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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.46 no.85 São Paulo jun. 2013

 

EDITORIAL

 

 

O número 85 do Jornal de Psicanálise acompanha a discussão do xvii Encontro de Institutos fepal, realizado em Buenos Aires, em novembro 2013, sobre a "Transmissão da psicanálise e a prática clínica atual". Por ser um tema caro aos Institutos e por sua atualidade, a Equipe Editorial investiu na temática abrindo a oportunidade aos colegas a apresentarem suas contribuições e, juntamente com a atual Diretoria do nosso Instituto1, estendendo o debate ao corpo societário da sbpsp e aos leitores do Jornal.

Instigados pelo próprio tema pedimos uma breve pesquisa sobre o termo, e recebemos a seguinte resposta2:

Transmissão não é um conceito psicanalítico. Esse termo é bastante utilizado em trabalhos que abordam Ensino de psicanálise, Difusão da psicanálise ou Formação psicanalítica. Nos dicionários de psicanálise disponíveis em nosso acervo (os melhores já publicados) nenhum inclui o verbete ensino ou transmissão de psicanálise. No Aurélio ou Houaiss: Ato ou efeito de transferir, Transferência. (Vera Sevestre)

Resultado surpreendente: "transmissão não é um conceito psicanalítico". Mas, neste caso, não deveria ser? O uso do termo transmissão pela comunidade psicanalítica se faz, exatamente, para marcar uma diferença especial e singular no modo de apreensão do ofício de tornar-se psicanalista.

A definição encontrada nos dicionários3 torna mais claro o porquê do seu frequente uso no terreno da formação psicanalítica: transmissão está ligado ao ato de transferir. François Roustang, em seu livro Um destino tão funesto, diz que

a transmissibilidade da psicanálise se constitui na descoberta fundamental da transferência, quer dizer, pelo fato de que o psicanalista é um outro, que não é a ele que se dirigem os ímpetos ou os furores do analisando. ... O universal da Psicanálise se funda na indeterminação do outro sobre o qual se transfere". (Roustang, 1987, p. 98)

Não há transmissibilidade da teoria analítica fora do exercício efetivo da Psicanálise. Isto é verdade não só para a prática mas para a teoria. Cada psicanálise é nova no plano prático quanto no plano teórico." (p. 111)

Falar de transferência4 é falar de Psicanálise e acrescentar à discussão algo precioso do nosso saber. As diversas relações institucionais (analista/analisando, coordenador de seminários teórico-clínicos/membros filiados, ou supervisores/supervisionandos) quando olhadas através do referencial analítico não driblam a presença do Inconsciente. Dessa maneira, a formação jamais consistirá somente em abordar questões que possam ser ensinadas, treinadas ou instrumentalizadas conceitual e tecnicamente, visto que cada um de nós luta contra suas próprias resistências, contra a ilusão de um saber, de ser representante de uma verdade única e total sobre o sofrimento humano.

Ao contrário, olhado analiticamente, o trajeto pessoal da formação é a sustentação de um mal-estar que aproxima o analista do sofrimento humano do seu paciente. Mal-estar necessário para que haja interrogação e investigação e não formatação do Outro a um sistema de verdades ou classificações diagnósticas, de uma assimetria mística ou dogmática, em que a adesão ao discurso do mestre e a um corpo de doutrina tome valor de identidade sem um processo de crítica ou metabolização (Schnaiderman, 1988). A transmissão psicanalítica diz respeito à necessária apropriação da Psicanálise como resultado de um percurso singular de formação.

Será que Freud (1921/1976) pensou que as Instituições psicanalíticas, diferentemente das Igrejas e do Exército, poderiam lidar com as identificações de seus membros com seus analistas/líderes? Bion (1975), em seu brilhante trabalho Experiências com grupos, nos revelou de modo sofisticado o funcionamento de grupos que buscam a autonomia de pensamento, o respeito à pluralidade e alteridade do humano. Assim, transmitir psicanálise é um ato psicanalítico, é a apreensão por experiência própria de um modelo metodológico onde todo saber é passível de ser interrogado, de ser colocado em questão.

O que nos incentivou a adotar o tema do Encontro dos Institutos como o do Jornal é a sua importância enquanto possibilidade de repensar a formação pelo viés do "conceito psicanalítico de transmissão". Ele imprime outro entendimento para a dimensão da trans-missão, desta implicação com o conhecimento encarnado: a da experiência da transferência (análise pessoal), da troca de experiências (supervisão) e de um conhecimento encarnado (seminários teórico-clínicos), que diferentemente da Difusão (conhecimento estendido, espalhado) ou do mero Ensino (um conhecimento muitas vezes adquirido pela imitação e repetição)5, é a sua reinvenção, na justa medida do vir a ser analista.

É nesta reinvenção que reside o futuro da Psicanálise: de manter viva e atual a sua prática clínica. Este futuro, prediz Mauro Gus (2001, p. 447),

vai implicar o estabelecimento de uma nova relação com a vida contemporânea refletida também na vida dos colegas mais novos ... são jovens, necessitam trabalhar e desejam exercer, em seus consultórios e instituições, o conhecimento que a psicanálise permite. (Favilli, 2000)

Para se haver com o mal-estar na contemporaneidade e as novas demandas de uma clínica atual, sob este vértice da transmissão, lembramos das palavras de Giovannetti:

da mesma forma que um processo analítico coloca em crise a identidade de seus participantes, só assim podendo se colocar em marcha o processo analítico, o corpo formador de um Instituto só poderá desempenhar a função a que se propõe, ou seja, criar novos psicanalistas, à medida que possa constantemente realizar uma leitura crítica, em crise, de sua identidade, o que inclui uma análise de seus próprios mitos fundadores, de sua própria história. (1997, p. 134)

Os Institutos, nesta perspectiva, assim como seus membros, também precisam se reinventar, na justa medida daquilo que dará vida, longevidade e criatividade à Psicanálise, para que esta, por sua vez, como desejou Freud, continue a se reinventar.

A discussão sobre a transmissão da Psicanálise é revisitada no Jornal sob o vértice das demandas da clínica atual, da Universidade, das singularidades dos percursos pessoais e das implicações geradas pelo mundo contemporâneo. É isso que podemos perceber na seção dos artigos temáticos, na qual a diretora do Instituto, Leda Herrmann, e o psicanalista argentino Rodolfo Moguillansky apresentam seus artigos (do Encontro dos Instituto), e colegas que, partindo da carta-convite, relatam suas reflexões e experiências singulares; cada qual com o seu referencial teórico e seu estilo pessoal, contribuindo para um debate instigante e propulsor de um incômodo para lá de necessário.

O número 85 traz ainda uma nova seção, Diálogo com um jovem colega, fruto da colaboração da colega Marion Minerbo com o Jornal. A seção tem como proposta falar diretamente com as gerações mais jovens - de dentro e de fora da sbpsp - produzindo inquietações e incentivando uma saudável reflexão crítica. A ideia surgiu para favorecer um pensamento que integre teoria e clínica. Os diálogos pretendem mostrar a necessidade e a operatividade de um raciocínio clínico que tenha como referência alguma metapsicologia, não necessariamente a freudiana. A clínica "pede" a metapsicologia para lhe dar algum sentido para além do senso comum, de tal forma que teoria e clínica se iluminam reciprocamente. A abertura desta seção se dá com o artigo de Marion Minerbo sobre Transferência e de Roosevelt Cassorla sobre Enactement.

A Sessão de Cinema traz uma experiência nova e diferente com um resultado muito criativo, fruto da experiência de conversar sobre o filme Festa de família, do diretor Thomas Vinterberg. Os coordenadores desta seção transcreveram e editaram todas as falas dos participantes da discussão do filme, resultando num texto coletivo. Vale conferir!

Inauguramos ainda a seção Notícias, na qual o Jornal se ocupa de um intercâmbio com colegas de outras regiões do país. Neste número, Brasília apresenta o 3º número do jornal Associação Livre, no qual podemos encontrar uma longa entrevista com o colega Paulo Cesar Sandler da sbpsp.

Para finalizar, estamos gestando um projeto de ligação mais orgânica do Jornal com o interior, e neste número contamos com a participação especial das colegas Glaucia Maria Ferreira Furtado, Josefa Maria Dias da Silva Fernandes Trento e Patrícia Nunes, em suas regiões, ao qual daremos continuidade.

Adensar a discussão sobre o tema acontece como resultado da própria pulsação da equipe face ao assunto proposto, temperada decisivamente pela leitura e análise dos artigos recebidos.

Boa leitura a todos!

 

Referências

Bion, W. R. (1975). Dinâmica de grupo. In W. R. Bion, Experiências com grupos: os fundamentos da psicoterapia de grupo (pp. 129-178, 2ª ed.). Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Freud, S. (1976). Psicologia de grupo e análise do ego. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 18, pp. 119-139). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1921)        [ Links ]

Giovannetti, M. de F. (1997). Transmissão: um campo transferencial. Revista Brasileira de Psicanálise, 31(1),127-135.         [ Links ]

Gus, M. (2001). A dificuldade de transmissão e prática do método psicanalítico nas condições atuais da clínica. Revista Brasileira de Psicanálise, 35(3),441-451.         [ Links ]

Roustang, F. (1987). Um destino tão funesto. Rio de Janeiro: Taurus.         [ Links ]

Schnaiderman, R. (1988). Política de formação em psicanálise: alinhavando algumas anotações de leitura. Percurso, 1(1), 11-15, 1988.         [ Links ]

 

Marina Massi
editora

 

 

1 O Instituto de Psicanálise organizará um Encontro onde acontecerá o lançamento deste número do Jornal.
2 Vera Sevestre, nossa perspicaz e excelente bibliotecária, nos enviou a definição do termo e o comentário acima citado. "Transmissão s.f. (1661 cf. mrluz) 1 ato, processo ou efeito de transmitir. 2 fìs m. q. comunicação 3 fisquìm m. q. transmitância 4 tel envio de informação sonora ou visual por meio de ondas eletromagnéticas cf radiodifusão t. ao vivo rád tv transmissão de um evento na altura em que ele ocorre etim lat. transmissio, õnis 'passagem de um lugar para outro, trajeto', de transmissum, supino de transmitere 'enviar de um lugar para outro, transportar, transferir, transpor'; ver 'met.; f. hist 1661 transmissão, 1789 transmissão." (Houaiss, p. 2752)
3 No Dicionário Analógico da Língua Portuguesa, de Francisco Ferreira dos Santos Azevedo, Transmissão pode ser consultado por três aspectos: como Transferência (270, p. 118); Passagem, passar através de, repassar, perpassar, transitar... (302, p. 132); Informação, informe, esclarecimento, luz, inculca, conhecimento (527, p. 257).
4 E contratransferência, para aqueles que a consideram não como um problema do analista, mas como uma forma de escuta privilegiada, um instrumento de trabalho do analista.
5 Vale reler o artigo da colega Maria Lúcia Castilho Romera. (1994). Ensino-Transmissão da Psicanálise: ser ou não ser... Algo mais?!. Jornal de Psicanálise, 27 (51), 51-62.