SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.46 número84Transferência e contratransferência índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.46 no.84 São Paulo jun. 2013

 

RESENHAS

 

Pelos poros do mundo: uma leitura psicanalítica da poética de Flávia Ribeiro

 

 

Autora: Silvana Rea
Editora: Editora da Universidade de São Paulo, Fapesp, 2012
Resenhado por: Magda Guimarães Khouri1

O espectador convidado a participar como parceiro da obra, a percorrê-la não apenas com os olhos, mas também com o corpo, tem sido uma das marcas relevantes observada na arte contemporânea. As obras, que nascem sem dúvida das fantasias do artista, são criadas de forma aberta como algo incompleto, plural, descentrado, e nesse caminho enlaçam o outro, convocando o sujeito a fantasiar, a se apropriar, a reconstituir a seu modo, na sua experiência. Como se sabe, dentro dessa perspectiva não linear está o objeto de busca da psicanálise, que se aproxima do sujeito na sua errância, nos seus desvios, naquilo que lhe escapa. Conhecer o mundo também pelas suas frestas, pelo que surpreende, sem a preocupação em se alcançar uma visão totalizante dos fenômenos, pode ser um bom ponto de partida para o diálogo entre psicanálise e arte contemporânea.

É justamente em torno desse diálogo que Silvana Rea desenvolveu seu estudo desde a dissertação de mestrado pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (Ipusp), apresentada em 1998. Guiada pela pergunta inicial: "'De que maneira a psicanálise poderia auxiliar para a compreensão do fenômeno criativo em artes plásticas?' - ou seja, como a psicanálise pode contribuir para a estética" (p. 25), a autora escolheu três artistas de gerações diferentes para investigar o processo de criação. Para o doutorado seguiu sua pesquisa apenas com um deles, Flávia Ribeiro, pois dessa investigação surgiu outra questão: "até que ponto a psicanálise serviria à leitura em profundidade da poética de um único artista, sem a preocupação direta com o processo de uma obra específica?" (p. 25). Seu caminho foi buscar um fio condutor para os trabalhos executados com materiais diferentes, de variadas dimensões, que incluem pintura, desenho, gravura e escultura. Daí nasceu o belíssimo livro Pelos Poros do Mundo, onde a autora procura fazer uma leitura psicanalítica de sua poética.

Para a realização de sua leitura, Rea acompanhou Flávia Ribeiro no seu ateliê por mais de dez anos, vendo os cadernos de anotações, participando nos testes com materiais, na execução das obras. Dados abordados à maneira da atenção flutuante da escuta psicanalítica, fiel ao método inventado por Freud, que insere o observador de modo encarnado, transformando seu inconsciente em instrumento de trabalho, tal como acontece no campo transferencial psicanalítico. Esse é o eixo da metodologia elaborada por seu orientador João A. Frayze-Pereira, designada psicanálise implicada, que norteia o estudo da autora. A partir dos encontros e dos registros feitos nessa pesquisa, assim como ocorre no campo da relação paciente-analista, consideram-se as manifestações singulares da obra com seu leitor, o impacto que lhe provoca, onde a espectadora deixa se impregnar pela obra, pelo fluxo de associação livre da artista, entendida como exercício poético, e pouco a pouco vão se delineando algumas unidades temáticas e "desse encontro nasce um texto inédito, uma nova significação, possível somente ali, no encontro dessa artista com essa pesquisadora" (p. 26).

Trata-se de uma maneira de trabalhar que não interpreta uma produção artística via a atribuição de significados, correndo o risco de vê-la apenas como um ornamento, e sim vai na direção de deixar a obra falar, onde o espectador pode se infiltrar na criação do artista. Totalmente imbuída dessa forma de aproximação, o exercício da autora de conhecer e ver o campo da arte se dá, sem cessar, à maneira de um psicanalista diante das experiências vividas.

Logo de início faz uma analogia da atividade de olhar com a atividade de viajar, onde podemos encontrar traços visíveis da escuta psicanalítica: "Na disposição por conhecer, o olhar não se espalha pelo campo, mas busca barreiras e limites, sinais de ruptura que lhe chamem atenção; ele penetra nas frestas do mundo, na investigação de suas lacunas. Da mesma maneira, as viagens têm origem nas brechas de sentido, pois é sempre pelas frestas de seu próprio mundo que o viajante penetra, quando abre passagens nas paisagens alheias. Assim, as viagens são sempre experiências de estranhamento" (p. 24). Nesse sentido, a autora escreve que se tornou uma viajante do mundo das artes plásticas.

Refere-se ao estranhamento que o viajante sente em relação a si mesmo, porque entra em contato com as fissuras de sua identidade e seu mundo se abre, pois se afasta da familiaridade anterior. "Nessa experiência, podemos compreender que só alcançamos o outro sendo um outro em nós mesmos" (p. 24). Daí, a possibilidade de nossa transformação. Tal movimento se evidencia diante da obra contemporânea, pois chama o espectador não para uma atitude contemplativa, mas a analisar as próprias percepções.

No campo da estética, principalmente dois autores serviram como suportes teóricos das elaborações que dizem respeito à singularidade do encontro leitor e obra. Um deles é Luigi Pareyson, cuja ideia central é a da formatividade, ou seja: "fazer que inventa o modo de fazer enquanto faz" (p. 32). Grosso modo, refere-se diretamente à experiência do fazer do artista em direção à forma e não a uma concepção geral de arte, e que cada produção propõe um tipo de experiência específica com cada espectador. E o segundo, Peter Fuller, considera que "nenhum pensamento sobre arte sobrevive apartado da obra, uma vez que esta, em sua relação com o leitor, solicita uma teoria que a compreenda" (p. 27). Ao destacar a experiência com a obra, evidencia a impossibilidade de se encontrar uma teoria que dê conta da arte de maneira global. Dentro dessa perspectiva, sob o olhar da pesquisadora, desenhos, pinturas, manufaturas, gestos, falas da artista requerem diferentes vértices psicanalíticos ou de outras áreas de conhecimento que lhes dão legibilidade de maneira particular.

Nessa linha a autora, pautada na manifestação singular da obra com seu espectador, estabelece três eixos: imagens poéticas, corpos em contato e jogos de olhares: olhares em jogo. É o momento do livro onde se sobressaem a relação com os materiais, mostrando as passagens de Ribeiro pelo papel, trabalho com encáustica, látex, bronze, madeira, entre outros, numa espécie de busca do cerne da matéria, da penetração na estrutura das coisas do mundo, da evidente corporeidade das obras.

Na exposição da xxiii Bienal Internacional de São Paulo, 1996, por exemplo, havia um painel de látex de grandes dimensões pendurado em um varão, dobra sobre si mesmo, permitindo, pela visão lateral, a percepção de um espaço "entre". A espessura é fina o suficiente para a ininterrupta passagem de luz. "Trata-se de um trabalho que é o próprio suporte e que se estrutura na capacidade de se sustentar: a ideia é que seja tão fino que se coloque no limite de sua fragilidade" (p. 83). E nas paredes laterais, estavam flores de latão fundido banhado a ouro, onde o limite se dá na própria execução, pois há o risco do material liquefeito esfriar a caminho da forma. Além disso, como o látex é orgânico, precisa de um tratamento com amoníaco para não ressecar e rasgar. A pesquisadora mostra que a questão do "entre" também remete ao lugar da fragilidade, na sustentação do trabalho tanto na execução como na exibição.

O diálogo da dupla leitora-artista cria canais de interpenetrações dos discursos, onde as construções feitas por Silvana no contato com o material também aparecem em diversas falas de Flávia Ribeiro: "Noutro dia eu estava pesquisando no dicionário Aurélio. Consultei a palavra frágil. Na verdade, não importava a palavra, uma chama a outra. Encontrei em frágil, além de delicado, também transitório, e achei que tem a ver com o que estou pensando. Gostei do que você disse: 'espaço transitório'. Gostei tanto que anotei aqui no meu caderno: passagem ou só uma fresta. É uma passagem, é um transitório. Como isso é incorporado no espaço!" (p. 118).

Aqui coube recorrer a Winnicott, quando desenvolve o conceito de espaço potencial, que se origina na vivência de um espaço físico e mental entre mãe e bebê, "para designar uma zona intermediária de experiência situada entre realidade e a fantasia, ou seja, concebe uma terceira área de experimentação além da interna e externa" (p. 122).

Quando frágil ganha o significado de transitório leva-nos a pensar na dimensão clínica, onde o analista busca sustentar com o paciente os momentos delicados, apostando que é na passagem por essas ondas mais ambíguas e incertas, que pode nascer alguma transformação. A delicadeza encontrada tanto no trabalho de Ribeiro - nos seus traços, na presença das flores, nos materiais porosos - como na leitura da pesquisadora, pode ser vista como indicadora da capacidade em permanecer nesse difícil trânsito, espaço este que propicia histórias gerarem outras histórias, gestos criarem novos gestos.

As telas de látex, de acordo com Ribeiro, pedem uma relação mais próxima, de tocar, cheirar, como se fossem pele. Surge aí o início da elaboração de um trabalho epidérmico, a pele que pode oferecer os contornos do corpo, que permite delimitação dentro-fora e também que se efetuem trocas. Se a citação de Paul Valéry, "O mais profundo é a pele" (p. 61), abre os capítulos sobre a trajetória da artista, já é revelador como o corpo e o olhar se mostram como questões centrais de sua poética. Baseada em Merleau Ponty, Rea considera que o visível é prenhe de invisibilidade e de todos seus possíveis, é poroso e lacunar, e o invisível é uma dimensão da visibilidade, é transcendente e aberto.

Uma vez que o invisível é uma dimensão da visibilidade, "pode-se pensar que a alma já estava no corpo do trabalho da artista, aguardando uma oportunidade para ser conhecida" (p. 185). Nesse sentido, o depoimento de Ribeiro numa entrevista à Folha de S. Paulo, na ocasião da sua exposição na Galeria Millan, se entrelaça com as ideias da autora: "Já trabalhei com resina, papel, estanho, mas creio que a obra é sempre a mesma, apesar dos diferentes suportes. Isso me lembra da formulação de Borges, que dizia que o poeta passa a vida inteira escrevendo o mesmo poema" (Cypriano, 2002). Poema este que revela o próprio ser da artista.

Das várias camadas que o leitor pode transitar nessa edição tão bem cuidada e original, no último capítulo a vivência da parceria de Flávia Ribeiro com Cristina Rogozinski - que resultou na exposição Paisagens (Estação Pinacoteca, abril de 2008) - e o impacto causado em Silvana, mostram o movimento de abertura à experiência de habitar e ser habitado pelo outro. Fica evidente o desassossego do confronto com a alteridade, e assim não ficarmos apenas reduzidos a nós mesmos. Efeito, sem dúvida, provocado pela leitura do livro.

 

Referência

Cypriano, F. (2002). Reportagem local. (12 de setembro). Folha de S. Paulo. www1.folha.uol.com.br.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 6/6/2013
Aceito em: 11/6/2013

 

 

Magda Guimarães Khouri. Rua da Consolação, 3741, cj 22. 01416-001 São Paulo, SP. Tel: 11 3083-3002. magdakhouri@uol.com.br
1 Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP.