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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.46 no.85 São Paulo jun. 2013

 

TEMA: A TRANSMISSÃO DA PSICANÁLISE E A PRÁTICA ANALÍTICA ATUAL

 

Transmissão da psicanálise e prática analítica hoje: um desafio1

 

Psychoanalytical training and the nowadays psychoanalytical practice: a challenge

 

Transmisión del psicoanálisis y la práctica analítica hoy: un desafío

 

 

Leda Herrmann

Psicanalista. Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo sbpsp. Doutora em Psicologia Clínica pela PUC-SP. Autora de Andaimes do real: a construção de um pensamento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007

 

 


RESUMO

O texto compôs o Painel de Abertura do XVII Encontro de Institutos FEPAL. Discute o tema proposto tentando estabelecer a relação entre a transmissão da Psicanálise nos Institutos no âmbito da IPA e as consequências para a prática clínica atual das transformações que se apresentam no mundo em que vivemos.

Palavras-chave: transmissão da Psicanálise, clínica padrão, clínica extensa


ABSTRACT

This paper was part of the XVII FEPAL Institutes Meeting Opening Panel. It deals with its theme trying to put into relation Psychoanalyses that is taught in the IPA Institutes and the nowadays clinic practice that is pressed by the transformations presented in the world we live in.

Keywords: psychoanalytic training, standard psychoanalytic clinic, extensive psychoanalytic clinic


RESUMEN

El texto ha compuesto el Panel Inicial del XVII Encuentro de Institutos FEPAL. Discute el tema propuesto intentando establecer la relación entre la transmisión del Psicoanálisis en los Institutos de la API y las consecuencias para la práctica clínica actual de las transformaciones que se presentan en el mundo en que vivimos.

Palabras clave: transmisión del Psicoanálisis, clínica estándar, clínica extendida


 

 

O texto que acompanhou o convite para este XVII Encontro de Institutos2 apresenta-nos sua temática, que me pareceu cuidadosamente escolhida pela Comissão de Educação da FEPAL.

Apresenta-a como uma questão que, queiramos ou não, está presente para a formação em nossos Institutos. Destaca algumas características impostas à prática psicanalítica pela atualidade do mundo em que vivemos, avança algumas reflexões sobre se e como a transmissão da Psicanálise - objeto próprio dos Institutos de nossas Sociedades - incorpora tais novidades, e nos convida a iniciar uma séria reflexão sobre a conjunção dos dois temas que este Encontro implica: a transmissão de nossa disciplina e a clínica que praticamos.

A tarefa deste painel inicial é avançar um pouco nessa reflexão como um subsídio a mais para a jornada a que nos convida a Comissão de Educação da FEPAL.

Assim, quero agradecer em primeiro lugar o convite da Comissão para integrar este painel e em segundo lugar a ajuda que o texto preparado significou para mim.

A perspectiva que vou seguir é a que me inspira a conjunção "e" do título do Encontro. Temos Psicanálise em sua transmissão e clínica atual - transmissão e clínica estão postas lado a lado, o que me permite pensá-las em uma perspectiva de contribuições recíprocas.

 

Começando pela Psicanálise e sua clínica

A Psicanálise nasce concomitantemente com uma nova invenção para tratar as neuroses. É a ciência de um homem só, Freud, que procedeu a essas duas invenções. Nasce da clínica - do tratamento da histeria -, inventa uma clínica específica - o método interpretativo - para a cura de uma doença cujos sintomas denunciavam algumas condições do mundo das grandes cidades do início do século XX, por exemplo, a repressão sexual.

O desenvolvimento da Psicanálise, primeiro com Freud, dá-se pela bússola da clínica. É a clínica a fonte de descobertas para a própria construção do arcabouço teórico psicanalítico que depois, como interpretante, facilitará as descobertas da ação clínica na metáfora tão bem encontrada por Bion de "sem desejo e sem memória" para o momento clínico.

É preciso também considerar que a clínica atual responde ao desenvolvimento que a Psicanálise vem apresentando desde Freud, passando pela era das escolas a partir dos anos 40 do século passado, e superando-a nos finais do século XX (Herrmann, 1986).

Nossa clínica vai ganhando características tanto devidas à multiplicidade de posições psicanalíticas que a história da Psicanálise nos revela como pelas pressões das alterações nas condições de vida no mundo em que vivemos, pressões que se impõem tanto às características desse mundo como ao seu homem.

Na proposta do segundo termo do título deste encontro, "prática clínica atual", está abonada a perspectiva do mundo em sua contemporaneidade e no texto há referências a algumas das características que entranham a subjetividade dos homens que o habitam como o modelo da prevalência da ação sobre o pensamento.

A clínica, mesmo a clínica padrão de consultório com seu enquadre tradicional, é clínica do mundo, pois nosso paciente é do mundo e esse seu mundo adentra também a sala de análise.

Nossos pacientes, neste século XXI, apresentam-se com características peculiares. A expressão do sofrimento psíquico vem se dando, em muitos pacientes, pela passagem ao corpo e ao ato como nas crises de pânico, nas adições às drogas, às dietas. A comunicação também se altera. O paciente, que encontra dificuldades para explorar seu interior, constrói um discurso na forma de afirmações, sem perguntas. Não lhe é fácil escutar o analista e sofre da urgência pela velocidade em receber respostas para o que não perguntou.

Essas características, que nos falam da forma que tomam as subjetividades hoje, surgem como resposta às condições impostas pelo mundo em que vivemos de não permitir a seu homem conhecê-lo diretamente, mas apenas através de informações e propagandas mediáticas que se transmitem velozmente.

É assim que o homem perde a possibilidade do conhecimento direto do mundo. O mundo vai se apresentando a seu homem sem substância, um mundo construído por informações rápidas e cambiantes. Ele se torna pouco crível e sem lugar para o homem que o habita (Herrmann, 2001, Partes Primeira e Terceira).

Tudo isso tem exigido do mundo e de seu homem um trabalho mais árduo para a atribuição de sentidos na realidade que os cercam (ao homem e ao mundo). Por exemplo, ver uma vaca ser ordenhada ou escutar o cacarejo de uma galinha ao botar um ovo, naturalmente permitia à criança o sentido da proveniência do ovo ou do leite. Sem acesso direto a essas conexões, estamos todos à mercê das informações e da propaganda que vendem ovo e leite em caixinhas de supermercado.

Já na segunda década do século XXI encontramo-nos em meio aos bombardeios da aceleração das veiculações das informações e à possibilidade de respostas imediatas a perguntas que só se esboçam. Isto é, o Google nos dispõe explicações e informações sobre não importa o quê, ou para quê. E nós as aceitamos como verdades primeiras, e sem críticas. Esses bombardeios vão quebrando todas as fronteiras entre a interioridade da vida privada e a exposição e participação na vida pública, e nos vão afastando cada vez mais do trabalho mental em pensamento sobre as fontes do sentido humano. A subjetividade do homem no mundo em que vivemos se nos apresenta da forma acima esboçada nos pacientes que nos procuram com a urgência por rápidas respostas, com a tendência a um discurso mecânico e não reflexivo, com a intensificação da expressão do sofrimento por meio do corpo e de atos.

Temos que pagar impostos a esses câmbios que o mundo em que vivemos nos impõe, seja como cidadãos do mundo, seja como psicanalistas que se voltam para o sofrimento desses cidadãos.

A clínica responde com ampliação em seus modos para além do padrão, ainda tradição principalmente nas análises didáticas, quanto a alterações em questões de setting, como frequência, divã e mesmo consultório privado. Vemonos diante de análises realizadas com baixa frequência semanal e em circunstâncias pouco convencionais. Não é raro vermos analistas atendendo pacientes por telefone, por Skype, em hospitais e outras instituições, embora pouco se publique e se discuta a respeito dessas experiências.

Por outro lado, a sociedade também tem demandas para a atuação clínica do psicanalista em instituições diversas, não só hospitais. Essa clínica também apresenta peculiaridades que não se restringem apenas ao enquadre. Mas é clínica psicanalítica porque se realiza pela ação do método interpretativo e cumpre a função terapêutica da psicanálise - a cura no sentido apontado por Freud em "A questão da análise leiga", de possibilitar ao paciente o uso de seus recursos internos inacessíveis que estavam por força de repressão.

 

Passando para a transmissão da Psicanálise

O convite neste Encontro é encararmos os desafios que se apresentam para a formação psicanalítica nessa conjuntura, só de leve aqui abordada - a contemporaneidade tanto da Psicanálise como ramo de conhecimento humano como da nossa clínica acrescida de peculiaridades que a vão penetrando devido às injunções das características do mundo em que vivemos. Encarar significa também enfrentar.

A tarefa é bastante difícil e delicada. A seriedade com que nossos Institutos sempre trataram as complexas funções que a transmissão da Psicanálise exige foi ao longo da história da formação construindo regulamentações para organizar e fazer funcionar o tripé ensino teórico, supervisão e análise didática. Essas regulamentações legislam a formação, organizam a transmissão e servem como garantia de que a tarefa da administração da formação está sendo cumprida.

Mudar a regra, mudar a lei, só é possível quando os câmbios que se apresentam podem ser assimilados pela maior parte da comunidade analítica de cada Sociedade de Psicanálise - sejam mudanças na condição da clínica, na das construções teóricas acumuladas e aquelas que afetam o mundo em que vivemos. Estou pensando essa conjuntura de câmbios na perspectiva de nosso meio, o da Associação Psicanalítica Internacional.

Na minha Sociedade observo que a discussão sobre as características que vem tomando a clínica na atualidade se dá entre membros e candidatos no âmbito das reuniões científicas. É muito difícil transpô-las para o da formação, do Instituto. Somos uma Sociedade muito grande, quase 800 pessoas entre membros e candidatos, mas o único grupo psicanalítico filiado à Associação Internacional em São Paulo. Foi a partir do início da década de 80 que se deu o boom do surgimento de grupos psicanalíticos de formação e da entrada de muitos psicanalistas, principalmente lacanianos, como professores em departamentos das faculdades de Psicologia.

Penso que esta conjuntura da presença psicanalítica em São Paulo e seus vários grupos de formação fazem com que entre nós seja muito forte a crença apontada no documento que recebemos da Comissão de Educação de que "A formação analítica corresponderia à aprendizagem de um certo modo de pureza para aprender a escutar a vida e o funcionamento psíquicos". Creio que para nós é mais difícil considerar, para fins da administração da formação, o que diz a frase seguinte: "Mas não por isso, a análise 'clássica' é aplicável a todos ou está sempre indicada". Não que não nos damos conta dessa verdade, mas para muitos ela realmente não se aplica à situação da análise de formação, para a qual exigem, por exemplo, a forma estrita do setting padrão de 4 a 5 sessões por semana.

Por outro lado, se como Instituto cobrimos com o véu da análise didática padrão a possibilidade de qualquer outro tipo de prática analítica, e com isso estendemos hipoteticamente essa análise padrão a qualquer análise, vamos impor ao nosso candidato a tarefa de completar sozinho sua formação pelos caminhos que vai tomando a clínica na atualidade. Esses caminhos se apresentam pela demanda à Psicanálise de comparecer em programas de saúde mental, a seus profissionais de integrar equipes seja em hospitais, seja em instituições sociais ou de educação. Uma clínica extensa vai se constituindo, que nossos candidatos assumem, e para a qual a formação nos Institutos muito poderia contribuir. No Brasil, pelo menos, têm sido os profissionais mais jovens os que atendem tal demanda.

Para o analista que participa ativamente da formação - professores, didatas, supervisores - também se impõe tarefa ingrata. Essa de fazer uma artificial separação entre a clínica que segue o padrão da análise didática e a que não segue o enquadre clássico. A artificialidade está em considerar "psicanálise" só a primeira, e "psicoterapia psicanalítica" a segunda, pois, como já tratei mais acima, em ambas as práticas está presente o método interpretativo da Psicanálise, este sim o selo da ação de nossa clínica, padrão ou extensa, o único responsável pelo efeito terapêutico de nossa ação e que nos qualifica como psicanalistas. Ambas são psicanálise clínica. De outra forma, estaríamos atribuindo a eficácia terapêutica da Psicanálise apenas aos elementos de setting, ao enquadre, muitíssimos importantes, mas de forma alguma fixos e imutáveis como vem nos convencendo nossa prática analítica atual.

O documento da Comissão de Educação termina com um convite: "Pensarmos o melhor modo de transmitir nossa disciplina com rigor e sem rigidez, sem trair seus valores essenciais, sem ceder nos princípios que nos constituem, mas sem desconhecer as exigências da clínica e da prática psicanalíticas atuais e as de um mundo em mudança, que vai por uma direção diferente daquela que talvez imaginemos". Trata-se de um desafio a enfrentar com coragem, para o qual ainda, pelo menos em São Paulo, não temos resposta.

 

Referências

Freud, S. (1926). The question of lay analysis. In S. Freud, The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud (Vol. 20, pp. 177-258). Londres: The Hogarth Press.         [ Links ]

Herrmann, F. (1986). Convergências das várias teorias psicanalíticas. Revista Brasileira de Psicanálise, 20(4),553-565.         [ Links ]

Herrmann, F. (1998). Análise didática em tempos de penúria teórica. Revista Brasileira de Psicanálise, 32(4),697-709.         [ Links ]

Herrmann, F. (2001). Andaimes do real: psicanálise do quotidiano (3ª ed.). São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Herrmann, F. (2005). Clínica extensa. In L. Barone (Org.) et al., A Psicanálise e a clínica extensa (pp. 17-31). São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 11/10/2013
Aceito em: 15/10/2013

 

 

Leda Herrmann. Rua Girassol, 34/102, 054330-00. São Paulo, Vila Madalena. Tel: 11 3088-8123, herrmannfl@globo.com
1 A apresentação deste texto compôs o Painel de Abertura do XVII Encontro de Institutos FEPAL, APDEBA/Buenos Aires, novembro de 2013.
2 O Encontro de Institutos realiza-se a cada dois anos, promovido pela Comissão de Educação da FEPAL. Em 2013 o tema propôs uma reflexão sobre a transmissão da Psicanálise que nossos Institutos oferecem, frente aos desafios que se colocam para a prática analítica atual.