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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.46 no.85 São Paulo jun. 2013

 

TEMA: A TRANSMISSÃO DA PSICANÁLISE E A PRÁTICA ANALÍTICA ATUAL

 

"À moda da casa": considerações sobre transmissão da psicanálise e clínica psicanalítica contemporânea

 

"House Style": considerations on the transmission of psychoanalysis and contemporary psychoanalytic practice

 

"A la manera de la casa": consideraciones sobre transmisión del psicoanálisis y clínica psicoanalítica contemporánea

 

 

Ana Clara Duarte Gavião

Membro associado da SBPSP. Doutora em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da USP

 

 


RESUMO

A partir de experiências elaboradas na análise e na prática clínica pessoais, como também no estudo de autores clássicos e contemporâneos, são feitas considerações sobre a importância da valorização da formação psicanalítica no modelo clássico, dada a complexidade das demandas do inconsciente e do traumático, em suas diversas manifestações durante a história da psicanálise e na contemporaneidade, ressaltando-se as convergências entre as ideias sobre o contemporâneo do filósofo italiano Giorgio Agamben e as concepções psicanalíticas do tempo.

Palavras-chave: formação psicanalítica, transmissão da psicanálise, análise de formação, contemporâneo, atemporalidade


ABSTRACT

Based on experiences elaborated in personal analysis,in clinical practice, and in the study of classical and contemporary authors, we discussed the importance of valuing the classical model of psychoanalytic training, taking into consideration the complexity of demands of the unconscious and the traumatic in its various manifestations throughout the history of psychoanalysis and in contemporaneity, emphasizing the similarities between the notion of contemporaneity conceived by the Italian philosopher Giorgio Agamben and psychoanalytic concepts of time.

Keywords: psychoanalytic training, transmission of psychoanalysis, training analysis, contemporaneity, timelessness


RESUMEN

A partir de experiencias elaboradas tanto en el análisis y práctica clínica personales, como también en la investigación de autores clásicos y contemporáneos, se realizan consideraciones sobre la importancia de la valoración de la formación psicoanalítica en el modelo clásico, tras la complejidad de las demandas del inconsciente y de lo traumático, en sus distintas manifestaciones por la historia del psicoanálisis y en la contemporaneidad, valorándose las convergencias entre las ideas sobre la actualidad del filósofo Giorgio Agamben y las concepciones psicoanalíticas del tiempo.

Palabras clave: formación psicoanalítica, transmisión del psicoanálisis, análisis de formación, contemporáneo, atemporalidad


 

 

1. Respeito por si e pelo outro

É gratificante constatar que certas experiências analíticas tornam-se inesquecíveis pela vivacidade com a qual trazem renovação de sentidos e aberturas para pensar. Uma delas ocorreu-me há alguns anos atrás, na época de minha formação no Instituto, em uma sessão com meu saudoso analista Nelson Montag, quando contei-lhe que um colega havia me perguntado: "Seu analista é winnicottiano, não é?". Comentei, então, que, tendo ficado intrigada com esse rótulo que me soou um tanto quanto restritivo, respondi ao colega que achava que não, pois outros autores provavelmente também o interessavam bastante. Depois de certa abordagem transferencial, com bom humor, Nelson disse algo assim: "Curiosas as imagens que vão sendo construídas na instituição... quando me perguntam se sou freudiano, kleiniano, bioniano, winnicottiano e assim por diante, costumo responder: 'à moda da casa!'"

Após os risos, associei a analogia culinária ao clássico modelo freudiano de mente - o telescópio! Pensei nas teorias psicanalíticas apreendidas, elaboradas, digeridas e transmitidas por cada psicanalista de acordo com sua "casa interna", "suas lentes", sua personalidade: "Tudo o que pode ser objeto de nossa percepção interna é virtual, tal como a imagem produzida num telescópio pela passagem dos raios luminosos" (Freud, 1900/1990a, p. 491, grifo no original).

A refração da luz é uma representação interessante das transformações perceptivas inevitáveis, sofridas por qualquer estímulo - incluindo a psicanálise - ao propagar-se do meio externo ou sensorial para o psíquico. Tais imagens remeteram-me, ainda, à expressão "equação pessoal" utilizada por Freud em "A questão da análise leiga" (1926/1990f), tomada de empréstimo dos astrônomos, que reconhecem a influência da subjetividade do pesquisador na observação de fenômenos físicos.

Continuando as associações, lembrei-me do artigo de Parthenope Bion Talamo, "Por que não podemos nos intitular bionianos", onde ela se refere à liberdade mental que tornara Bion - seu pai - uma pessoa surpreendente:

um estudioso que não podia, por sua própria natureza, "fazer escola" - não podemos nos intitular bionianos porque sê-lo significa ser, em primeiro lugar, nós mesmos, mentalmente livres em nossas viagens de descoberta - sempre, no entanto, sobre uma base de disciplina psicanalítica pessoal férrea, porque liberdade e anarquia não são sinônimos. (Talamo, 2000, p. 65)

Nessa perspectiva voltada à valorização da liberdade de pensamento e de expressão, considero que o título do artigo de Parthenope poderia ser transposto a outros grandes autores da psicanálise, pela relevância de suas obras ser decorrência de um tipo de contribuição científica que revela e promove a originalidade, a criatividade e a consistência conceitual, qualidades imprescindíveis à evolução do conhecimento psicanalítico, podendo gerar, entretanto, idealizações e dogmatismos. Por outro lado, o alerta da autora quanto à importância da "disciplina" parece oportuno, já que, como sabemos, a complexidade do método psicanalítico envolvendo incertezas, tensões, instabilidade e o permanente contato íntimo com a dor psíquica, com o desconhecido, pode dificultar o desenvolvimento da função analítica, gerando evasões.

Tratando-se de temas controversos como a transmissão da psicanálise e a prática clínica atual, alguns princípios éticos que lhes são inerentes podem ser úteis para reflexão, levando-se em conta que não podemos nos referir, exatamente, a "ensino-aprendizagem" no sentido convencional das palavras, mas muito mais ao desenvolvimento, a longo prazo, da identidade psicanalítica - individual e institucional. A "Carta de Princípios Éticos" da SBPSP, adotada pela Febrapsi em 1999, considera que: "Ser psicanalista e ético, é dispor-se a identificar-se com os valores éticos intrínsecos à Psicanálise. A ética do psicanalista em seu trabalho clínico tem como referencial o respeito aos valores básicos da Psicanálise" (Sapienza, Cohen, Castro & Franco Filho, 1999/2013, p. 20). Entre os valores básicos temos: verdade, vértice psicanalítico, identidade psicanalítica, busca do conhecimento e respeito à liberdade associativa do paciente, valores ancorados na realidade psíquica.

No livro Tendo mente própria, Caper (2002) faz reflexões aprofundadas sobre o que nomeia "aspectos edipianos da transferência", explorando o estado de mente que permite ao analista estar receptivo e sensível às projeções do paciente e, ao mesmo tempo, manter certa distância emocional para preservar a ligação com seus próprios objetos internos, excluídos ao paciente. Caper aborda as sutilezas de uma "percepção realista" do analisando deste relacionamento simultâneo que o analista mantém com ele (analisando) e com "outra pessoa ou outra coisa" (objetos internos do analista), reconhecendo que, para poder analisar, o analista precisa ser capaz de manter essa simultaneidade enquanto algo distinto de ser simplesmente receptivo a ou identificado com. O autor vai considerar, então, a própria psicanálise como "objeto interno" do analista:

Sugiro que o objeto interno, que ajuda o analista a sustentar sua barreira interna contra as projeções do paciente, é a própria psicanálise enquanto um tipo específico de investigação empírica. Ela só funciona assim se for um objeto interno para o analista, e se torna um objeto interno para o analista apenas se ele a amar. Este amor pela psicanálise é adquirido e reforçado através da própria análise do analista, e sua presença parece ser um bom critério indicativo daquele estado indefinível denominado "ser analisado" ou "ter uma identidade como psicanalista". (Estou usando o termo "amor", aqui, para significar uma relação com a psicanálise que, embora positiva, não a idealize e não leve a uma identificação com ela. Esta seria uma relação narcísica com a psicanálise que iria, evidentemente, impedir o contato com o paciente real.) Quero enfatizar que a psicanálise, como objeto interno, não é algo que se adquira meramente por ter sido analisado, mas é algo que só se tem se se tiver uma paixão ativa pelo tipo de conhecimento que ela proporciona. (Caper, 2002, p. 176)

A discussão sobre a análise de formação ou análise didática tem revelado uma tendência a considerá-la incompatível com a regulamentação institucional, pelo raciocínio de que a natureza terapêutica do processo analítico e o desejo de ser analisado seriam solapados por seu caráter pedagógico ou profissionalizante. Mas, podemos entender que, na análise de formação, o "objeto interno psicanálise" é apreendido em sua dimensão objetiva e concreta - um requisito curricular - e, como qualquer outro objeto, é também investigado em sua dimensão psíquica, simbólica, buscando-se apreender seus significados particulares e inconscientes para aquela pessoa interessada em ser analista: conflitos, idealizações, fantasias, transferências e identificações projetivas na instituição, no próprio analista etc., permitindo conhecer e desenvolver, gradativamente, sua identidade como pessoa e como psicanalista, conforme o "objeto interno psicanálise" vai sendo elaborado, desidealizado e experimentado emocionalmente como um bom objeto, que frustra mas que predominantemente gratifica, já que traz crescimento pessoal e profissional.

Em sintonia com a concepção de formação para exercer a função psicanalítica como um processo de desenvolvimento da identidade psicanalítica, proporcionado pela análise pessoal do analista através da gradual internalização da psicanálise como um bom objeto interno, tratarei, a seguir, de aspectos que considero importantes para um posicionamento realista frente às dificuldades inerentes a esse processo e às demandas da clínica psicanalítica contemporânea.

Parto do princípio de que a "paixão ativa" pelo tipo de conhecimento que a psicanálise proporciona implica grande disponibilidade para a autopercepção interna, respeitando-se as experiências e limitações próprias e do outro.

Como trabalhei por aproximadamente 20 anos na área da saúde pública, abordarei a função analítica não apenas enquanto prática exercida na clínica padrão, mas, também, na clínica extensa, com atenção ao fato de que a "extensão" da clínica psicanalítica pressupõe um ponto de partida - a experiência pessoal e profissional no setting clássico, como um bom nutriente para o fortalecimento da identidade psicanalítica a ser transmitida e estendida aos mais variados contextos.

 

2. Ser contemporâneo e atemporalidade inconsciente

No último Congresso Brasileiro de Psicanálise realizado em Campo Grande, em 2013, tivemos na conferência de abertura proferida pelo filósofo brasileiro Pedro Duarte a grata oportunidade de refletir a respeito das convergências entre as ideias sobre o contemporâneo do filósofo italiano Giorgio Agamben e as concepções psicanalíticas do tempo.

Os benefícios para a psicanálise advindos da interlocução com a filosofia sempre se fizeram presentes, desde, por exemplo, a curiosa e longa citação de Schiller feita por Freud no segundo capítulo de "A interpretação de sonhos", a qual serviu-lhe para fundamentar a técnica da associação livre descrita pormenorizadamente na análise do "sonho modelo" que teve com sua paciente Irma, passando pela riqueza das articulações com o pensamento de Kant trazidas por Bion, até as diversas trocas promovidas pela SBPSP com Olgária Matos, cuja recente entrevista encontra-se publicada no volume 47 (2013) da Revista Brasileira de Psicanálise, entre inúmeras outras interlocuções.

As formulações de Agamben acerca da problemática do tempo de fato mostram-se extremamente oportunas, à medida que nos ajudam a elucidar a necessária diferenciação entre os processos de (des)subjetivação característicos da vida contemporânea e os processos de formação, transmissão e prática clínica da psicanálise na contemporaneidade, as quais retomarei mais adiante.

Nos atuais debates em torno das questões da formação psicanalítica frequentemente recorre-se ao argumento de que as mudanças culturais associadas aos avanços tecnológicos, tais como esvaziamento afetivo, hipervalorização do consumismo sensorializado e temporalidade acelerada, justificariam mudanças a serem implantadas nos dispositivos clássicos do setting psicanalítico. Pelo contrário, a meu ver, tais configurações que empobrecem violentamente a relação do sujeito com sua própria interioridade, levando a graves cisões em sua vida emocional, constituem demandas urgentemente endereçadas a um tipo de escuta e de elaboração oferecidas justamente pelo modelo clínico psicanalítico "clássico" - no sentido construtivo do termo, associado a sua validação permanentemente reafirmada ao longo da história e a seus valores éticos implícitos, ao invés do sentido de "antiquado", "ultrapassado" ou "desatualizado".

Evidentemente, a flexibilidade quanto à frequência de sessões, ao uso do divã e aos honorários é imprescindível para uma inserção efetiva e criativa da clínica psicanalítica na sociedade contemporânea e em qualquer época, tal como claramente foi proposto por Freud em seus artigos sobre técnica, por Melanie Klein na criação da psicanálise de crianças, que viabilizou o atendimento psicanalítico de psicóticos, como Freud (1905/1990b, 1937/1990g) já previa. Podemos considerar como "clássica" a flexibilidade do setting quando reconhecemos, também, o valor dos estudos psicanalíticos culturais desenvolvidos por Freud no campo da antropologia, das artes, da literatura, da religião, da mitologia etc. No clássico caso clínico do "Homem dos lobos" (1918/1990e) vemos inaugurada a abreviação do tempo do tratamento como estratégia de manejo da resistência.

Porém, quando consideramos o contexto da formação e da transmissão da psicanálise, qual o sentido de abrirmos mão de um dispositivo que nos favorece e instrumentaliza para o difícil manejo junto a demandas individuais e sociais tão complexas? O modelo clássico de formação seria uma imposição institucional rígida e infantilizadora? Em meu ponto de vista, a infantilização do profissional interessado pela formação psicanalítica está na desconsideração pelo fato de que sua busca é fruto de uma escolha feita por livre e espontânea vontade. Quanto à suposta rigidez atribuída aos regulamentos dos institutos por requererem a análise didática com alta frequência de sessões, acredito que não deveríamos confundir rigor e regulamentação com rigidez e burocratização, já que regras e normas são indispensáveis a qualquer grupo e que, neste caso, visam promover flexibilidade pela atenuação superegoica decorrente do autoconhecimento obtido pela análise pessoal intensiva.

Com exceção dos honorários tradicionalmente elevados para a análise de formação - muito embora, ao menos na SBPSP, encontremos vários analistas didatas1 flexíveis quanto aos custos da análise didática -, podemos reconhecer as vantagens dos requisitos exigidos pelos institutos de psicanálise vinculados à IPA, como a alta frequência de sessões e o uso do divã, por facilitarem a autopercepção interna, imprescindível para a apreensão do campo intersubjetivo na clínica padrão e na clínica extensa. Crescem as discussões e a prática de honorários acessíveis.

Faço aqui uma ressalva à expressão "alta frequência de sessões" para a análise de formação, atualmente utilizada genericamente para referir a frequência de três a cinco sessões semanais: considerando os limites inevitáveis do tempo cronológico (princípio de realidade) e, portanto, o critério semanal universalmente adotado, não parece irrelevante a diferença entre o mínimo de "três" e o mínimo de "quatro" sessões por semana, já que em sete dias - levando-se em conta que o inconsciente não nos dá folga no fim de semana - três sessões não correspondem, propriamente, a uma "frequência alta", mas média ou talvez baixa. O desenvolvimento do conhecimento psicanalítico implica intimidade em dimensões inconscientes intersubjetivas, a serem apreendidas pelas experiências emocionais na convivência cotidiana. Por esse ângulo, a manutenção da frequência mínima de quatro sessões semanais no Instituto Durval Marcondes da SBPSP pode ser valorizada como um precioso benefício.

Assim, na perspectiva aqui compartilhada, a preservação e a valorização do setting psicanalítico clássico durante a formação estimulam o desenvolvimento da identidade psicanalítica, favorecendo a escuta clínica em settings convencionais e não convencionais, como pude vivenciar, por exemplo, em diversos contextos assistenciais no Instituto Central do Hospital das Clínicas - fmusp, no decorrer dos vários anos em que lá trabalhei. Nos sete anos em que tive a oportunidade de exercer funções administrativas como diretora de um serviço de assistência psicológica a diversas especialidades médicas, foi possível constatar significativos ganhos qualitativos nas atividades assistenciais psicanaliticamente orientadas, entre colegas que "mergulham" mais profundamente em sua análise pessoal.

Passando às contribuições de Agamben (2009), verificamos que o estabelecimento de uma relação lúcida com as manifestações da contemporaneidade - "ser contemporâneo" - pressupõe certo distanciamento que permita a visibilidade dos fenômenos intersubjetivos implícitos nas relações humanas para poder pensá-los (como a "moda", um interessante exemplo analisado pelo autor), o que remete à dialética temporalidade/atemporalidade, consciente/inconsciente, proximidade/distanciamento, intrínseca à concepção psicanalítica de tempo e de mente, como vimos nas reflexões clínicas e éticas de Caper acima mencionadas.

Agamben inicia seu ensaio "O que é o contemporâneo?" citando a proposição nietzschiana na qual o contemporâneo corresponde ao intempestivo, ou seja, ao que é inesperado, extemporâneo e inoportuno no presente, em sua desconexão com o presente, e não com o passado. Em suas palavras:

Nietzsche situa a sua exigência de "atualidade", a sua "contemporaneidade" em relação ao presente, numa desconexão e numa dissociação. Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual; mas, exatamente por isso, exatamente através desse deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender o seu tempo. (Agamben, 2009, p. 58)

Vemos que Nietzsche e Agamben referem-se à experiência da contemporaneidade envolvendo uma desconexão com o presente para viabilizar sua percepção, aproximando-se do método psicanalítico em sua proposição técnica de apreensão dos significados das experiências emocionais no presente, através da escuta transferencial e contratransferencial na dimensão atemporal do inconsciente.

Outra interessante aproximação com a escuta psicanalítica pode ser vista na consideração de Agamben pela contemporaneidade do "arcaico":

De fato, a contemporaneidade se inscreve no presente assinalando-o antes de tudo como arcaico, e somente quem percebe no mais moderno e recente os indícios e as assinaturas do arcaico pode dele ser contemporâneo. Arcaico significa: próximo do arké, isto é, da origem. Mas a origem não está situada apenas num passado cronológico: ela é contemporânea ao devir histórico e não cessa de operar neste, como o embrião continua a agir nos tecidos do organismo maduro e a criança na vida psíquica do adulto. A distância - e, ao mesmo tempo, a proximidade - que define a contemporaneidade tem o seu fundamento nessa proximidade com a origem, que em nenhum ponto pulsa com mais força do que no presente. (Agamben, 2009, p. 69)

Tendo em vista que a especificidade da psicanálise pode ser encontrada na apreensão e simbolização das manifestações do inconsciente, do arcaico e do traumático no presente, tanto no indivíduo como nos grupos, reconhecemos como altamente desejável para o psicanalista um treinamento intensivo para o aprimoramento da intuição e da auto-observação em dimensões intersubjetivas inconscientes, não sensoriais e atemporais, favorecido pelo modelo clássico de transmissão da psicanálise, no qual a análise pessoal do analista é o foco principal. Como não há garantias, já que os psicanalistas são seres humanos, falíveis, a fundação da IPA teve por objetivo promover o cuidado com a qualidade da formação (Freud, 1910/1990c; 1914/1990d)2. Por outro lado, há quem considere que a IPA foi instituída para "controlar", "fiscalizar", "elitizar", como num sistema "nazista" ao qual nós, membros, estaríamos submetidos e seduzidos por uma espécie de megalomania coletiva.

Vale o cuidado com a ideia de que a formação psicanalítica clássica tornou-se obsoleta e que a abordagem adequada às demandas da contemporaneidade envolveria um distanciamento conceitual com o passado da psicanálise, ou sua subversão. Por sua própria natureza, a psicanálise é um método de investigação subversivo, ou seja, subvertê-la é um movimento que neutraliza seu potencial transformador intrínseco.

As elaborações do filósofo Agamben, associadas às pertinentes reflexões de Olgária Matos sobre educação e crise da imaginação em sua recente entrevista à Revista Brasileira de Psicanálise (2013), suscitam preocupações quanto à possibilidade de que o desejo de abandonar o modelo tradicional de transmissão da psicanálise corresponda à identificação do psicanalista com as resistências da cultura contemporânea ao contato com a subjetividade e com a dor psíquica, sem o suficiente distanciamento para pensá-las e reintegrá-las simbolicamente.

A contraposição entre "clássico" e "contemporâneo" pode ser pensada de maneira mais produtiva quando consideramos a psicanálise contemporânea (evoluindo desde sua criação) em relação à ciência clássica (positivista), ao invés da psicanálise antagonizando a si mesma.

Em conversas informais com colegas e amigos psicanalistas que se queixam da falta de pacientes interessados por fazer análise com quatro ou mais sessões na semana, tenho perguntado: "Mas e nós, psicanalistas, estamos interessados?"

 

3. Um telefone sem fio e um fio da meada

Um argumento recorrente a favor da flexibilização do setting psicanalítico, que por vezes acaba se confundindo com a defesa da desregulamentação da formação, considera que na clínica contemporânea o sofrimento psíquico dos pacientes expressa-se pela passagem ao corpo e pela passagem ao ato, como nos distúrbios do pânico, nos transtornos alimentares, na adição às drogas e em outros transtornos compulsivos.

Algumas particularidades de tal sintomatologia associam-se a inúmeras transformações culturais ocorridas desde a criação da psicanálise há mais de um século, culminando no atual discurso não indagativo e impregnado de urgências para aplacar a angústia, com o qual nossos pacientes nos procuram. Entretanto, não podemos esquecer que a passagem ao corpo e ao ato sempre ocupou o centro da investigação psicanalítica, como nas clássicas manifestações da histeria que levaram o então neurologista Freud a criar e a desenvolver o método psicanalítico de investigação da subjetividade.

Quanto aos atuais enquadres distintos do setting clássico para abordagens não interpretativas, indispensáveis na clínica borderline e das psicoses, podemos verificar que de algum modo também sempre estiveram presentes nas concepções psicanalíticas:

Se nas descrições da técnica analítica se fala tão pouco sobre "construções", isso se deve ao fato de que, em troca, se fala nas "interpretações" e em seus efeitos. Mas acho que "construção" é de longe a descrição mais apropriada. (Freud, 1937/1990g, p. 295)

Neste texto de 1937, as alucinações e os delírios psicóticos, assim como os sintomas neuróticos e os sonhos, são reconhecidos como manifestações variadas da mesma busca inconsciente por simbolização e pelo pensar. Freud considera, inclusive, a natureza delirante da própria interpretação psicanalítica!

Geralmente desconsideramos o fato de que embora Freud não tenha se dedicado ao atendimento clínico de psicóticos, a metapsicologia essencial à compreensão dos estados psicóticos já fora proposta em 1900, em "A interpretação de sonhos", onde a impossibilidade de sonhar do psicótico é atribuída à ascendência ao Pcs-Cs de elementos carregados de sensorialidade, violência emocional e dores traumáticas (nomeados por Bion de elementos-beta que não se transformaram em alfa). A tela da censura é rompida quando o "guardião do sono" e da saúde mental - o sonho - é subjugado por esses impulsos inconscientes não ligados a elementos com qualidade psíquica de representabilidade, levando ao acordar e à incapacidade de sonhar e de pensar.

Outro reducionismo que pode ser desfavorável à transmissão do "fio da meada" na evolução das teorias psicanalíticas revela-se na ideia, frequentemente verbalizada, de que Melanie Klein não teria considerado a importância da realidade externa na constituição da subjetividade. Se, de fato, o modelo kleiniano privilegia as vicissitudes das relações de objeto interno, isso não significa desconsideração pela realidade concreta no pensamento da autora, mas sim sua opção pelo vértice da realidade psíquica. Seguem alguns exemplos:

No desenvolvimento normal, os estados de desintegração vividos pelo bebê são transitórios. A gratificação por parte do bom objeto externo, entre outros fatores, ajuda reiteradamente a transpor esses estados esquizoides. (Klein, 1946/1991a, p. 29, grifos meus)

Pois mesmo o bebê muito pequeno responde ao sorriso de sua mãe, às suas mãos, à sua voz, à forma como ela o segura e atende suas necessidades. A gratificação e o amor que o bebê vivencia nessas situações ajudam a contrabalançar a ansiedade persecutória, até mesmo os sentimentos de perda e perseguição despertados pela experiência do nascimento. (Klein, 1952/1991b, p. 89)

Em trabalho recentemente apresentado em Reunião Científica da SBPSP (Gavião, 2013), propus a consideração pelas convergências entre o modelo freudiano de sonho e o modelo bioniano da função-alfa, seguindo assinalamentos e citações do próprio Bion, após estudo prolongado do riquíssimo texto freudiano de 1900, para contribuir, na medida do possível, com a fundamentação da perspectiva da psicanálise enquanto uma ciência que se desenvolve pela evolução e complementaridade das teorias, ao invés de rupturas (Gimenes, 1997; Franco Filho, 1997). As inovações teóricas e técnicas concebidas por inúmeros autores como Winnicott, Rosenfeld, Green, Ogden, entre muitos outros, parecem relevantes pela originalidade com a qual transitam por outros vértices até então não contemplados, promovendo verdadeiros avanços, mas não mudanças paradigmáticas essenciais. Por este enfoque, as mudanças metapsicológicas substanciais parecem estar contempladas na própria obra freudiana, nas reformulações das teorias dos instintos3 e da angústia, e na proposição da segunda tópica (id, ego, superego).

Em meu "telescópio", a integração Freud-Bion elaborada no trabalho acima referido aproxima-se do "sexto momento" da psicanálise apresentado por Luís Claudio Figueiredo em sua conferência "Escutas em análise. Escutas poéticas", proferida na SBPSP em novembro último. De acordo com o autor:

Pensamos que a complexidade das escutas se impõe nas práticas da psicanálise contemporânea justamente porque hoje podemos reconhecer tanto as virtudes quanto os limites de todas as escutas, enfatizando-se, em contrapartida, a vigência do primeiro Momento Freudiano e, em grande medida, a do Momento Bioniano. Estes momentos, exatamente porque se abrem para o inesperado, exatamente porque comportam um manter-se à espera do não esperado - sem memória, sem desejo e sem compreensão prévia - serão sempre o melhor dos antídotos contra a saturação do campo da escuta analítica, a melhor bússola na viagem meio às cegas que uma análise realiza, e que só se realiza bem meio às cegas. (Figueiredo, 2013, p. 12, grifos do autor)

Assim como Grotstein (2006), em seu comentário na contracapa do livro de López-Corvo, Wild thoughts: a clinical application of W. R. Bion's theories, entendo que Freud, Klein e Bion trouxeram as mais relevantes e substanciais contribuições à teoria e à prática psicanalíticas, e que, como afirma o autor, Klein era "muitíssimo freudiana" e Bion "muitíssimo freudiano e kleiniano", porém não no sentido restritivo e dogmático atribuído aos termos no início deste artigo; ao contrário, podendo ser essencialmente eles mesmos, desenvolvendo seus próprios pensamentos psicanalíticos "à moda da casa", tal como Freud a partir de seus antecessores Charcot, Breuer, Sófocles, Schiller, Shakespeare, entre outros...

 

4. Quem não gosta de samba... gosta de funk?

Sapienza (2013), em conferência intitulada "Função da Escrita em Psicanálise", proferida na SBPRP em um evento da revista Bergasse 19, cuja gravação tive a oportunidade de ouvir, propõe um instigante e denso roteiro de estudo referente às relações entre psicanálise e literatura, especialmente com as epopeias.

Considerando a tradição da transmissão da psicanálise por via oral e escrita, Sapienza transpõe para o campo psicanalítico a visão épica, voltada para o "vir a ser" no contexto da sobrevivência em combates, guerras e disputas políticas por territórios, incluindo as "clivagens em relação ao grupo ao qual cada um de nós pertence", destacando a presença de "vetores de força a favor e contra os vínculos primordiais". Seu modelo percorre citações de vários autores, como Bion, Freud, Virgílio, Horácio, Dante, Milton e outros, destacando-se o "heroísmo" implícito no exercício cotidiano da função analítica, bem como nas relações institucionais.

Tensões, conflitos, discórdias, intercalados à harmonia são levados em conta, remetendo-nos à questão das rupturas, do pensamento dogmático e da "violência teórica", como também às relações entre "linguagem em psicanálise" e o mito da Torre de Babel. A Guerra dos Cem Anos é mencionada, oferecendo-nos um interessante modelo para pensar na luta entre franceses e ingleses e na dissidência do movimento lacaniano.

Em certo momento de sua fala, Sapienza refere-se ao samba de Dorival Caymmi Samba da minha terra, ressaltando a passagem "Quem não gosta de samba, bom sujeito não é...", numa divertida associação à arrogância que caracteriza as disputas ideológicas entre nós, psicanalistas.

O samba de Caymmi remeteu-me à lembrança de uma "sessão épica" que vivi com um analisando, quando ele dizia, praticamente gritando, que "não é possível que alguns amigos meus gostam de funk", considerando inadmissível tamanho "mau gosto", o que deixou-me surpresa e envolvida na dinâmica de questioná-lo em seu autoritarismo musical. Perguntei-lhe: "Mas você não acha que para eles pode não ser 'mau gosto'?". Sua fúria cresceu e, naturalmente, voltou-se contra mim! Devo admitir certa captura de minha função analítica por um enactment que permaneceu vivo naquela semana, atenuando-se nas conversas menos acaloradas da semana seguinte, quando pudemos começar a construir juntos um aprendizado mais significativo e profundo sobre a realidade de que não somos donos da verdade...

 

Referências

Agamben, G. (2009). O que é o contemporâneo e outros ensaios (V. N. Honesko, trad.). Chapecó, SC: Argos.         [ Links ]

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Recebido em: 16/12/2013
Aceito em: 18/12/2013

 

 

Ana Clara Duarte Gavião. Rua Capote Valente, 439, cj. 122 - Pinheiros, 05409-001. São Paulo, SP. Tel: 11 3085-3906, gaviaoanaclara@gmail.com
1 Concordo com Cassorla (2012) quando afirma que o termo "analista didata" é inapropriado, uma vez que o analista não vai "ensinar" psicanálise.
2 Um instrutivo histórico sobre o tema pode ser visto no primeiro capítulo "Pluralismo e singularidade" de Ester Hadassa Sandler, do livro Dimensões (2012).
3 Winnicott posicionou-se contrariamente ao uso do conceito de instinto de morte, considerando-o desnecessário para a compreensão de sua clínica, enriquecendo o debate em torno do tema. Aprofundamentos interessantes podem ser encontrados em Della Nina (2013).