metapsicologia de Bion

É constituída de duas partes principais: (i) a primeira é a função da consciência e (ii) a outra é a teoria dinâmica; além disso, existe (iii) a relação entre as duas.

(i) Bion adota a visão tardia de Freud, de que a consciência é o órgão sensorial de percepção das qualidades psíquicas: ele rejeita a ideia de que a consciência tem a função de compreensão. Ele diz que isto induz a contradições, apesar de que eu não consigo vislumbrar quais seriam.

A teoria metapsicológica de Bion pode ser descrita da seguinte maneira:

(ii) Existe uma função-alfa - prima em primeiro grau do processo primário - que opera sobre as impressões sensoriais e as emoções (pp. 6-8). A função-alfa pode ser bem-sucedida, ou não. Quando bem-sucedida, ela produz elementos-alfa a partir das impressões sensoriais ou das emoções: os elementos-alfa podem ser armazenados para uso posterior - por exemplo, na construção de sonhos. Quando a função-alfa fracassa, as impressões sensoriais e as emoções "cruas" permanecem inalteradas e não se produzem elementos-alfa. Neste estado inalterado, elas são chamadas de elementos-beta: estes elementos não se prestam a serem armazenados, ou a serem usados nos pensamentos oníricos. Eles podem, no entanto, ser projetados. Os elementos-beta podem, porém, ser armazenados num outro sentido, quer dizer, constituir uma tralha da qual o próprio dono não se dá conta. Uma consequência destas hipóteses é que, se uma experiência emocional não puder ser transformada em elementos-alfa, não há matéria-prima para elaborar sonhos. Não há como transformar o material bruto em conteúdo manifesto.

A consequência mais imediata é que a falha da função-alfa, ao induzir a falha no sonhar, ipso facto significa que a pessoa não pode dormir: isto ocorre porque a função do sonho é preservar o sono, e não havendo sonho não há sono. Esta conclusão incisiva talvez precise ser alterada, tendo em vista pesquisas posteriores a respeito dos sonos sem sonhos.

Por outro lado, os objetos da consciência não são impressões sensoriais brutas, mas os derivados da operação da função-alfa sobre elas. Portanto, se a função-alfa fracassar totalmente, não teremos objeto de consciência. Neste caso, a pessoa não pode estar consciente, e, portanto, não pode estar desperta. No limite, assim, uma pessoa que não possua uma função-alfa eficiente e não produza elementos-alfa, não consegue nem dormir nem acordar.

Obviamente este seria um caso extremo, que nunca seria atingido, mas do qual se pode chegar perto4, já que Bion assinala que pacientes clinicamente psicóticos funcionam como se estivessem precisamente neste estado.5

(iii) Surge agora a questão de como se podem combinar os dois ingredientes da teoria. Para que os elementos-alfa possam operar, é preciso que haja consciência de um ou outro de dois campos - o das impressões sensoriais ou o das emoções. É por esta razão que Bion necessita da teoria da consciência, a saber, que ela é uma espécie de órgão sensorial para apreender as qualidades psíquicas.6

 

4. Consequências da teoria

(i) Uma consequência, segundo Bion, é a de que se existe um ataque destrutivo na função-a, isto pode destruir o contato consciente da pessoa consigo mesma, bem como com outras pessoas; como resultado, objetos animados cessam de ser representados ou são tratados como inanimados (p. 9). Sua explicação é interessante. De acordo com Bion, o amor do bebê é inseparável da inveja (pois o amor desperta ciúmes e inveja num terceiro excluído). A seguir, ele assinala que o bebê recebe tanto leite quanto amor do seio: como o amor desperta inveja, o bebê tenta se virar sem o seio. Mas, a evitação da inveja instila no bebê o medo da inanição que, no fim, o leva a retornar à alimentação. De modo a evitar o feedback positivo que aumenta esta inveja de forma insuportável, ocorre uma cisão entre as satisfações material e psíquica oferecidas pelo seio, quer dizer, o amor é negado e o que é aceito vindo do seio é o conforto material. Mais: o conforto material é obtido sem que sua fonte seja reconhecida (este tipo de cisão não tem nada a ver com aquele encontrado na posição depressiva).

No entanto, o anseio por amor permanece insatisfeito e constitui o dinamismo de uma voracidade contínua em busca de conforto material. Neste estado, assinala Bion, o bebê torna-se de imediato insaciável e implacável em sua busca de saciedade. Em outras palavras, ao sentir uma falta, o bebê tenta compensar a deficiência buscando algo que foi perdido, mas acaba ficando dependente ao extremo de conforto material: "O elemento que passa a governar é a quantidade, não a qualidade" (p. 11).

Nesta altura, Bion correlaciona o processo com a incorporação de elementos b (Não fica claro, porque a comida seria um elemento b. Quando o componente amoroso da comida foi eliminado, não acontece que a qualidade material da comida não seja reconhecida como tal, ou seja, ela não seria uma mera impressão sensorial, mas, sim, um objeto material. O fato de que ele continua a desapontar por não ser o objeto procurado, não altera o fato de que ele é um objeto, e não meramente um elemento b. Mas tentemos conferir o salto sutil aqui envolvido). Bion ilustra a posição através de um paciente que transforma todas as interpretações a ele oferecidas em algo inanimado, como se não passassem de ar quente. Assim, Bion elabora uma teoria do conforto que se aplica à vida em geral, mas que ele direciona para as situações de consultório, onde sua função é escapar às consequências da inveja. Quando esta atitude é dominante, a personalidade só pode ter relacionamentos com aqueles aspectos de si mesma que se assemelhem a autômatos.

(ii) Há uma outra consequência interessante da hipótese de que sem função-a uma pessoa não pode nem dormir nem acordar, por não poder sonhar. Para administrar as tarefas cotidianas, para as quais é preciso estar acordado, é preciso estarmos "adormecidos" em relação a outros elementos da personalidade. Uma consequência disto, é que a pessoa precisa estar tendo simultaneamente um sonho que represente estes elementos; em resumo, sem sonhar com uma parte da personalidade, a pessoa não conseguiria conduzir um discurso racional com alguém usando outra parte de sua personalidade (p. 15).

(iii) Isto leva a um novo desenvolvimento na teoria de Bion. Em função do que acaba de ser dito, um sonho forma uma barreira entre duas partes da personalidade, uma que gera elementos-alfa e a outra que usa o que foi formado. Sem a barreira, qualquer das partes pode submergir na outra. Vale a pena chamar a atenção para a comparação entre esta teoria e a clássica. Na teoria clássica, um sonho se defende de tentativas de penetração, quer dizer, de ter seus conteúdos latentes penetrados, e a presente teoria oferece uma explicação para isso. Na nova teoria encontramos equivalentes da censura e da resistência, e são eles que justificam a cisão entre consciência e inconsciência. O sonho, virtualmente protege a personalidade de entrar num estado psicótico. É por isso que Bion insiste na tenacidade com a qual o sonho se protege contra ser penetrado. (Seu comentário aqui não é totalmente diferente de Freud; afinal de contas, a razão fornecida por Freud do por que o sonho não iria entregar seus segredos, era em função do choque causado pela revelação dos desejos escondidos contidos no sonho. Bion acrescenta, no entanto, que estes envolvem estados psicóticos de grande força: a função do sonho é preservar a sanidade (p. 16), daí o psicótico temer perder por completo a capacidade de sonhar).

(iv) Bion agora considera outro aspecto da barreira, que ele denomina uma barreira de contato. Ela não só ajuda a separar coisas, mas também ajuda a juntá-las ou a comunicar. Sendo mais explícito, os elementos-alfa formados pela atividade da função-alfa, constituem em particular um sonho e em geral uma barreira de contato.

Há, no entanto, um fenômeno clínico que destoa com a ideia de uma barreira de contato. Com pacientes esquizofrênicos gravemente perturbados, Bion constatou que as interpretações habituais eram ineficientes e, então, finalmente, vislumbrou a ideia de que a torrente de pensamentos dissociados representava uma função-alfa defeituosa: isto impedia o paciente de usar sua consciência, a qual também não podia ser usada pelo analista quando ela era projetada nele. No entanto, não havia resistência à passagem de elementos de uma zona para a outra, o que o levou a conjecturar que, no lugar de uma barreira de contato, aquilo que se formava era uma barreira-beta: esta presumivelmente é constituída por um aglomerado de elementos-beta, passando livremente do paciente para o analista, mas se aglomerando com grande densidade entre os dois, formando assim um anteparo-beta. Isto sugeria interpretações específicas: o propósito do anteparo-beta é evocar no analista o tipo de resposta que o paciente deseja.

De acordo com a teoria clássica, há um processo cuja função é descarregar a psique de acréscimos de estímulos (p. 24): Bion estava em condições de dar uma nova interpretação para isso. Ele notou que as observações do esquizofrênico aproximavam-se mais deste processo do que o conteúdo de suas falas7. A ideia clássica era não-objeto relacional. A interpretação de Bion é, por assim dizer, "semi-objeto relacional", no sentido de que este processo visa controlar o analista e torná-lo um repositório destes acréscimos; neste sentido, transformando-o num objeto pessoal, mas nada além disso. Ele não é encarado como uma pessoa em si mesmo.

(v) Bion considera que a substituição de uma barreira-de-contato por um anteparo-beta é equivalente a uma regressão da posição depressiva para a posição esquizoparanoide. Uma tal regressão implica uma reversão da direção da função-alfa com destruição da barreira-de-contato. Os ingredientes da barreira-de-contato, em vez de serem elementos-alfa, são desnudados de quase todas suas características e permanecem como elementos-beta. Isto, no entanto, não é uma transformação exata em elementos-beta, porque a reversão de elementos-alfa em elementos-beta contém traços de atividade egoica e superegoica. Os objetos bizarros são os que mais se aproximam da realização do conceito de elemento-beta.8 Bion considera ainda que o elemento-beta, que é constituído só de impressões sensoriais, é, no entanto, encarado como se as impressões sensoriais fossem parte da personalidade, de um lado, mas constituíssem uma coisa-em-si, por outro.

 

5. Pensando e aprendendo

Bion promove agora uma aplicação mais avançada da sua teoria das funções à teoria dos processos de pensamento (p. 28).

(i) Ele começa com a ideia de Freud, de que o pensamento preenche o hiato entre uma tensão e sua descarga quando há um atraso na mesma, isto é, o pensamento é um modo experimental de ação. A ideia de Freud envolve claramente a intolerância de frustração, já que a tensão busca um alívio através do pensamento, deste modo, retardando a descarga de acréscimos de estímulo por parte da psique.

Bion assinala, a partir da evidência clínica, que o bebê não consegue fazer distinção entre o material e o psicológico, mas afirma que isto não é tão importante como a decisão do bebê quanto a se evadir da frustração ou a modificá-la. Se a tendência for a evasão, o que se tenta conseguir é uma diminuição do acréscimo de estímulos através da identificação projetiva. Isto envolve não só fantasias irrealísticas, mas também fantasias realísticas, ou seja, ações que de algum modo satisfazem as fantasias. Por isso, Bion faz uma revisão da teoria do princípio de realidade, operando simultaneamente ao princípio do prazer e não se sucedendo a ele. O fato de podermos realizar a fantasia na realidade pressupõe certo grau de contato com a realidade. Diz Bion: "A habilidade do paciente de articular sua fantasia onipotente de identificação projetiva à realidade está diretamente relacionada à sua capacidade de tolerância à frustração. Se ele não puder tolerar a frustração, a fantasia onipotente de identificação projetiva possuirá proporcionalmente uma menor contraparte factual na realidade externa" (p. 32). Acho que o que Bion está apontando aqui é que, como o pensar envolve tolerância à frustração, se a identificação projetiva predomina, o pensamento fica impedido de surgir. Retornaremos a isto posteriormente.

(ii) Bion afirma que a identificação projetiva não pode ocorrer sem introjeção, uma tentando evacuar os objetos maus, a outra tentando acumular objetos bons: ele, então, passa a discutir esta questão.

Valendo-se novamente do fato de que o bebê ingere tanto amor quanto alimento ao seio, e notando que o estômago é um repositório de leite, ele indaga qual seria o repositório de amor. Como isto não tem resposta óbvia, ele parece dar uma resposta hipotética: de que o seio não é algo puramente físico, mas sim um seio psicossomático, e que o bebê possui um canal alimentar psicossomático. Ora, a mãe pode discernir um estado de mente no bebê antes que ele possa percebê-lo, por exemplo, a necessidade de comida. Numa tal situação, a necessidade do seio é um sentimento e não meramente uma provação fisiológica.

Neste ponto Bion fornece um enunciado categórico de profundo significado que, presumidamente, pretende ser uma hipótese interpretativa explícita. Ele diz que o sentimento da "necessidade do seio" é em si mesmo um "seio mau", e ele avança sugerindo que o bebê não sente que deseja um seio bom, mas sente, sim, que deseja evacuar um seio mau (p. 34). (Esta é uma conjectura fundamental e importante, e é de se lamentar que, juntamente com um ou dois exemplos isolados, Bion formule uma nova teoria tão importante como se fosse um fato9). A partir daí, ele propõe o seguinte desdobramento. Durante o estado de fome, alimentar-se pode ser indistinguível de evacuar um seio mau. Ele então diz que, mais cedo ou mais tarde, o seio necessitado é sentido como uma ideia de um seio bom faltando, e não como um seio mau presente, esforçando-se para explicar como é que esta transição fundamental ocorre. Diz ele: "Seria um 'pensamento' o mesmo que uma coisa ausente? Se não existe 'coisa', seria a 'não coisa' um pensamento, e seria em virtude do fato de que existe uma 'não coisa', que podemos reconhecer que 'isso' só pode ser um pensamento?" (p. 35). (Isto pode soar ao leitor como uma artimanha, mas no fundo está expresso com rigor, se bem que para compreendê-lo é preciso acompanhar cuidadosamente o sentido das aspas)10. Talvez fosse mais fácil se expressássemos o processo assim: Fome = seio mau presente → (através do teste de realidade e possuindo uma mãe capaz de receber uma projeção do seio mau) um seio de fato não está presente → {seio ausente = "seio mau presente", é um pensamento}. (Eu indagaria se a reconstrução corajosa de Bion, ao basear-se na discriminação de um sentimento em relação à realidade externa, não pressupõe a existência de um pensamento em vez de revelar o processo de um pensamento passando a existir, e pressupondo, ao mesmo tempo, a percepção da existência da realidade externa).

Bion desenvolve esta linha de investigação ainda mais, no caso de um bebê que é alimentado, mas não se sente amado. Aqui, o bebê está cônscio da necessidade de um seio bom, mas novamente ele equaciona a necessidade-de-um-seio-bom com um seio-mau-que-necessita-ser-evacuado. Ora, a partir das experiências dos seios bom e mau, o componente material de se sentir saciado ou privado de leite pode gerar uma impressão sensorial e, portanto, atribuir uma prioridade cronológica aos elementos-beta sobre os elementos-alfa. Intolerância à frustração, se muito forte, pode ser enfrentada pela evacuação imediata de elementos-beta, curto-circuitando a formação da função-alfa. Acho que aquilo que Bion está sugerindo é que, se os elementos-beta puderem ser evacuados com êxito num receptáculo adequado (que ele se dispõe a discutir), este fato poderia servir (se é que o entendo corretamente) para estabelecer a discriminação entre a fantasia de um seio mau e a realidade de que nenhum seio está presente. De qualquer modo, de uma forma ou de outra um seio ausente precisa ser reconhecido como uma ideia. Em outras palavras, a ausência de uma coisa precisa ser transformada num pensamento.

(iii) Bion retoma agora a questão do receptáculo para o componente amoroso do alimento oferecido ao bebê: ele sugere a hipótese (p. 36) de que o amor absorvido pelo bebê é gerado pelo rêverie da mãe. Pode-se então conjecturar qual seria o tipo de órgão receptor que o bebê precisaria ter para aproveitar o rêverie.

Levantando a questão dos fatores subjacentes à capacidade de rêverie da mãe, Bion torna-se capaz de expandir sua resposta quanto ao tópico precedente. Ele sugere que a identificação projetiva11 da necessidade de um seio, sentido como seio mau, que permitiria o surgimento da ideia de um seio ausente, torna-se possível numa dada condição: qual seja, a de que o rêverie materno seja capaz de acomodar a identificação projetiva - que o rêverie materno consiga fazê-lo, ele entende ser uma hipótese. (Surge a objeção de que Bion está explicando a discriminação entre fantasia e realidade através de hipóteses que pressupõem um canal de comunicação entre eles, e, portanto, pressupõe que fantasia e realidade já estão discriminadas. Apesar desta ideia ser atraente, a forma como ela é desenvolvida parece falsa, pois sem a existência prévia de um método de comunicação a identificação projetiva não poderia encontrar um destino).

Com isto, Bion conclui sua resposta a como uma necessidade de um seio sentido como seio mau é substituída pelo pensamento de um seio ausente. Precisamos, agora, ligar tudo isto com o tema do pensar.

(iv) Um bebê capaz de tolerar frustração pode se permitir possuir um senso de realidade, segundo Bion, e também, presumivelmente, ser capaz de pensar. Caso contrário, mecanismos onipotentes entram em ação, em especial a identificação projetiva. Se a mãe for capaz de aceitar as identificações projetivas, a frustração pode ser sustentada mais facilmente. Se ela for incapaz de entregar-se ao rêverie, ou se o rêverie acontecer, mas não estiver associado com o bebê ou seu pai, Bion entende que isto, de alguma maneira, será comunicado ao bebê; assim, uma carga adicional será lançada sobre a capacidade do bebê de tolerar frustração e, provavelmente também, em sua capacidade de pensar. Portanto, a inabilidade de tolerar frustração e, em consequência, a inevitabilidade da identificação projetiva, criará um curto-circuito na capacidade de pensar. No entanto, a identificação projetiva, de acordo com Bion, é uma forma primitiva da capacidade para pensar (p. 37). Acho que ele está querendo dizer que, apesar de que a identificação projetiva em certas situações solapa o pensar, num nível mais primitivo promove uma forma de pensar rudimentar, à medida que leva a uma discriminação entre um seio ausente e um seio mau presente, ou seja, entre fantasia e realidade.

Em resumo, Bion explica o pensar como resultado de tolerar a necessidade de um seio sentido como ausente, e isto como resultado de tolerar uma necessidade-de-um seio que não seja sentido como um seio mau a ser evacuado: assim, a necessidade passa a ser reconhecida como se referindo não a um seio-mau-sentido-como-presente, mas como uma ausência-de-um-seio, quer dizer, como um pensamento.

Posteriormente, Bion propõe a ideia de uma "pré-concepção", algo que ainda não é uma concepção. Isto provavelmente já pertence ao contexto presente, mas, como é algo incerto, é mais prudente discuti-lo mais tarde12.

 

6. Elucidações adicionais

Enquanto eu expunha a teoria, expus alguns questionamentos ou críticas incipientes sob colchetes, para registrar uma dificuldade sem desviar muito a atenção do leitor. Vou comentar agora as principais junto com uma ou duas questões ainda não mencionadas.

(i) Bion teve alguns problemas com lógica e metodologia, e eu gostaria de assinalar que este procedimento de inventar um conceito indefinido, como função-alfa, cujos atributos emergem a partir do uso ao qual ele é colocado, está longe de ser não científico, é um instrumento bem reconhecido e de importância básica nos altos voos da ciência. Nós encontramos uma definição de força gravitacional no início de um trabalho sobre mecânica celeste? Você vai encontrá-la em algum outro lugar do trabalho? Ela está vagamente relacionada àquela força com a qual você está familiarizado quando você fecha uma porta que está aberta - mas, não está relacionada de forma explícita. Quando Maxwell introduziu seu conceito de "força de deslocamento" em suas equações eletromagnéticas (sendo o eletromagnetismo, quase sinônimo destas equações), ele a definiu? Ela parece um tiro que sai pela culatra. Mas o nome em si já é uma admissão de que, como Bion, ele tinha pouca coisa de específica a dizer a seu respeito. Na mecânica quântica, o conceito fundamental de onda já foi definido? O que se conseguiu foi uma expressão matemática que, nos casos simplificados, descreve uma onda na água. Freud, com igual legitimidade, fez o mesmo quando introduziu o conceito de libido. Tais conceitos não admitem objeção em termos metodológicos, mas só no terreno científico, quer dizer, se a teoria da qual eles são parte falha em fazer aquilo que pretende, ou seja, explicar alguma coisa, ou mesmo se demonstrar imune a testes.

Independentemente de encararmos a metapsicologia uma coisa boa ou não, no que concerne àquilo que ela tem de bom, foi Bion quem lhe fez um acréscimo de peso desde Freud. O acréscimo de Bion - seja certo ou errado - é mais poderoso em seu escopo, pois pretende explicar os processos básicos do funcionamento mental13.

(ii) Sobre o que a função-alfa opera? A matéria-prima, antes de ser integrada num objeto através da função-alfa, consiste, segundo Bion, de impressões sensoriais e emoções. Não é necessário identificar as impressões sensoriais com aquilo que os filósofos denominaram de "dados dos sentidos", sobre os quais existe um razoável consenso de não existirem. Mas, se existe algum tipo de impressão antes da operação da função-alfa, há de consistir numa vaga coleção de cores (despossuídas de qualquer definição espacial atribuída aos dados dos sentidos): eu chamaria esta experiência de um "caleidoscópio perceptivo". Um tal caleidoscópio cessa de existir uma vez sofrendo a ação da função-alfa, à medida que é transmutado na aparência perceptiva de objetos espaciais. Na esfera emocional, o que corresponderia a isto? Uma emoção é uma entidade formada, com uma estrutura e manifestações. Uma aparência perceptiva não o é. No entanto, Bion as trata como coisas paralelas. O que ele necessita é a manifestação de uma emoção, como um paralelo a uma aparência perceptiva encarada como manifestação de um objeto. Estas seriam, presumivelmente, prazeres e dores sensoriais: aquilo que Ryle chamou adequadamente de "cólicas" (pertencentes a uma emoção), referindo-se, por exemplo, (como manifestação de raiva), a um sentimento específico e indiscutível, do qual uma descrição inadequada poderia ser a de um sentimento de queimação agitada (possivelmente localizada no estômago). Para completar este relato, eu acrescentaria a ideia de um "caleidoscópio emocional" que, quando operado pela função-alfa, se transformaria em emoções, acompanhadas de suas manifestações.

A função-alfa, então, passa a se ocupar do caleidoscópio perceptivo para criar objetos e aparências perceptivas, e a se ocupar do caleidoscópio emocional para criar estruturas formadas por emoções e por suas manifestações sensoriais, isto é, o caleidoscópio emocional transmuta-se em cólicas formando a linha de frente das emoções.

Assim, em cada domínio, percepção e emoção, existiriam três entidades: o caleidoscópio perceptivo, a seguir (após a integração) uma visão (como diria Woodger) de um objeto espacial (e uma visão de um objeto espacial): e, correspondendo a caleidoscópio, visão e objeto, temos prazeres e dores sensoriais, cólica de uma emoção, e cólica de uma emoção, ou sensação/cólica e emoção. Se a operação da função-alfa falhar, o caleidoscópio e os prazeres sensoriais não podem ser experienciados (se bem que pode se tentar uma aproximação deles através de ardis artificiais): eles permanecem sendo aquilo que Bion chama, na esteira de Kant, de coisas-em-si-mesmas.

Bion não amplia esta questão; eu o fiz porque uma tal ampliação faz-se necessária para compreender esta teoria adequadamente, mas, mais especialmente, de modo a podermos apreender a natureza dos elementos-beta.

(iii) A significação do "elemento-beta" não deixa de ser inocente: trata-se da experiência que é incorporada, quando a função-alfa cessa de operar. Ora, Bion ilustra um elemento-alfa através de uma imagem onírica, mas não ilustra de fato um elemento-beta14. Isto ocorre porque ele é uma coisa-em-si que não pode ser percebida ou descrita, já que somente os resultados da operação da função-alfa é que podem ser comunicados. Mas, nos termos da secção precedente (se ela representa bem a Bion), poder-se-ia dizer que o "elemento-beta" denota elementos do caleidoscópio sensorial ou que corresponde aos prazeres ou dores sensoriais.

A tese de Bion é que, ao não serem trabalhados pela função-alfa, não há nada que se possa fazer com eles, salvo evacuá-los por um tipo qualquer de projeção: a projeção torna-se o único processo psíquico disponível para fazer qualquer coisa com eles.

Isto não representaria uma dificuldade, não fosse o fato que Bion encara o leite material (isto é, o leite do qual o componente de amor foi removido) como um elemento-beta (p. 11). Isto me parece estar completamente errado. Na realidade, é verdade que existe uma substância tipo leite material feito de proteína, carboidrato, gordura, água etc., sem conter qualquer componente psíquico.

A cisão em todas nossas personalidades, que nos habilita a reconhecer isto, é um ativo pessoal indispensável: ele nos capacita a reconhecer uma substância puramente material a qual, no entanto, é integrada ou elaborada, através da função-alfa.

Não é fácil aprimorar esta parte da teoria, mas podemos tentar fazê-lo.

Não é garantido que Bion de fato pretendia equacionar o conforto material com os elementos-beta: esta afirmação podia ser devida a um erro tipográfico ou a uma licença de linguagem. Ele igualmente equaciona o leite e o conforto materiais com os objetos "bizarros" (também na p. 11); de fato, diz ele, "Clinicamente o objeto bizarro que está impregnado com características do superego aproxima-se de fornecer uma realização que corresponda ao conceito de elementos-beta" (p. 26). Os objetos bizarros são elementos-beta evacuados que são reintrojetados e dotados com características de superego.15 Evidentemente, se bem que os elementos-beta puros podem ser submetidos somente à projeção, os elementos-beta reintrojetados podem ser submetidos a um processo que os dota com características superegoicas, e este processo poderia parecer representar algum fator na função-alfa, segundo a descrição de Bion desta função. Esta conclusão, no entanto, mesmo não sendo necessariamente errada, está contra o espírito de sua teoria.

Possivelmente sua avaliação dos objetos bizarros não foi suficientemente considerada. Porque será que, incidentalmente, ele não teria dado a eles um nome mais ou menos sem sentido, como objetos "beta-superegotizados"? Teria sido útil reservar o nome objetos "bizarros" para realizações clínicas de elementos-beta-superegotizados. Uma ideia alternativa se impõe, se usarmos uma das ideias do próprio Bion, envolvendo não elementos-beta, aos quais se acrescente uma pequena quantidade, mas elementos-alfa dos quais se subtraísse uma enorme quantidade: se ocorrer alguma falha na função-alfa, os elementos-alfa se tornariam distorcidos ou com suas propriedades empobrecidas. Um tal conceito, daquilo que poderíamos chamar de elemento "alfa-betaficado", poderia também encontrar realização em objetos bizarros vistos na clínica, e estaria mais de acordo com o espírito da teoria.

Um tal conceito poderia estar ligado ao conforto material? Poderíamos imaginar passos de um processo hipotético da seguinte maneira: o elemento-alfa (por exemplo, o leite psicossomático portador de amor e componentes materiais) sofreria interferência de inveja→leite material = um objeto unificado (ou seja, um componente que não seja excindido16) quando o componente afetivo não está sendo especialmente desejado, mas = elemento-alfa-betaficado, quando o afeto é desejado.

Neste sentido, seria possível avaliarmos o reconhecimento da realidade do leite como uma substância material, e aceitarmos que ele fosse aparentemente tratado como um objeto bizarro.

 

7. Deficiências

Até aqui, a meta principal tem sido elucidar ideias e não discutir a importância das teorias de Bion, ou se elas são verdadeiras ou falsas.

A teoria como um todo se refere à função-alfa e a seus distúrbios. Bion não nos fornece qualquer pista quanto ao que causaria sua disfunção e como isto ocorreria,17 mas, possivelmente, ele correlaciona isto com intolerância à frustração. Presumidamente, ele poderia se servir de qualquer das teorias já existentes, por exemplo, uma oposição entre sexualidade e agressão, ou aquilo que eu algures denominei de "esforço nuclear" entre atitudes positivas e negativas. Neste sentido, Bion, aparentemente, não considera se a função-alfa cresce, se desenvolve, amadurece, ou atinge graus variáveis: ela surge acabada desde o início, ou sua disfunção poderia ser atribuída a uma falta de maturação? Sua teoria não necessita de tal ideia, mas poderia desdobrar-se desta forma. Necessita-se, no entanto, de uma outra teoria da disfunção.

Eu já mencionei que, ao formular a origem do pensar e da comunicação, Bion não me parece ter conseguido um acordo, apesar de estar trabalhando na direção correta, pois sua estimativa pressupõe o pensar e a comunicação. Retomarei isto mais tarde.

Não consegui captar como a teoria de Bion de que a origem dos pensamentos surge com o "não-seio" tem como pressuposto a teoria das funções. Parece que sua teoria - ou qualquer outra que a substituísse - poderia ser sustentada independentemente. No entanto, o livro foi concebido para conseguir elaborar uma teoria do pensar baseada numa metapsicologia das funções.18

 

8. Conquistas

A teoria das funções de Bion vale-se de um buraco deixado pela teoria já existente entre a libido e os objetos perceptivos. Colocada desta maneira, sua teoria poderia parecer um elo minúsculo, mas é espantoso o quanto ele conseguiu extrair de tão pouco. E nos dá uma medida do poder de uma teoria, quando um fragmento de teoria é rico em consequências.

A teoria de Bion nos conduz a um número de resultados, consistindo (em alguns casos) de explicações melhoradas, em comparação com a teoria clássica e, num certo sentido, com a teoria kleiniana, ou de novas explicações em que a teoria clássica e a kleiniana não oferecem qualquer explicação. Entre aquelas que poderiam ser consideras novas estão: 1) a repressão, a censura e a resistência; 2) os pesadelos em termos comuns (não restritos ao tipo histeriforme discutido por Ernest Jones); 3) a intensidade da repressão pela ideia que os elementos subjacentes são um caldeirão melhor compreendido como psicótico do que neurótico; 4) a explicação sobre a falta de repressão na esquizofrenia; 5) uma nova explicação de torrentes de acréscimo de estímulos; 6) o equacionamento de um pensamento com uma "não-coisa"; 7) o pensamento encarado como sendo o resultado de se tolerar a necessidade de evacuar e de recorrer à identificação projetiva; 8) uma ideia (se bem que talvez mais uma indagação do que resposta) a respeito da posição do componente-amoroso do leite. Além dessas, eu acrescentaria que a teoria contribuiu à solução do problema da compulsão à repetição: ora, a tentativa de formar elementos-alfa deve continuar indefinidamente, mesmo que o único ganho seja o de funcionar como receptores de elementos betaficados, malgrado serem indesejados e frustrantes. Estas consequências são incidentais, no sentido de não serem a finalidade principal do trabalho; elas são, no entanto, de grande significado, pois tais possibilidades sempre constituem um teste de uma nova teoria.

Bion parece ter se concentrado, primordialmente, em explicar certos fenômenos clínicos que se contrapõem às teorias já existentes, pois, sem uma explicação correta, ele não conseguiria abordar pacientes nos quais ele identificava estes fenômenos. Os fenômenos em questão seriam: 1) tomarem as interpretações do analista como ocas/ruim/inúteis, e, no entanto, desejá-las cada vez mais (p. 11); 2) usarem a linguagem não para comunicar, mas sim para converter o analista num receptáculo de produtos a serem excretados, e, portanto, indesejados (pp. 13-14); 3) estados nos quais um paciente parece, em última análise, nem estar dormindo nem acordado (p. 7); 4) estados em que o paciente parecia depositar sua consciência no analista, transformando-se num inconsciente inativo (pp. 20-21).

 

9. Relação com a teoria freudiana e kleiniana

Seria importante especificar com que teorias estas avaliações clínicas conflitam:

A teoria kleiniana parece implicar que se buscam objetos bons, enquanto os objetos maus não são buscados. Melanie Klein tinha plena consciência que as coisas não eram assim, mas ela não desenvolveu sua teoria o suficiente para abranger esta questão. Os achados clínicos de Bion não estão em conflito com o espírito de seu trabalho, mas, sim, com sua teoria, à medida que esta seja explicitamente formulada.

Seus achados clínicos conflitam com o postulado fundamental de que todo esforço é objeto-relacional. Segundo seus achados, este postulado deveria pelo menos sofrer uma pequena modificação.

A teoria onírica clássica e pós-clássica implica que uma pessoa está sempre ou adormecida ou acordada. As observações de Bion (que nada tem a ver com estados de transe) requer que isto seja levemente modificado.

A teoria clássica e a pós-clássica sugerem que o inconsciente está submerso abaixo do consciente: o achado de Bion é que, na esquizofrenia, este não é necessariamente o caso (e, de outras maneiras, isto já tinha sido há tempos reconhecido, já que os esquizofrênicos podem exibir particularmente fenômenos que, segundo a teoria clássica, teriam que ser reprimidos).

Assim sendo, não é que Bion tenha se afastado muito da teoria clássica, e sua discordância com a teoria kleiniana também é mínima. Mas ele chegou a afastar-se o suficiente de ambas, a ponto de levá-lo a buscar uma nova teoria para lidar com as discrepâncias, e esta teoria parece preencher a promessa de genuína inovação. Para conseguir ser julgada como possuidora da marca registrada de uma "teoria cinco estrelas", isto dependerá de conseguir gerar novas consequências (aí incluídas as falsas).

 

10. Consequências involuntárias

Onde devemos buscar resultados independentes, no sentido de fenômenos insuspeitados advindos da teoria, que possam ser encontrados, desde que especificamente buscados? Uma possível resposta poderia ser a descoberta de um padrão de maré oscilante na psicopatologia de uma pessoa, variando de acordo com o tipo de rêverie que prevaleça em seu parceiro(a) ao longo do tempo. Outra resposta pode ligar-se aos grupos: coesões e dissensões nos grupos poderiam ser explicadas em termos dos graus de tolerância aos elementos-beta, levando a novas discriminações de tipos de solidariedade grupal fundadas num acolhimento mútuo da função-alfa ou, na aceitação mútua de projeções-beta que desconsideram os parceiros envolvidos (gangues?): detectando-se a situação grupal que pudesse "betaficar-se", seria possível antecipar a instalação de um cenário de luta-fuga. Através de investigações eletroencefalográficas, poderia ser possível dizer quando um paciente em análise, submetido a um eeg, estava tendo um sonho pré-consciente, ou não, enquanto fornece suas associações. Mas, mencionar tais possibilidades gerais não nos faz avançar; o que necessitamos é pensar em detalhe como uma dessas possibilidades poderia evoluir e, aí sim, ser antecipada; no entanto, mesmo sem isso, a teoria precisa ser respeitada, já que encerra todas estas possibilidades.

Tendo completado a exegese das teorias de Bion com um certo detalhe, juntamente com uma comparação de suas conclusões com aquelas de Freud e M. Klein, uma estimativa das novidades e uma avaliação do significado, volto-me para questões amplas de metapsicologia visando considerar as relações básicas entre as metapsicologias de Bion, Freud e M. Klein e, neste campo, discutir algumas questões fundamentais.

Esta tarefa pode ser convenientemente enfrentada no contexto da seguinte questão: "Como seria a mente de um bebê com a idade de zero dia, ao proferir o primeiro grito?". Esta é uma questão fundamental para os psicanalistas, mas, em nenhum trabalho encontramos uma resposta oficial, mesmo que opinativa. Existirão coisas como impressões perceptivas e sensações de prazer e dor, mas nenhum analista defenderia que na idade zero a mente seria como uma película de cera, uma tabula rasa lockeana, nada mais que um receptáculo para tais impressões. Deve haver algum tipo de estrutura: que tipo de estrutura mínima seríamos tentados a postular? Por exemplo, no momento zero de vida a mente teria ou não um inconsciente? Como tentar responder a isto? Eu sugeriria que, de acordo com Freud, a mente no momento zero possuiria um inconsciente. Digo isto pela seguinte razão: Freud afirmava que todo ser humano tem instintos; ora, os instintos são biológicos e, portanto, presume-se que eles não surjam subitamente, mas que estejam no organismo desde o começo. Os instintos são representados pela libido como uma representação psíquica, e não há razão para duvidar que a representação psíquica não seja concomitante aos instintos desde o começo. Portanto, uma parte importante do inconsciente, como Freud o entendia, deveria estar presente desde a idade zero. Eu diria até mais, se não houvesse inconsciente na idade zero, a criança não teria mente estando dormindo.

Que outros elementos poderíamos querer instalar na mente do bebê? Uma lista de possíveis candidatos seria: instintos, pulsões e libido, processos primários, fantasias, objetos internos, uma entidade descrita por Freud como "ego corporal" e, finalmente, função-alfa e os fatores desta função.

Ignoremos os instintos por serem biológicos e representados psiquicamente pelas pulsões e libido, ambos diferentes facetas da mesma coisa. Os processos primários não passam de modos de sua operação. Voltaremos a isto em breve, mas, qual seria a relação entre fantasia e objetos internos?

A fantasia no sentido kleiniano eu entendo como sendo o trabalho da mente no palco interior, ou seja, é aquilo que a pessoa faz com ou para seus objetos internos. Deste modo, parece ser possível discriminar entre uma fantasia e um objeto interno: mas, um objeto interno não poderia ser uma fantasia? Ao resenhar um trabalho recente de Guntrip, Rycroft creditou a Guntrip de ter feito uma simplificação ao reduzir estas duas concepções a uma só (a captação de Rycroft foi reconhecida por Guntrip como sendo sua intenção). Eu diria que esta é uma política equivocada, é certo que os processos de fantasia poderiam inicialmente criar objetos internos e, secundariamente, usá-los. Mas estes seriam dois processos ou entidades diferentes: e, se quisermos chamar a ambos de fantasia, teríamos que distingui-los como dois tipos de fantasias. Assim, poderíamos igualmente chamar o primeiro de objeto, e preservar a distinção conveniente entre um objeto interno e uma fantasia.

Consideremos, agora, como eles poderiam se relacionar com a libido. A libido é não-objeto-relacional e, no entanto, ela liga-se ao final das contas, quando ela se libera de uma fase primária narcísica, a objetos, de modo que existe o problema de se relacionar a libido a objetos. Parece-me possível encarar a fantasia como um veículo que transporta a libido. Na teoria kleiniana, o conceito de algo libidinal é certamente usado, mas de modo diferente do conceito clássico, pois, em Freud, a libido é não-objeto-relacional. Como um modo de correlacionar o objeto-relacional com o não-objeto-relacional, eu estou sugerindo que a libido pode ser encarada como um fluido pulsando nas veias da fantasia. É preciso, no entanto, reconhecer que um tal conceito de libido diferiria em alguns aspectos importantes daquele de Freud. As leis dos processos primários se tornariam, então, não leis da libido, mas da fantasia.

Até aqui temos a possibilidade de termos uma combinação (sem precisarmos nos comprometer com ela) de sensações, libido, fantasias e objetos internos, na idade zero. Nada se disse sobre o recém-nascido possuir um "Eu" ou um ego, de ser um self ou uma pessoa. Apesar de que fantasia e objetos internos possam sugerir uma tal entidade, nem a sensação nem a libido o fazem. No entanto, a concepção de Freud de um "ego-corporal" sugere, pelo menos, alguma integração rudimentar de sensações: seria preciso, no mínimo, um centro rudimentar de comunicação. E, sendo assim, será que um centro simples desses não seria suficiente para ligar sensações a fantasias?

Isto estaria mais ou menos de acordo com o quadro inarticulado da mente do bebê fornecido pela teoria psicanalítica, como a conhecemos de Freud, M. Klein e Fairbairn. Onde a função-alfa e seus fatores se encaixam nestas teorias, se é que este encaixe existe?

A função-alfa tem toda a aparência de ser um processo primário ou uma forma geral de todos os processos primários. Recordando quais seriam, eles incluem os clássicos ligados à teoria dos sonhos, a saber: condensação, deslocamento e simbolização, perceptualização ("dramatização") e elaboração secundária, aos quais devemos acrescentar o simbolismo anagógico de Silberer, a projeção, a identificação projetiva, a introjeção e a cisão, além de eventuais novos processos. Todos esses processos são caracterizados por envolver sentimentos que operam sem um conhecimento realístico das realidades físicas. No que consiste a função-alfa? Consiste em integrar sensações de outra espécie em emoções. Até que a função-alfa tenha feito seu trabalho, não existem elementos-alfa e, portanto, nada com o qual a mente possa operar: assim, nada lhe resta a não ser um funcionamento básico.

Surge então a questão: será que a função-alfa precisaria operar e criar elementos-alfa a serem usados nos processos primários, ou os processos primários teriam que ocorrer antes que a função-alfa pudesse começar a existir? Pode parecer que a função-alfa precisa primeiro fazer seu trabalho e produzir uns poucos objetos no mundo do bebê, sejam objetos físicos ou emocionais, antes que o deslocamento possa operar, já que o bebê não teria como deslocar suas emoções de um objeto a outro, enquanto não existissem emoções e objetos. Suponhamos, no entanto, que o bebê se depare com sua mãe, quem sabe com o rosto inteiro dela, e a seguir com uma visão lateral do rosto, mas, não consiga integrar estas visões como pertencentes a uma única cabeça. Mas, se o bebê reage a duas visões com uma mesma ressonância emocional, aí então ele poderia estar em condições de deslocar seus sentimentos de uma impressão-sensorial para a outra. Isto poderia ser um processo mediante o qual o bebê se tornaria capaz de integrar estas duas visões do rosto, ou do seio, ou de qualquer coisa, num único objeto. Se este tipo de avaliação se revelar verdadeiro, então o deslocamento seria um fator na função-alfa. Por outro lado, a avaliação que acabo de propor poderia implicar, no fundo, na integralidade da visão lateral do rosto: por exemplo, com a emoção que ela desperta. Introjeções e cisões posteriores, por exemplo, pressuporiam a integralidade de outras emoções. Assim sendo, tudo indica que a função-alfa deveria anteceder os processos primários. A resposta, porém, poderia ser que a integração e as leis do processo, surgem concomitantemente; ou, talvez, a inconclusão de nossa discussão deva-se à insuficiência em caracterizar a especificidade do problema - a resposta viria com mais rapidez, caso outros aspectos já tivessem sido esclarecidos.

Consideremos agora a relação da função-alfa com os objetos internos. Aqui, fica evidente que mesmo um objeto interno rudimentar, pressupõe alguma integração. Mas o uso dos objetos internos pela fantasia pressupõe, por seu turno, a existência de objetos internos. Por isso, a função-alfa pareceria preceder todos os ingredientes da mente do bebê, exceto sensações e cólicas.

Como a formação de um objeto interno pela fantasia é uma das integrações mais primitivas, poderíamos denominar os objetos internos primários de "alfa-introjetos". E poderia ser conveniente denotar o uso mais primitivo dos elementos-alfa pela fantasia, por "função-kappa". Colocado nestes termos, o leitor reconhecerá que o trabalho básico de M. Klein, estaria ligado à função-kappa, e que Bion teria se ocupado com a questão mais ampla de como os alfa-introjetos se formam. É, portanto, adequado nos voltarmos a esta questão mais fundamental, e indagarmos como o primeiro objeto interno é produzido.

Bion nos fornece uma resposta em termos de processos de pensamento. Segundo ele, quando existe fome e frustração, por exemplo, que não podem ser suportados, segue-se uma projeção do desconforto, e a fome pode ser tolerada se a mãe puder aceitar a projeção através de seu rêverie. Mais especificamente, um seio que está factualmente ausente e é desejado, passa a ser sentido como um seio mau presente, a ser descartado através de projeção. De algum modo, então, surge o senso de uma "não-coisa", que vem a ser um pensamento rudimentar. Como uma descrição para a produção de pensamentos, isto me parece sofrer de circularidade, já que a suposição que explica a existência de um primeiro pensamento pressupõe a existência de uma mãe que já possua um pensamento como um objeto. Esta suposição também não pode ser adaptada para explicar a formação do primeiro objeto interno, pois o processo pressupõe a discriminação de um receptáculo (externo) para receber a projeção, enquanto o receptáculo já pressupõe um objeto interno. Bion também envolve em mistério a transição de um seio mau presente para um seio ausente. Portanto, eu acho que a tentativa de Bion, apesar de ocorrer na direção correta, não consegue decolar, mas penso que as dificuldades podem ser enfrentadas por uma explicação alternativa dentro do mesmo espírito (que eu apresentei ao Grupo Imago em 22/1/1963).

Uma mente não poderia estar cônscia de um objeto externo sem possuir um aparelho para concepções. Uma mente poderia existir sem divisões internas envolvendo objetos internos. Como o primeiro objeto interno, que eu chamei de "introjeto orbital", poderia ser formado? Não seria por introjeção, já que isso pressupõe a consciência de um objeto externo. Mas, um desconforto como uma fome, poderia ser experimentado fenomenologicamente como algo que é arrancado. Portanto, se você pinçar um pedaço da sua pele e puxar, você terá uma experiência imediata deste tipo. Minha hipótese é que a fome é sentida, mais ou menos desta forma, e eu chamo o sentimento correspondente de um "buraco-de-fome"19. Assim, o primeiro introjeto-orbital seria não um seio mau presente, mas algo similar a uma ausência, o senso positivo de "O Nada", tornado famoso por Sartre.

Eu não discordaria de Bion que uma tentativa pudesse ser feita de livrar-se disso por uma projeção, e uma tentativa de expulsão muscular poderia reduzir as cólicas por algum tempo, mas logo depois o buraco-de-fome retornaria, talvez ainda pior. Ao ser alimentado, no entanto, o senso fenomenológico seria do self sendo recarregado, e não de que o buraco-de-fome estaria sendo preenchido diretamente: em outras palavras, o efeito de ser recarregado seria a sensação de que o buraco-de-fome estaria sendo dissipado a partir de dentro, isto é, preenchido em função de uma projeção emanada do núcleo central do self. Esta experiência poderia simultaneamente estar associada com tentativas de projetar o buraco-de-fome e tornaria possível que tais tentativas fossem sentidas como bem-sucedidas. O sentido de se conseguir fazer desaparecer um buraco-de-fome através da fronteira20 do self, produziria a concepção de um objeto fora do self. Segundo esta explicação, um pensamento primordial viria a ser o senso de "desaparecimento de um buraco-de-fome nocivo através da fronteira do self". Poderia ser um objeto emocional projetado no vago caleidoscópio perceptivo e formando assim um objeto perceptivo. (Para início de conversa, eles naturalmente seriam sentidos como animados). Seria, então, uma questão relativamente simples, construir desenvolvimentos subsequentes, em especial, a respeito da introjeção, mas isto não é preciso aqui. Acho que esta explicação pode evitar as dificuldades básicas das explicações de Bion.

Neste ponto, talvez, poderíamos invocar a ideia de Bion de uma "pré-concepção". Ela representa uma expectativa que ainda não se defrontou com uma coisa real que lhe seja correspondente. Não há dúvida de que Bion está propondo, aqui, algo importante, mas sua formulação não é muito concreta. Sua ideia parece ser a mistura de alguma coisa primitiva ou não amadurecida pela experiência real, com algo sofisticado, já que ele assemelha a preconcepção com uma variável matemática. Assim, a preconcepção parece ser, ao mesmo tempo, delgada e abstrata. Ora, a ideia de um objeto primordial, descrita pelo sentimento de um buraco-de-fome, pode fazer com que a ideia de Bion se torne específica: o "buraco-de-fome" apesar de ser altamente concreto, é uma preconcepção no sentido de não estar devendo nada a uma contraparte no mundo externo; e, malgrado seja concreto, ele necessita de algum tempo até que possa se juntar com a experiência real de um seio mau, deste modo sendo modificado e, portanto, enriquecido pela experiência. A primeiríssima preconcepção seria a experiência de um buraco-de-fome, que vai embora, atravessando a fronteira corporal.

Eu diria, mais, que a formação do pensamento através de um maquinário para pensar envolvido na transição de "buraco-de-fome" para o pensamento de um seio ausente, pressupõe uma distinção entre o pensar como um processo que desenvolve pensamentos e o pensar que manipula pensamentos pré-existentes (encontrada no último livro de Bion, Elements of Psycho-Analysis, 1963, p. 35).

Voltando às questões das prioridades, um buraco-de-fome não seria um produto de integração. Assim, o primeiro introjeto orbital, um objeto mau, poderia por si mesmo criar integração; isto é, poderia dar origem a uma integração ao passar a existir. A sensação de ser recarregado e o desvanecer concomitante do buraco-de-fome, gerariam ainda mais integração. Assim, respondemos nossa questão não por atribuir prioridade aos processos primários, em detrimento da integração, mas a certas operações primárias relacionadas à fome, à projeção, e ao processo de recarga. Só então uma integração suficiente se desenvolveria para permitir que os processos primários, como, por exemplo, o trabalho-onírico, pudessem ocorrer.

Na minha visão, então, a função-alfa não está presente na mente desde o nascimento, mas é precedida por algumas outras atividades no período de alguns dias. Precisamos, então, retornar à ideia plausível de que a função-alfa precede a fantasia, já que a fantasia passa a existir com os primeiros esforços para lidar com o primeiro buraco-de-fome.

Consideremos agora um outro tópico: o colapso da função-alfa, com a consequente formação de elementos-beta. Num certo sentido, a ideia do elemento-beta parece ser mais importante do que a ideia da função-alfa, esta última sendo simplesmente algo destinado a introduzir a anterior. Se encararmos o elemento-beta como resultado de uma disfunção, poderíamos generalizar o problema de Bion da seguinte maneira: quais as maneiras de ocorrência da disfunção mental? A indagação pode não ser nova, mas as respostas clássicas têm sido escassas. A principal é que a disfunção é devida à repressão, seguida de outras, por exemplo, a cisão. A obra de Bion sugere indagar-se se não existiriam múltiplas formas de produzir disfunção, mais do que imaginamos (e esta é uma das razões de o tipo de teorização de Bion ser de importância fundamental, já que pode nos mostrar onde novos fenômenos podem ser encontrados).

O próprio Bion caracterizou um novo tipo de cisão, tipificado por uma pessoa que está sempre juntando quinquilharias, assemelhando-se assim ao bebê, que recebe leite, mas nenhum amor. Os componentes de leite e de amor estão separados e, por várias razões que Bion então elabora, o bebê acaba se tornando mais e mais voraz necessitando de mais leite, o que nunca satisfaz, já que o componente amoroso está faltando. (Esta é uma forma de cisão que produz uma aproximação a um elemento-beta em seu sistema: ela produz uma cisão entre o componente amoroso e os componentes materiais para compor os objetos). Mas chama minha atenção que podem existir muitas outras maneiras de ocorrência de cisões, como pretendo ilustrar.

Suponha-se que se faça uma inversão no processo de Bion. Se o objeto externo possuir um exterior sensorial, como o rosto da mãe, uma cadeira, ou o seja o que for, e um interior emocional para possuí-lo, suponha que, desta vez, o objeto desejado seja a emoção livre de suas manifestações sensoriais, isto é, uma situação na qual só os objetos emocionais fazem parte da vida de uma pessoa, deixando de fora os objetos sensoriais - teríamos, neste caso, uma forma muito bizarra de processo esquizoide: de fato, uma tal pessoa seria alguém que trataria todos seus objetos cotidianos, de pedaços de giz a microfones, como se fossem elementos num sonho com significado puramente emocional, e sem qualquer parte física a desempenhar.

Isto nos sugere investigar os sonhos de novo, em busca de possíveis disfunções. De acordo com Bion, há uma barreira de contato entre o inconsciente e o consciente que consiste de elementos oníricos. A pessoa esquizofrênica, em especial do tipo que ele descreve, que não está nem dormindo nem acordada, não pode sonhar. Assim sendo, os eventos externos têm um impacto imediato sobre o inconsciente. Isto levanta em minha mente a questão se seria algo relacionado com processos oníricos primários que deram errado. A grande questão residual discutida por Freud em relação aos sonhos, sem ter sido resolvida, estava ligada à compulsão-de-repetição, na qual o trabalho-onírico, em suas palavras, falha em funcionar. Portanto, esta ideia dos processos oníricos falharem, não é inteiramente nova. O que se poderia indagar é se existem várias partes dos processos oníricos que falham, ou se o trabalho-onírico pode falhar de formas diferentes.

Uma questão correlata seria: a presente lista de processos primários estaria completa? Se existirem processos primários ainda não descobertos, isto seria de grande importância, tanto em termos gerais, mas também na esquizofrenia. Eis um exemplo do que poderia ser um processo primário: eu o descreveria como um princípio de troca, ilustrado por jogos de bola que não visam ganhar ou perder, só movimentar a bola pra cá e pra lá de uma pessoa à outra, ou seja, trocá-la entre elas - isto poderia indicar um processo de trocar um sentimento, ou uma parte da personalidade, com outra pessoa.

O resultado de tudo isto é que a disfunção dos processos-alfa poderia ocorrer numa ampla e inesperada variedade de formas, produzindo aproximações a elementos-beta e a objetos-bizarros, cada um deles característico de uma forma de esquizofrenia.

O problema final que eu gostaria de considerar diz respeito de como a integração ocorre, afinal das contas. Bion não fornece explicação para a disfunção, nem quanto ao que é que produz a função-alfa. É totalmente implausível que a mente na idade zero seja um todo integrado que, então, sofra uma cisão. Mais plausível é a ideia de que as experiências prazerosas e desprazerosas não se relacionem entre si desde o inicio. Assumindo isto, não há como fazer cisão até que ocorra integração. O que requereria explicação seria a integração. O que poderia induzi-la, levando-se em conta em especial que pode ser dolorosa? Além do mais, quando um certo nível de integração tenha ocorrido, digamos por quatro meses, e sofrido uma cisão em função de stress, parece que deixou de ser notado que os componentes excindidos precisam garantir algum contato remoto,21 caso contrário a terapia jamais superaria a cisão. Como isto seria possível?

Por conveniência, as experiências não-integradas e os componentes excindidos da personalidade poderiam ser denominados de "segregados". Estamos confrontados com um problema duplo: como os segregados se juntam, e, que tipo de ligação tênue eles mantêm mesmo depois de separados.

A ideia de uma cisão é conceitualmente muito dura, já que pressupõe um tipo de contato ou comunicação de tudo-ou-nada. O que se necessita é um modelo diferente para um contato que seja real embora silencioso - nem tanto um interruptor, mas mais um meio nebuloso que acolha uma imagem levemente esboçada, mas, ao mesmo tempo, suficientemente vaga para despertar incômodo. Então, se a neblina se dissipar minimamente, o esforço começa a se fazer sentir: isto poderia levar a um espessamento da neblina visando a um alívio do esforço. Para que haja um dissipamento da neblina precisaríamos postular que a imagem vaga tivesse alguma atratividade, ou então, alguma tendência à dissipação, mesmo que não detectada.

Tais postulados serviriam para lidarmos com as identificações projetivas abandonadas. Um fragmento projetado de si mesmo, segundo este modelo, atrairia o coração da personalidade, mas o segregado complementar ficaria obscurecido pela neblina. Teríamos aqui algo análogo ao oposto da autoscopia, a saber, uma negação de si mesmo, que poderia ser denominado "acutoscotomia". O processo é, naturalmente, tão importante ou, mais ainda, quando ligado a fatores puramente intrapsíquicos, como quando surge um "esforço nuclear" entre dois segregados dentro do núcleo do self.

Por mais remoto que isto parece ser da realidade do paciente, oferece a oportunidade de interpretarmos a disfunção em termos de se autoscotomizar um segregado da personalidade, em função da inabilidade de dispersarmos a neblina que a envolve.

Lançando um olhar retrospectivo sobre os problemas metapsicológicos discutidos, poderíamos dizer que a contribuição recente de Bion a eles poderia ser caracterizada como um "retorno aos sonhos", se bem que não somente como antigamente, aos sonhos que funcionam bem usados como pistas para a operatividade da personalidade, mas também para as maneiras na qual o trabalho-onírico pode falhar em seu funcionamento.

 

Referências

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Recebido em: 29/1/2013
Aceito em: 23/4/2013

 

 

Tradução e comentários: Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho
1 Nota do editor. Este artigo foi publicado no Memorial a Bion Do I Dare Disturb the Universe? (Beverly Hills: Caesura Press, 1981), editado por James Grotstein.
2 Este não é um livro comum, escrito por uma pessoa comum, se ele me permite dizer isso. Este trabalho (como no anterior sobre grupos) provavelmente se transformará num clássico, mas, face à dificuldade de suas ideias, provavelmente não será muito lido, por isso, antes de discutir suas pretensões e implicações gerais, tentarei fornecer uma cuidadosa avaliação dos seus conteúdos.
É preciso dizer uma palavra sobre a natureza da escrita em si, já que se tornou consenso que os escritos do Dr. Bion são difíceis. O que pode ser prometido ao leitor é que, se ele estiver disposto a se esforçar, conseguirá ser envolvido por algo muito especial, vindo do Dr. Bion; o leitor não precisará temer que, após um considerável esforço intelectual, ele, ao final, fique na mão. Este livro não sofre os defeitos corriqueiros, como imprecisão, verborragia, pompa, pretensão, prolixidade e falta de conteúdo. A escrita em si é lacônica e concisa e, independentemente de suas ideias estarem certas ou erradas, prenhe de significados: talvez, o mais importante de tudo, ela é bastante compreensível. Porém, sua compreensibilidade é a de um trabalho difícil, expresso (em geral) com uma clareza e precisão tais que se faz necessário um esforço intelectual para absorvê-la. Quando um garoto se defronta com o aprendizado de geometria, precisa despender um esforço intelectual considerável: mas, se isto acontecer, a coisa em essência torna-se muito simples. Naturalmente, Bion não atinge este nível de clareza (e, de fato, existem algumas obscuridades), mas ele chega perto de consegui-lo. Penso, no entanto, que há um defeito - de grau - já que o tratamento dos vários temas não são claramente separados. Precisamos ficar pinçando os fios da meada: uma prova desta dificuldade é que, se quisermos checar algum ponto em especial, é difícil encontrá-lo, mesmo tratando-se de um livro pequeno. A esta crítica, pode-se contrapor o oposto: que, malgrado este defeito, a escrita possui um grau extraordinário de clareza e - last but not the least - a tarefa que ele se propõe é de uma extrema dificuldade. O que quero dizer, com crueza metafórica, é que ele foi bem-sucedido em oitenta por cento.
O livro consiste de 28 capítulos, a maior parte deles constando de três ou quatro páginas. A nova teoria metapsicológica é apresentada nos capítulos 1 a 12, 18 e em parte do 26; as bases do pensar e do aprendizado ocupam os capítulos 11, 12, 19, 20 e 22; o capítulo 26 está mais diretamente dedicado à aplicação de fenômenos clínicos (muitos leitores terão dificuldade em perceber isto). Finalmente, os capítulos. 13 a 17 e 27 e 28 são dedicados a uma notação, e a como ela pode ser aplicada. Note-se que esta divisão do livro não corresponde ao sumário apresentado no começo; talvez o autor tenha oferecido uma descrição obscura do seu próprio livro, ou fui eu que o interpretei mal, mas acho que a explicação é que os temas reaparecem em diferentes capítulos misturados, e que as fronteiras entre os capítulos nem sempre foram bem alocadas. Há um pequeno capítulo que é peculiar a este respeito. O capítulo. 21, consistente de duas páginas, é apresentado como dedicado às teorias kleinianas das posições esquizoparanoide e depressiva. Não me pareceu que o capitulo tenha a ver com isso, e cheguei até a pensar num erro de impressão, caso a referência pudesse ser a algum outro capítulo, como o capítulo 10, que poderia merecer tal descrição. Assim, apesar de minhas observações iniciais a respeito de clareza e simplicidade, existem certas características do livro que são intrigantes.
Fiz uma tentativa deliberada de criticar este trabalho. Nos círculos não acadêmicos, a crítica é frequentemente confundida com antagonismo. O antagonismo, no entanto, significa encontrar erros sem compreensão, enquanto a crítica significa encontrar erros com compreensão, daí poder ser uma tarefa construtiva. São poucos os trabalhos que merecem crítica.
3 Além do mais, existe, por assim dizer, um postscript consistindo da tentativa de esboçar uma terminologia para registrar e manusear todas estas ideias, basicamente, o material clínico do consultório. Duvido que o Dr. Bion aceitaria minha classificação das partes que cuidam da terminologia como um postscript, já que sua intenção era criar instrumentos para aplicar sua teoria de um modo bem especial, capacitando os analistas a aprenderem mais e melhor.
4 N. T. Eu tive uma analisanda psicótica que reencontrou o pai após 25 anos, e foi convidada por ele a fazerem juntos uma viagem. Ela, no entanto, passava as noites trancada em seu quarto nos hotéis, num estado de mente idêntico ao descrito por Bion, apavorada com a possibilidade de que o pai pudesse irromper e atacá-la sexualmente.
5 O Dr. H. Stewart, durante uma discussão, lembrou que a teoria de Bion poderia ser testada registrando-se o E. E. G. de esquizofrênicos, para checarmos a ausência dos ritmos associados ao sonhar.
6 Pode parecer que há aqui uma pequena inconsistência: uma parte da teoria afirma que pode não haver objeto da consciência até que a função-a tenha operado sobre o material bruto; a outra afirma que a consciência precisa focar-se no material bruto; estas duas asserções não podem ser facilmente combinadas. Mas não deve ser muito difícil consertar este defeito. Imagino que necessitaríamos de duas camadas de consciência: uma muito primitiva, análoga a uma espécie de órgão sensorial, e a outra análoga à percepção de objetos. Acho que Bion tem em mente um modelo perceptivo, no qual há uma dicotomia entre consciência das impressões sensoriais e consciência dos objetos físicos, como, por exemplo, consciência de uma mancha de cor marrom e consciência de um objeto que tem esta aparência. É importante evidenciarmos a premissa aqui embutida, pois, não se trata de algo a priori, e nem a única alternativa possível. Há pessoas que afirmam que impressões sensoriais não integradas são um mito. De qualquer modo, é uma questão importante em relação a qual precisamos chegar a um acordo: ou toda percepção seria percepção de algum objeto do qual podemos isolar ou abstrair uma impressão, ou, então, se existiria uma situação tal em que as impressões sensoriais antecederiam a percepção de objetos.
7 Quando Bion descreve este anteparo de elementos-beta clinicamente como um jorro de palavras ao qual falta referência objetiva, conteúdo ou tese, ele pode estar na pista de outro tipo de escrita relativamente comum no campo teórico em geral, e mesmo na psicanálise, e que é caracteristicamente verborrágica, tortuosa e vazia.
8 N. T. Aqui o autor se equivoca: Bion define o objeto bizarro como sendo o elemento-beta, com traços egoicos e superegoicos.
9 N. T. Para mim, sempre ficou claro que Bion compartilha com o leitor o making of de sua teoria, e não que esteja apresentando fatos de modo prescritivo.
10 N. T. Esta advertência do autor me parece importante, pois talvez seja a questão metapsicológica fundamental: que a consciência da inexistência do objeto remeta o sujeito a reconhecer em si mesmo a existência de um recurso para suportar esta provação.
11 Em alguns dos lugares em que Bion fala de "identificação projetiva", ele deveria presumivelmente ter falado de projeção, isto é, quando aquilo que é projetado é algo orbitário ou quando a projeção acontece antes da função-alfa ter encontrado uma emoção integrada.
12 Notação e Apresentação: Muitos capítulos são dedicados à questão de uma notação para registrar as sessões e para facilitar pensarmos nelas e a respeito da teoria psicanalítica. Em contraste com os capítulos devotados às novas teorias, estes capítulos me pareceram um tanto incompreensíveis, pois pareciam não ter um foco. É possível reconhecermos a necessidade de registro de um modo simples e, metodologicamente, a necessidade de fazer distinções entre diferentes "níveis": por exemplo, que um paciente está fazendo conjecturas a respeito dos motivos subjacentes a seu estado. Isto, de fato, é muito importante, mas, em geral, desprezado. No entanto, os instrumentos que possuímos nos permitem levá-lo em conta - o que está faltando é a vontade e a habilidade para usá-los. Mas, não é a notação, em geral, que produz um pensamento claro; é a boa notação que é produzida por um pensamento claro. Do jeito que as coisas estão atualmente, seria simples registrarmos, por exemplo, temas manifestos, atitudes pré-conscientes, manifestações pré-conscientes de transferência, uma conjectura inconsciente da situação objetal, a conjectura da ansiedade inconsciente, e os mecanismos de defesa inconscientemente conjecturados; uma notação matemática seria quase totalmente inútil para tanto. Algumas pessoas preferem palavras por extenso, outras preferem "Ics." para designar o inconsciente ou o elemento-beta, mas isto varia segundo a preferência pessoal. Um símbolo não é claro, se a ideia por ele representada não for clara. A única justificativa para usarmos símbolos em matemática é que eles tornam as inferências matemáticas mais fáceis de serem efetuadas, isto é, tornam mais fáceis a montagem de teoremas. Não há indícios de que Bion esteja querendo encontrar teoremas desta forma. Se esta fosse sua intenção, eu lhe daria apoio, mas teria achado prematuro. É preciso também reconhecer que uma visada meramente matemática tem uma grande desvantagem: faz as pessoas acharem que elas possuem um conhecimento exato quando não é o caso, criando uma impressão enganosa de cientificidade. Considere-se, por exemplo, o Teorema de Gödel da lógica moderna, um dos mais difíceis e importantes jamais postulados: um vasto simbolismo tem sido usado para prová-lo, mas, recentemente tem sido dado a ele um belo tratamento que não tem termos técnicos, mas preserva a alta exatidão - por ser algo frouxo, no entanto, não granjeou popularidade. Eu aprecio aquilo que imagino ser a excursão de Bion no simbolismo matemático. Ele está tentando abranger não somente o tipo mais rudimentar de pensamento, que ocorre, por exemplo, com três dias de vida, mas também os desenvolvimentos na direção do pensamento abstrato, e ele corretamente afirma que a ciência teórica, a notação, e daí por diante, são extensões disto: então ele quis (no meu entender) usar sua nova teoria do pensar para promover um novo modo de pensar. Não creio que ele tenha conseguido, acho mesmo que foi uma pena ele ter tentado, pois a tentativa, me parece, estragou a apresentação de suas novas teorias magistrais. [Acho que Dr. Bion deve ter tido um certo arrependimento acerca de sua excursão nos meandros da notação.]
13 No que concerne às questões metodológicas, eu não gostaria de sugerir que a metodologia de Bion esteja totalmente a salvo de críticas. Há um erro sério nela, que, no entanto, não causou consequências danosas. Ele fala algumas vezes em "deduzir" resultados das observações. Nada pode ser deduzido, ou inferido de observações. As conjecturas podem ser feitas, só isso: este é um ponto crucial ao pensamento científico.
14 N. T. Esta é uma afirmação questionável do autor. De fato, no item 2 do Cap. 10, ao tratar da reversão da função-alfa, Bion assinala que "a textura da barreira-de-contato se modifica em elementos-alfa despojados de todas as características que os separam dos elementos-beta": este despojamento é melhor explicado na nota 10-2-2 (p. 101, edição original, 1962). É como se o elemento-beta fosse um elemento-alfa "desidratado": foi esta a imagem que este trecho me transmitiu.
15 N. T. A frase "Clinicamente o objeto bizarro que está impregnado com características do superego, aproxima-se de fornecer uma realização que corresponda ao conceito de elementos-beta", não se coaduna com a descrição detalhada que Bion fizera anteriormente do objeto bizarro (Diferenciação da personalidade psicótica da não-psicótica, 1967, pp. 46-52): se acompanharmos os textos de Bion (o de 1957, e o que está sendo comentado, de 1962), veremos que a frase seguinte "Os objetos bizarros são elementos-beta evacuados que são reintrojetados e dotados com características de superego" é uma interpretação de Wisdom que não faz jus à descrição de Bion.
16 N. T. Uso "excindido" como tradução de split off, ou seja, aquilo que é cindido e expulso.
17 Utilizando-se a relação mãe-bebê, a projeção de elementos-beta pelo bebê, na avaliação de Bion, diminuiria caso a mãe fosse capaz de aceitar as projeções, mas isto não explicaria porque os elementos-beta surgiriam em primeiro lugar, ou seja, porque a função-alfa falhou.
18 N. T. Esta afirmação, de Wisdom, resume, no meu entender, de modo sucinto e inspirado, o cerne do livro de Bion.
19 Isto não pode ser equacionado de imediato com um "seio mau", pois, fazê-lo, pressuporia a concepção de um seio mau antes que qualquer pensamento tivesse surgido.
20 Em linha com Kant, acho que nós podemos fenomenologicamente ter um senso de fronteira, sem precisarmos pressupor a concepção de que alguma coisa existe do outro lado dela.
21 N. T. Com o ponto onde a cisão se originou.