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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.46 no.85 São Paulo jun. 2013

 

TEMA: A TRANSMISSÃO DA PSICANÁLISE E A PRÁTICA ANALÍTICA ATUAL

 

Medo e paixão na formação analítica: uma trajetória pessoal1

 

Fear and passion in analytical formation: a personal trajectory

 

Miedo y pasión en la formación analítica: una trajectória personal

 

 

Ana Maria Stucchi Vannucchi

Membro efetivo da SBPSP. Docente do Instituto de Psicanálise "Durval Marcondes" da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP. Membro eleito da Comissão de Ensino do Instituto de Psicanálise da SBPSP

 

 


RESUMO

A autora apresenta neste trabalho reflexões sobre seu percurso de formação psicanalítica, enfatizando a análise pessoal e as reanálises do analista, para que ele tenha cada vez mais contato com sua própria mente e assim possa favorecer o mesmo processo em seus analisandos. A autora destaca o fator medo que emerge no processo de formação psicanalítica analisando as possíveis e muitas vezes frequentes angústias decorrentes do contato com a vida mental. Destaca também a paixão que é despertada por esse contato, e que além de trazer angústias, "dá vida" à analise pessoal, mas necessita ser transformada em amor e conhecimento de si próprio e da Psicanálise.

Palavras-chave: formação psicanalítica, analise pessoal, paixão, medo, amor


ABSTRACT

In this paper, the author presents reflexions on her psychoanalytical formation, highlighting her personal analysis and subsequent analysis of the analyst, allowing him or her to have more contact with his or her own mind, favoring the same process in his patients being analyzed. The author highlights the fear that emerges in the analytical formation process analyzing the possible and frequent anxiety that spring from the contact with mental life. She also highlights the passion that is awakened by this contact, which, besides bringing anxiety, "gives life" to the personal analysis, but that needs to be transformed in love and self-knowledge and knowledge on Psychoanalysis.

Keywords: psychoanalytical formation, personal analysis, passion, fear, love


RESUMEN

La autora presenta en este trabajo reflexiones acerca de su trayecto de formación psicoanalítica, enfatizando el análisis personal y los reanálisis del analista, para que éste tenga cada vez más contacto con su propia mente y de esta manera pueda favorecer el mismo proceso en sus analisandos. La autora realza el factor miedo que emerge en el proceso de formación psicoanalítica analizando las posibles, y muchas veces frecuentes, angustias resultantes del contacto con la vida mental. Hace hincapié además, en la pasión que ese contato despierta, y que, más allá de traerle angustias, "le otorga vida" al análisis personal, pero necesita transformarse en amor y conocimiento de sí mismo y del Psicoanálisis.

Palabras clave: formación psicoanalítica, análisis personal, pasión, miedo, amor


 

 

Este trabalho surgiu de meu profundo envolvimento com questões da formação analítica, provenientes do contato frequente com analistas em formação em meus seminários no Instituto de Psicanálise da SBPSP, bem como de minha participação extensa e intensa na Comissão de Ensino deste mesmo Instituto, foro privilegiado de reflexão sobre a formação analítica.

Penso também que a formação analítica tem ocupado grande parte de minha vida nos últimos anos, constituindo-se assim numa esperança de que a psicanálise, tal como a recebi de meus antepassados, possa sobreviver aos "novos tempos" e continue trazendo ao ser humano, especialmente aos novos analistas em formação, possibilidades de humanização e desenvolvimento psíquico. Acredito que o contato com a psicanálise me trouxe possibilidades novas e criativas, o que me move a expressar gratidão, que procuro transmitir nas reflexões que desenvolvo neste trabalho.

Vou partir de minha experiência pessoal, uma vez que considero a análise pessoal elemento central da formação analítica. Na realidade, minha paixão pela psicanálise nasceu não do estudo ou do "falar sobre" psicanálise, mas do privilégio que tive de fazer uma longa análise bem antes da formação, por necessidade pessoal. Ao longo desta análise pude desenvolver, juntamente com meu primeiro analista, a possibilidade de me dar conta de vivências, sentimentos, fantasias, sonhos, que muito me ajudaram a perceber e elaborar minhas dificuldades daquele momento.

Essa experiência propiciou desenvolvimento psíquico e o surgimento do desejo de ser analista. Foi a partir desta experiência e da utilidade desta psicanálise para a minha vida que a paixão surgiu. Me lembro aqui das palavras de Pérsio Nogueira, inúmeras vezes repetidas: "Se for psicanálise, tem que ser útil para a vida" (comunicação pessoal).

 

A Paixão e suas vicissitudes

Não estou sozinha ao enfatizar este aspecto da experiência de análise e do encontro profundo entre duas mentes como origem da paixão, pois é assim mesmo que a define Bion em Elementos de psicanálise (1963/2004, p. 27). Vários analistas nos alertam para os sinais importantes que um analista leva consigo em sua vida, a partir de sua experiência de análise ou reanálise pessoal (Garcia de Barros, 1992). Rezze (2012) fala da análise pessoal como um imperativo, ou ainda como uma oportunidade ímpar de desenvolvimento.

Vejo-me diante da difícil tarefa de definir psicanaliticamente a palavra paixão, e me pergunto: seria possível fazê-lo? Penso inicialmente que seria mais interessante trabalhar com a penumbra de associações que a palavra sugere. Ao não defini-la, amparo-me nas observações do colega Luis Tenório de Oliveira Lima, em fórum recente (2013), esclarecendo que "os conceitos psicanalíticos são imperfeitos, plásticos e se desenvolvem, não podendo portanto ser fixados, definidos, como nas teorias essencialistas" (informação verbal).

Também Bezerra de Menezes evita uma definição de paixão, utilizando-se da poesia para falar da experiência da paixão e das invariantes que esta experiência expressa através dos tempos, definindo-as como topos do amor-paixão. Ela nos esclarece o significado etimológico da palavra, ligado à noção de sofrimento e à dinâmica afetar/ser afetado, e diz: "é tudo que afeta o corpo ou a alma, no bem e no mal..." (1996, p. 42).

Acredito também que se essa paixão não surgir na dupla analítica, pode advir o desastre da análise regulamentada, burocrática, institucional, degradada, subalterna, tal como a mencionam as inúmeras críticas que encontramos na literatura com relação à análise didática (Meyer, 2008; Herrmann, 2008). Penso, outrossim, que este desastre não se deve à regulamentação em si, mas sim à impossibilidade de uma análise pessoal, profunda e apaixonada.

Por outro lado a paixão precisa ser transformada, durante o trabalho analítico, em amor e conhecimento (Bion, 1963/2004), permitindo assim o desenvolvimento da função analítica, pedra angular da identidade psicanalítica. Se o cerne da dupla analítica for o trabalho analítico transformador, com ênfase na liberdade, autonomia e alteridade do analisando, podemos então ter esperança de que possa nascer um novo analista (Azevedo, 2008)!

Alguns autores se utilizam da noção de paixão para se referir ao desejo de ser psicanalista, colocando-a em parceria com a de curiosidade. Mello Franco, por exemplo, considera que o "ingrediente necessário ao analista seria certa dose de curiosidade pelo funcionamento da mente", e ainda a ideia de que "a paixão seria uma ampliação da curiosidade, elemento não só indispensável, mas primordial para o desenvolvimento do analista" (1992, pp. 12-15). Mello Franco ainda distingue entre a capacidade para ser analista, que é inata, e a aptidão, que pode ser aprendida e desenvolvida (1992, p. 18).

De qualquer maneira, tanto a capacidade como a aptidão nos remetem à personalidade do futuro analista, que está sempre envolvida não só na análise pessoal, mas na formação como um todo, podendo ser desenvolvida e expandida, se o trabalho de formação for "suficientemente bom", como cunhou Winnicott ao falar da dupla mãe-bebê, para transmitir uma concepção não idealizada da função materna (1988/2002, p. 80).

Acredito que uma formação "suficientemente boa" envolva muitas dificuldades e sofrimentos, mas também supõe o prazer de perceber a possibilidade de entrar em contato profundo com o próprio mundo mental e o de outrem; a capacidade de se desenvolver psiquicamente e a energia necessária para enfrentar as dificuldades do percurso, como uma "chama interna/eterna", que caracteriza a paixão (Pereira da Silva, 1992, p. 76). Aliás, este é um comentário bastante comum entre analistas, pois supõe que tamanha dedicação à psicanálise só seja possível com muita paixão...

Ocorre que a paixão envolve idealização, tal como nos ensina Freud. Como observação inicial, posso considerar a paixão como uma vivência pulsional, libidinal, que transborda do Eu, e alcança o objeto, mantendo algum resíduo narcísico, e trazendo consigo uma superestimação do objeto, que Freud chamou de idealização (Freud, 1914/2010a, capp. 2 e 3).

Embora muitos outros fatores possam ser determinantes desta paixão, penso que realmente o contato com a vida mental e as possibilidades que ele cria, bem como a possibilidade de um contato intenso e profundo com outra mente, despertam uma paixão muito intensa, seja por sua beleza, seus mistérios inacessíveis ou suas potencialidades de contato com a realidade interna e externa, consigo próprio e com o outro.

Penso que esse contato profundo com a mente primitiva abre espaço para a criatividade, especialmente para o viver criativo, ou, como quero enfatizar, para o trabalho analítico criativo, que surge da experiência transformadora no contato com o desconhecido de cada um de nós. Como me disse uma paciente recentemente, num momento de insight: "Estava perdida, meio desesperada, de repente, fiz uma curva e vi a catedral toda iluminada! O desespero de estar perdida e poder continuar, valeu a pena!".

Como eu disse, apaixonei-me pela psicanálise! Comecei outra análise, também longa, na qual foi possível conhecer aspectos ainda mais profundos do meu funcionamento mental e a possibilidade de um profundo encontro humano entre duas mentes. Paralelamente, estudei muitas teorias psicanalíticas, atendi pacientes e tive muitas supervisões de meus atendimentos, o que me ampliou como pessoa e também como analista. Além disto, tive oportunidade de fazer novas e fortes amizades, bem como conversar com colegas, configurando um elemento grupal da formação, que se constitui num importante aspecto da identidade psicanalítica (Mello Franco, 1992; Bolognini, 2008b).

Com o início da formação analítica minha carreira docente foi perdendo interesse e tornando-se secundária, o que mobilizou um mergulho e uma profunda imersão na psicanálise. Não penso que tenha que ser assim, apenas percebo que escolhi este caminho, de forma que acredito ser a vida acadêmica, com ênfase nas teorias e na erudição, algo muito diferente da vida "encarnada" do psicanalista.

Isso se aproxima da sugestão de Green a respeito da diferença entre a Filosofia e a Psicanálise: "uma teoria psicanalítica do pensamento não pode ter seu ponto de partida na abstração, ou nas ideias, como é o caso de muitos sistemas filosóficos. A teoria psicanalítica atingirá sua meta no domínio da abstração, mas deverá partir de um material mais bruto" (Green, 2000, p. 139). Penso que ele se refere aqui aos dados sensoriais/corporais, ou ainda à mente primordial, cuja captação implica intuição e empatia, tal como propõe Bion, ao conceituar a noção de função alfa como matriz da capacidade de pensar e abstrair (1962/1996).

Mas apenas a Paixão não é suficiente, logo a euforia inicial cessa e nos defrontamos com as dificuldades externas e internas. Vou me ocupar das internas, que realmente interessam ao psicanalista. Ocorre que o contato com a própria mente desperta, como já disse Freud, inúmeras e profundas resistências: "chama-se resistência a tudo que, nos atos e palavras do analisando, durante o tratamento psicanalítico, se opõe ao acesso deste ao seu inconsciente" (Freud, citado por Laplanche & Pontalis, 1982/2008, pp. 458-460), ampliando também o conceito para o de resistência da psicanálise, "para designar uma atitude de oposição as suas descobertas, na medida em que revelam os desejos inconscientes e infligem ao homem um 'vexame psicológico'" (Laplanche & Pontalis, 1982/2008, pp. 458-460).

 

Quem não tem medo da psicanálise?

Creio que os medos e angústias ligados à formação se relacionem de alguma maneira com o que Freud chama de resistências, ou seja, obstruções ao contato com a própria mente. Esclareço também que não me refiro apenas à formação "institucional", mas que falo de resistências na nossa interminável formação psicanalítica, que nos acompanha diariamente, seja em nossas reanálises, autoanálises, ou nas análises que conduzimos com nossos pacientes. Como nos lembra Marucco, talvez o objetivo primordial da análise do analista seja promover uma capacidade de autoanálise. Ele esclarece que através da autoanálise, ou de reanálises, alguns pontos cegos do analista poderão ser desvelados, o que favoreceria uma ampliação do campo analítico, além de poder oferecer um efeito terapêutico para o próprio analista (Marucco, 2008, p. 193).

Também não pretendo definir o conceito de medo, pelas mesmas razões anteriormente citadas. Prefiro mencionar que o trabalho de análise pessoal, bem como a formação analítica, produz intenso contato com a mente primitiva, favorecendo o desenvolvimento do psíquico e da função psicanalítica da personalidade.

Desse contato com a mente primitiva, por outro lado, resultam angústias profundas. Quais seriam elas? Perceber os aspectos primitivos do próprio funcionamento mental como onipotência, arrogância, crueldade, violência, sexualidade perversa/polimorfa, desamparo, vivências de aniquilamento, alucinação negativa ou positiva, o que pode muitas vezes ser vivido como "loucura", algo que "teria que ser eliminado" do mundo mental. Acredito, no entanto, que esses elementos primitivos precisam ser reconhecidos pelo analista em si próprio, para que possam ser transformados em algo que possa servir para o desenvolvimento psíquico de ambos os membros da dupla analítica (Castelo Filho, 2013).

Felix Gimenes nos lembra que o trabalho de análise do analista envolve estados emocionais e psíquicos que podem ser sentidos como um misto de encantamento e temor de desequilíbrio mental, como se estivesse caminhando à beira de um abismo, ameaçado de "loucura". Nestes momentos podem surgir "resistências, despertadas e mobilizadas pela vivência e intensidade do conflito intrapsíquico" (Gimenes, 1992, pp. 13-18).

Penso que se estas resistências não puderem ser percebidas e elaboradas, podem prejudicar o desenvolvimento da função psicanalítica bem como a própria formação psicanalítica. Vemos que atualmente há uma tendência a apressar a formação, que se expressa, ao meu ver, nas alterações do setting das análises de formação, na diminuição do número de sessões, bem como no cumprimento estrito do tempo estabelecido pela instituição para a análise de formação. Rocha Barros nos alerta para os perigos da desconstrução do analista nos dias atuais, conjecturando a existência de uma "contra-transferência pré-formada" no psiquismo do analista, que o predispõe a fazer concessões aos pacientes, afastando-se assim do método psicanalítico (Rocha Barros, 2012).

Sabemos que esses elementos de pressa e superficialidade são próprios da contemporaneidade, tal como nos sugere Olgária Matos: "essa temporalidade veloz impede que o tempo do exercício da afetividade para a consolidação de laços possa se estabelecer" (Matos, 2013, p. 17).

Olgária observa que qualquer atividade requer tempo, seja leitura, reflexão, capacidade de pensar e compreender, pois esses processos não são imediatos e rápidos, esclarecendo que a novidade não é necessariamente algo bom, e que essa forma de pensar pode produzir um "encurtamento do pensamento" (Matos, 2013, p. 24). Olgária menciona também que o tempo é necessário para que um fato se transforme em experiência vivida.

Se pensarmos assim, podemos nos perguntar quanto "tempo" dispende um analista em formação para tornar-se analista! Tempo de análise pessoal, que supõe, além de um enorme investimento afetivo, um considerável investimento financeiro. Tempo pessoal investido em leituras, seminários e grupos de estudo, que é "retirado" de tantas outras atividades prazerosas e afetivas! Qual seria o retorno deste investimento? Sentir-se analista? Sabemos que os momentos realmente analíticos são raros e poucos. Como conviver com essa de falta de garantias? Como conviver com o fato de que um dia você se sente analista e no dia seguinte, ou mesmo no momento seguinte, pode perceber-se não analista? (Menezes, 1992).

Sabemos também que a psicanálise se criou como uma disciplina revolucionária, e que sempre andou na contramão da cultura, lutando por condições de humanização que facilmente desaparecem do nosso cenário, frente à modernidade do desenvolvimento tecnológico, que nem sempre se faz acompanhar de desenvolvimento humano. Será que podemos ser contemporâneos sem ceder facilmente às modernizações que nos são impostas?

Agamben vem ao nosso encontro, trazendo suas reflexões sobre o tempo, por meio das esclarecedoras palavras de Pedro Duarte, na palestra de abertura do XXIV Congresso Brasileiro de Psicanálise. Ele esclarece que a concepção metafísica do tempo se baseia na noção de espaço. Propõe alternativamente a noção de heterogeneidade do tempo, que enfatiza a singularidade e descontinuidade de cada momento. Se levarmos em conta esta perspectiva, quem adere acriticamente ao tempo presente e às suas solicitações nada tem de contemporâneo, pois "ser contemporâneo é quem apreende o tempo em que vive por não coincidir com ele, por ser anacrônico, fora da cronologia" (2013, p. 14). Como lidar então com esse paradoxo entre as origens do pensamento psicanalítico e a prática da psicanálise nos dias atuais?

 

O eterno vir a ser psicanalista

Outra fonte de dor mental na formação se deve à contraparte grupal destas angústias fundamentais geralmente vividas projetivamente no clima institucional. Samuel de Vasconcelos Titan fala da persecutoriedade vivida pelos membros filiados, imaginando que os que já não são mais candidatos, os didatas, se sentem possuidores de um conhecimento seguro, e que a insegurança e o medo seriam vividos apenas pelos candidatos à analista. E se pergunta: "por que o único grupo que tinha que se agrupar defensivamente era o dos candidatos?" (Titan, 1992). Considero que estas angústias podem de fato ser vividas durante a formação, no entanto, observo que elas fazem parte da vida e do nosso trabalho cotidiano como analistas, comportando dúvidas, questionamentos e muito sofrimento. Penso que essa noção de que os didatas têm a posse do saber psicanalítico não passa de uma idealização, e que precisa ser sempre colocada em dúvida por todo analista.

Manoel Lauriano de Castro reflete: "é somente após o pretendente a analista conseguir introjetar a função psicanalítica que é possível àquele vir a ser seu próprio analista e continuar aprendendo consigo e com seus pacientes a ciência de estar ininterruptamente vindo a ser psicanalista ... uma vez que é um processo de vir a ser sem nunca de fato ser" (Castro, 2005, p. 204).

Esse eterno vir a ser supõe mecanismos pessoais e institucionais de sustentação da função analítica. Penso nos grupos de estudo, nas conversas com colegas, nas supervisões e, em especial, na própria instituição psicanalítica que tem essa função de sustentação da identidade analítica. Encontro respaldo a esta ideia no pensamento de alguns colegas. Izelinda Garcia de Barros pensa a instituição como lugar de "sustentação" do analista, como uma das funções importantes da Sociedade (1992, p. 18).

Mello Franco traz o mesmo pensamento, esclarecendo que a capacidade e a aptidão do analista têm que ser alimentada, e que isso é função da Instituição Psicanalítica. Ela fornece objetos de "identificação grupal" que compõem a chamada "identidade analítica". A Instituição oferece "espaço" para o analista elaborar e atuar determinadas configurações mentais, aliviando assim o setting e o paciente de muitas pressões. Talvez a "loucura" das instituições analíticas seja a válvula de escape que preserve o setting (Mello Franco, 1992, p. 18). Acredito que esta maneira de pensar nos oferece um outro vértice para pensar os movimentos e configurações institucionais que vivemos.

Outra fonte de angústias diz respeito ao trabalho clínico, ao atendimento de pacientes, atividade necessária para que ocorra a "realização" dos conceitos, bem como a consolidação da função psicanalítica desenvolvida na análise pessoal. Mello Franco nos alerta para os riscos que o trabalho clínico com pacientes pode trazer para a identidade pessoal e profissional do analista: "Fica evidente em tudo isso que o analista está sujeito a dois momentos transformacionais no contato emocional (não intelectual) com o novo: o primeiro é desintegrador para as suas próprias estruturas de pensamento, e o segundo cria integrações até então inexistentes, permitindo novas configurações emocionais" (Mello Franco, 1994, p. 316).

Vemos, portanto, que o trabalho interminável de formação analítica mobiliza intensas angústias e medos, que precisam encontrar espaço para serem contidos e transformados. Observo também que as dificuldades, sofrimentos e frustrações da vida muitas vezes afetam a função analítica, que precisa ser alimentada e nutrida. Nesta linha temos os grupos de estudo, as parcerias com colegas e amigos, as supervisões, e especialmente as reanálises, que permitem o aprofundamento cada vez maior em seu próprio funcionamento mental, permitindo, cada vez mais o contato e o desenvolvimento de alguns aspectos primitivos da mente do analista.

Percebo que este caminho percorrido na interminável formação analítica permite, na minha experiência, uma vida mais integrada como pessoa, bem como um trabalho analítico que várias vezes, mas nem sempre, me permite sentir como consistente e verdadeiro, colaborando para o desenvolvimento psíquico e emocional meu e de meus pacientes.

Como eu dizia anteriormente, só a paixão não basta. Acredito que ela precisa ser transformada em amor e também em conhecimento. E em que consistiria essa transformação? Tenho a impressão de que tento compreender a natureza do amor desde que me conheço por gente! Estou neste momento fazendo mais uma tentativa.

 

A transformação da paixão em amor pela psicanálise

Se formos para a Grécia antiga, podemos encontrar no Banquete de Platão a descrição de uma celebração do amor, ocorrida na casa de Agatão. Sócrates usa Diotima, uma sacerdotisa, para contar sua versão de que o amor nasceu na festa do nascimento de Afrodite, de um encontro amoroso e sorrateiro entre a Pobreza e o Recurso, filho da Prudência. Essa filiação determina a natureza do amor: sempre em estado de carência e precisão, guiado pela falta, mas ao mesmo tempo corajoso, decidido e enérgico. O amor seria, segundo esta visão, um daimon, um intermediário entre os homens e os deuses, um sentimento que vai, portanto, da imanência à transcendência (Platão, 1972).

Acredito que o amor difere da paixão, pois nele a libido se atenua talvez em decorrência da "passagem" do princípio do prazer ao princípio de realidade, o que pode implicar um processo de transformação, onde surgem outros elementos além da sexualidade, como ternura, admiração, cuidado etc. Além disto, implica um movimento do narcisismo em direção à alteridade, que supõe a possibilidade de se aproximar do outro mais como ele é, e não apenas como o desejamos. Será que isso é verdadeiramente possível dentro da dupla analítica? Podemos verdadeiramente pensar um analista que não se sente narcisicamente ferido, ao favorecer e aceitar com generosidade a alteridade do analisando? Ou ainda, podemos ser um analisando que segue o seu caminho até ter um pensamento próprio e independente do próprio analista? Tudo isso supõe também a existência de um Eu "integrado" que possa abrigar esses sentimentos ditos amorosos, e também os odiosos de ambas as partes (Freud, 1915/2010b, pp. 76-80). Não sei se esse Eu de fato existe, sei apenas que estamos sempre a tentar encontrá-lo.

Para Melanie Klein, o amor se relaciona com as forças que preservam a vida, e só pode ser vivido na Posição Depressiva, pois supõe a percepção da própria destrutividade e, consequentemente, sentimentos de culpa e movimentos de reparação para com o objeto de amor danificado em fantasia. Cuidado e responsabilidade entram neste tópico, como elementos reparatórios, necessários à vida do outro e de si próprio. Ainda Melanie Klein: "Esse processo de deslocamento do amor é da maior importância para o desenvolvimento da personalidade e dos relacionamentos humanos, ou até mesmo, pode-se dizer, para o desenvolvimento da cultura e da civilização como um todo" (1937/1996, p. 367).

Bion se ocupa do amor como um elemento da psicanálise, esclarecendo que é uma função da personalidade, e da paixão como uma dimensão deste elemento, necessária para que ele seja reconhecido como tal. Além disso, para ele, a paixão pressupõe a evidência de que duas mentes estão vinculadas (1963/2004, pp. 25-28). Tenho a impressão de que o binômio amor/paixão pressupõe sempre uma oscilação constante entre a união e a separação, ser "dois" e ser "um" novamente. Temos duas mentes unidas, mas essa união é momentânea, tanto física como psiquicamente. No momento seguinte, temos que nos defrontar com a alteridade, com o respeito e a consideração pelo outro.

Como diz Green, a posição psicanalítica estabelece uma "consubstancialidade entre sentido e amor, que insiste na necessidade do 'rodeio' pelo outro semelhante para reconhecer a força do laço amoroso ... além de seu valor significativo, o amor é laço e demanda reciprocidade ... amar e ser amado são posições inseparáveis porque a reflexividade de ambos os membros da dupla é constitutiva de sua unidade ... isso ocorre porque aqui o amor está entre..." (1995/2005, pp. 244-249). Assim sendo, posso considerar que o amor pressupõe dois e a paixão pressupõe que esses dois se transformem em uma unidade transitória e intensa.

E como pensar o amor pela psicanálise? Acredito que alguns elementos supracitados podem ser colocados em relevo. Um deles diz respeito à falta. Sentir falta ou necessidade de análise, como um sentimento intrínseco e genuíno, proveniente do mundo interior, ao invés de encarar a análise como uma necessidade burocrática e institucional. Como dizia Platão, o amor é filho da Pobreza, da necessidade. Como encontrar energia e coragem para enfrentar as dificuldades e sofrimentos que surgem na análise e na formação analítica? Como fazer surgir e manter o prazer de perceber o próprio desenvolvimento mental? Como perceber também seu ódio à psicanálise e os ataques e resistências dele provenientes? Amar a psicanálise como ela é, com suas particularidades e exigências, implicaria o respeito pela alteridade, ao invés de narcisicamente procurarmos alterá-la ao sabor das "necessidades" do mundo atual.

Disso decorrem responsabilidade e cuidado com o objeto que é, como dizia Pérsio Nogueira, a "nossa Psicanálise". Penso que esse amor é um dos elementos que colabora para o desenvolvimento da função analítica em cada um de nós. Por outro lado, esse amor não é eterno, e vai sofrendo transformações com os "solavancos" da vida pessoal e profissional. Como alimentá-lo? Penso aqui nas análises e reanálises. Como diz Manoel Lauriano de Castro: "É da responsabilidade do analista zelar ininterruptamente pela sua função psicanalítica, e de cada pretendente a analista, a capacidade de ser sério consigo e estender pelo tempo que for necessário a base de sua formação, que é sua análise pessoal" (2005, p. 201).

Encontro no trabalho analítico, nos seminários que coordeno, nos grupos de estudo e também na escrita analítica como esta que apresento aqui, uma possibilidade de renovar as esperanças.

 

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Recebido em: 16/12/2013
Aceito em: 18/12/2013

 

 

Ana Maria Stucchi Vannucchi. Rua Urussuí, 71, cj. 51, 04542-050. São Paulo, SP. Tel: 11 3071-2456, anavannucchi@gmail.com
1 Este trabalho, com modificações, foi apresentado em mesa redonda sobre o tema "Paixão e Medo na Formação Analítica", no XXIV Congresso Brasileiro de Psicanálise em Campo Grande (25/28 setembro de 2013).