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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.46 no.85 São Paulo jun. 2013

 

TEMA: A TRANSMISSÃO DA PSICANÁLISE E A PRÁTICA ANALÍTICA ATUAL

 

Psicanálise, sua transmissão na universidade e o futuro: reflexões sobre uma experiência

 

Psychoanalysis, its transmission at university and the future: reflections about an experience

 

Psicoanálisis, su transmisión en la universidad y el futuro: reflexión acerca de una experiencia

 

 

Francisco Carlos dos Santos Filho

Psicanalista, doutor em método psicanalítico e formações da cultura pela puc-sp, professor titular e pesquisador da Universidade de Passo Fundo

 

 


RESUMO

Silvia Bleichmar (2007) afirma que as espécies que permanecem vivas no mundo não são aquelas que se adaptam ao seu ambiente, mas aquelas que preservam a capacidade de se reproduzir. A psicanálise enfrenta uma pesada tarefa para seguir sendo uma corrente de pensamento capaz de enfrentar com boas perguntas os dilemas da subjetividade humana na contemporaneidade. As ofertas de soluções exteriores, indolores e rápidas para o sofrimento humano são muitas, e encontram os jovens futuros profissionais do campo "psi" muito cedo, dentro da universidade. O contato precoce dos acadêmicos na graduação em Psicologia será decisivo para um afastamento radical ou uma aproximação do campo psicanalítico, permitindo que as instituições de formação sigam recebendo candidatos que desejam se tornar analistas. Se na tradição psicanalítica transmissão e formação se constroem mutuamente durante os seminários teóricos, na supervisão e na análise pessoal, na graduação não é assim. Restritos à sala de aula e à transmissão teórica, aumentamos o risco de um ensino teórico e superficial, que quita a densidade do processo clínico psicanalítico e leva à perda do entusiasmo por esse trabalho, abrindo espaço para práticas intelectualizadas, persuasivas e sugestivas. Como introduzir o jovem estudante na experiência clínica e prover-lhe uma base conceitual que a sustente sem criar uma barreira de resistência excessiva no processo de ensino-aprendizagem?

Palavras-chave: psicanálise, psicanálise e universidade, ensino da psicanálise, transmissão da psicanálise


ABSTRACT

Silvia Bleichmar (2007) says that species that stay alive in the world are not those which adapt to their environment, but those which preserve the capacity of reproducing. Psychoanalysis faces a hard task to continue being a current of thought able to endure, with good questions, the quandaries of human subjectivity in the contemporary world. There are many offers of external, painless and quick solutions to human suffering and they find young future professionals of the "psy" field very early, at university. The early contact of Psychology graduation course students will be decisive for a radical distance or approach of the psychoanalytical field, enabling the teaching institutions to continue receiving candidates who wish to become analysts. In psychoanalysis tradition, transmission and formation are built mutually during theoretical seminars, supervision and personal analysis; however, in graduation courses it is not the same. The transmission is restricted to the classroom and theoretical teaching; therefore, we increase the risk of theoretical and superficial teaching, which lowers the density of the psychoanalytical clinic process and results in the loss of enthusiasm for this job, opening space for intellective, persuasive and suggestive practices. How can we introduce students in the clinical experience and provide them with concepts that support it without creating a barrier of excessive resistance in the teaching-learning process?

Keywords: psychoanalysis, psychoanalysis and university, psychoanalysis teaching, psychoanalysis transmission


RESUMEN

Silvia Bleichmar (2007) dijo que las especies que permanecen vivas en el mundo no son aquellas que se adaptan a su medio ambiente, sino que aquellas que preservan la capacidad de reproducción. El psicoanálisis enfrenta la inmensa tarea de seguir siendo una corrente de pensamiento capaz de formular buenas preguntas acerca de los dilemas de la subjetividad del hombre contemporaneo. Las propuestas de soluciones exteriores, sin dolor y prontas para el sufrimiento humano son muchas, y encuentran los jóvenes futuros profesionales del campo "psi" muy temprano, en el interior de la universidad. El contacto precoz de los académicos de Psicología es decisivo para un alejamiento radical o una aproximación al campo psicoanalítico, permitiendo que las instituciones de formación sigan teniendo candidatos que deseen tornarse analistas. Si en la tradición psicoanalítica, transmisión y formación se construyen mutuamente en los seminarios teóricos, supervisión y análisis personal, en la graduación no es así. Restrictos a la clase y a la transmisión teórica, elevamos el riesgo de una enseñanza teórica y de poca profundidad, que quita la densidad del proceso clínico psicoanalítico y lleva a la pérdida del entusiasmo por ese trabajo, abriendo espacio para las prácticas intelectualizadas, persuasivas y de sugestión. La cuestión central es como introducir el joven estudiante en la experiencia clínica, otorgándole una base conceptual y soporte, sin crear una barrera de resistencia excesiva en el proceso de enseñanza-aprendizaje.

Palabras clave: psicoanálisis, psicoanálisis y universidad, enseñanza de la psicoanálisis, transmisión del psicoanálisis


 

 

1. Introdução

Uma simples picada de alfinete na célula germinal pode produzir um resultado desastroso se comparado com a mesma lesão na epiderme de um organismo humano adulto. Tanto Freud como Ferenczi utilizaram esta conhecida metáfora para indicar que quanto mais precoce for o dano, maior sua consequência futura. O mesmo vale para os jovens que, pela primeira vez, num curso de graduação universitária, tomam contato com a complexidade inerente à teoria psicanalítica e com a densidade própria de sua prática clínica. Esse momento é decisivo para a aproximação ou o rompimento. O tema adquire interesse quando pensamos que as instituições de formação em psicanálise dependem, para que haja afluxo de candidatos, do quanto este primeiro contato foi produtivo e enriquecedor ou, por outro lado, foi capaz de afastar os jovens para outros campos do conhecimento.

O motivo inspirador para a produção deste artigo foi a carta-convite da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo para este número do Jornal de Psicanálise, que toma em consideração o tema debatido no XVII Encontro de Institutos da FEPAL, "A transmissão da psicanálise e a prática clínica atual". Esta iniciativa me fez recordar, de imediato, da relação entre a psicanálise e a universidade, e do tema de pesquisa que venho trabalhando nesta última há trinta anos: a primeira experiência clínica do acadêmico de Psicologia e seu papel decisivo nas escolhas do futuro profissional.

A carta-convite comenta de que modo Freud (1925/1992b), em seus diversos esboços autobiográficos, relatou a forte oposição que a psicanálise enfrenta desde seus primórdios. Esta resistência é claramente sentida por qualquer um de nós que esteja dentro da academia. A pesquisa em psicanálise representa uma ruptura com a visão predominante do ideário científico ainda hoje. A consolidação da psicanálise como ciência segue demandando uma imensa força produtiva, criativa e constituinte que consolide o legado freudiano de um corpo teórico consistente, da íntima relação entre teoria e método, e dum novo paradigma epistemológico. O compromisso de sobrevivência da psicanálise implica não assumir verdades absolutas nem ideias preconcebidas, mantendo-a próxima da experiência obtida pela prática clínica e respondendo às suas questões e às do mundo que nos rodeia.

Os editores do Jornal de Psicanálise chamam atenção para o fato de que, no século XXI, as mudanças vertiginosas que acontecem no plano das comunicações, na liquidez dos vínculos afetivos (Bauman, 2004), na cultura do excesso e do hiperconsumo, nos avanços tecnológicos e científicos, no acesso à informação e sua precariedade reflexiva impactam nossa vida cotidiana e levam a permanentes reacomodações do que era dado como estabelecido. Tal transformação repercute em novos modos de subjetivação da experiência vivida e suscita novas manifestações culturais e artísticas e novas expressões do sofrimento psíquico. Afeta, portanto, direta ou indiretamente, o trabalho analítico. Argumenta o editorial que a clínica psicanalítica não escapa nem se dissocia da cultura na qual se insere. A transmissão da psicanálise deve conservar-se capaz de fazer frente às transformações dentro e fora dos consultórios, integrar novas experiências e manter certa porosidade ao mundo circundante para prosseguir como um pensamento vivo e atual, posição com a qual comparto inteiramente.

 

2. Problemas

O problema que desejo abordar se manifesta em duas frentes. A primeira delas é a resistência que o meio acadêmico, banhada por modelos positivistas e quantitativos de pesquisa, oferece à psicanálise. Essa resistência é compreensível, se tomamos em consideração o estilo de investigação e trabalho da maioria dos campos de conhecimento que existem na universidade. Contudo, e curiosamente, a oposição não está situada nos cursos de ciências exatas ou nas áreas de produção tecnológica, mas justamente nos cursos de Psicologia e de Medicina. O setor menos avesso à psicanálise dentro da universidade são as ciências humanas, história, literatura, artes, ciências jurídicas e sociais.

A outra face do problema é o constante enfrentamento com a força persuasiva dos discursos da "modernidade científica", que se transvestem em temas como rapidez, eficácia, evidências e comprovação científica para chegar rapidamente às pessoas através dos meios de comunicação de massa. A oposição entre a psicanálise e os avanços da psiquiatria biológica e das neurociências, por exemplo, é uma falsa oposição. Contudo, dentro da academia, especialmente nos primeiros degraus, nos cursos de graduação, é possível observar o fomento desta falsa oposição e seu uso inadequado para decretar a morte da psicanálise. Que movimentos realizar para enfrentar esta situação? Como adotar uma postura baseada em critérios analíticos e não numa posição política de poder, obediência e reserva de mercado?

O mostruário de possibilidades de fazer clínica no campo "psi" hoje em dia é uma imensa quitanda, com farta exposição de produtos para todos os gostos. Esses produtos vão desde técnicas terapêuticas que se aproximam da mística, da religião e da crença, operando por força da sugestão, como o regresso a vidas passadas, beberagem de elixires florais, até métodos que flertam, noutro extremo, com as ciências duras, com a tecnologia, operando também por sugestão, só que agora apoiada pela crença na autoridade médica. Estes se dedicam a repaginar o velho comportamentalismo skinneriano, reduzindo a subjetividade a quase nada.

A tendência dentro da academia é transformar complexos modelos clínicos em teorias simplificadas, dando lugar à ideia equivocada de que existe um catálogo de opções de abordagens clínicas que podem ser escolhidas e exercidas sem dificuldades pelo técnico, que decide o que é melhor aplicar em cada caso. Essa situação reflete um recurso dos professores para facilitar o ingresso do aluno a um mundo complexo que ele não conhece. Configura uma tentativa de criar (Laplanche, 2006) códigos mínimos de partida que facilitem a tradução desse desconhecido com o qual o acadêmico de Psicologia é bombardeado a partir do momento que ingressa no curso e começa a estudar as possibilidades que a clínica oferece.

O problema é o efeito colateral que essa ideia de simplicidade cria, pois deixa transparecer que podemos não só estudar as diversas teorias - quantas quisermos - mas escolher e "aplicar" a opção técnica mais adequada, coisa desmentida pela experiência. Ela vai mostrar ao aluno que manejar um referencial teórico e seus modelos na clínica com coerência e profundidade leva uma vida de aprimoramento e processo de ressignificação de tudo que foi estudado. O risco de pegar esse atalho no processo de ensino é quitar a densidade específica do processo clínico psicanalítico. Isso empobrece e leva à perda do entusiasmo pelo ensino e aprendizagem desse trabalho, abrindo espaço para modelos intelectivos, persuasivos e sugestivos de tratamento.

Outro efeito colateral é deixar o estudante imaginar que pode se tornar terapeuta em dez lições, e, até mesmo - e por que não? - um psicanalista. Alguém precisa mostrar que isso está errado e que o preço aparentemente barato a ser pago custará caro demais no futuro, uma vez que vai repercutir em sua própria saúde mental e na de outros seres humanos. Os antigos sabiam, conforme os ditos populares, que "o barato sai caro", ou que esta "economia é à base da porcaria", mas talvez não o saibam os jovens, e será preciso assumir o ônus de ensinar-lhes a verdade e de verdade. Uma das tarefas mais complexas que enfrentamos é tratar esse assunto sem parecer que temos uma posição severa demais, restritiva demais ou muito frustrante. Não é fácil superar a impressão de que esta facilitação é boa e existe só para ajudar sem soar ranzinza nem proibitiva. Não é desejável dificultar. Facilitar demasiadamente, contudo, e queimar passos preciosos, pode ser um presente de grego, daqueles que, só depois e meio tarde demais, percebemos o que tinha dentro.

Como introduzir o jovem estudante nos conceitos psicanalíticos, provendo-lhe uma base conceitual que sustente alguma compreensão sem criar uma barreira de resistência que atente de modo indesejável contra os interesses do processo de ensino-aprendizagem? A medida não é fácil e não creio tê-la encontrado em algum momento desse trajeto.

É preciso plantar ali - e essa é a finalidade última desse trabalho com a transmissão da psicanálise dentro da universidade - uma semente que, quando germina, cria uma experiência profunda. Ela é capaz de abalar certezas e abrir o desvio que desloca os esforços dirigidos à adaptação na direção do próprio inconsciente.

O que conseguirão conservar, professor e alunos da graduação, dessa profícua atmosfera de transmissão - entre científica e artesanal - onde se aprendem os primeiros passos dum ofício com alguém mais experiente? Como acompanhar esse abalo na experiência do aprendiz? Como torná-lo produtivo sem incrementar um excesso de resistência? Podemos, por essa via, resgatar a alteridade e o respeito à subjetividade para fazer do trabalho com pacientes uma produtiva experiência de encontro consigo mesmo?

A transmissão apoiada na prática clínica transita na peculiar fronteira da teoria com a experiência, impregnando-se da vivência subjetiva do aprendiz, implicado e agitado internamente nos espaços de atendimento, observação, discussão e supervisão. Quero examinar as peculiaridades do ensino da psicanálise na universidade através da produção científica dos alunos para acompanhar o efeito neles mobilizado pelo encontro com o inconsciente dos pacientes.

Na tradição psicanalítica, transmissão e formação se constroem mutuamente num entrelaçamento que se dá durante os seminários teóricos, supervisão e análise pessoal. Com os estudantes da graduação, contudo, esse modelo não é aplicável: não dispomos de alguns desses recursos. Tradicionalmente estamos restritos à sala de aula e à transmissão teórica que pode, por seu turno, encontrar-se dissociada da experiência de vida e das atividades acadêmicas. A disciplina dentro da qual realizo esta investigação, "Fundamentos de Entrevista Psicológica", ocorre num momento em que os estudantes ainda não tiveram experiência prática alguma com pacientes.

O modelo de trabalho clínico que os alunos têm na cabeça nesse momento é bastante diferente daquilo que é a experiência de uma entrevista psicanalítica. Eles trazem consigo suas referências de vida e raramente tiveram oportunidade de experimentar uma escuta sustentada psicanaliticamente. Pensam que ajudar é persuadir, aconselhar e resolver os problemas alheios, o que não poderia ser diferente com a experiência que possuem. Ocorre um choque entre os modelos que os alunos trazem em seu imaginário e aquele que pressupõe um encontro com o inconsciente.

A questão é que, na busca curiosa e ainda ingênua do encontro com o inconsciente alheio, o primeiro que se encontra é o próprio inconsciente, coisa que irão descobrir logo. Aqui existe um duplo risco: de um lado, o aprisionamento num ensino puramente teórico, desligado da experiência clínica e distante do que os alunos podem assimilar com a bagagem desse momento; do outro lado encontra-se a possibilidade de oferecer uma vivência clínica através da experiência prática, mas que, por sua própria natureza, pode provocar um impacto que intensifique indesejavelmente as resistências.

Ao realizar a opção pela experiência prática, assumo o risco de criar uma excitação inicial seguida depois de uma resistência bastante considerável para prosseguir. Alguns alunos logo percebem que essa situação os atinge em algum nível que eles não sabem bem como explicar; detectam algo que lhes perturba a paz e os desvia dos planos de aprender com a distância positivista daquele que observa seu objeto de estudo sem se deixar tocar.

 

3. Revisando escritos

Laplanche (1992), ao examinar o problema do ensino da psicanálise na universidade, propõe que esse deve ser um ensino vivo e consistir no relato que o pesquisador faz do andamento de suas pesquisas no momento. O autor se opõe àqueles que criticam o ensino da psicanálise na universidade por acreditarem que somente na análise reside a "pura verdade", já que somente ali ocorre o processo vivo e fluido de incessante descoberta do inconsciente. Assim, todo saber consistiria no momento em que se quer paralisar, apreender, imobilizar uma verdade, como numa fotografia. Imobilizar em dois sentidos: apreender o instantâneo de algo que, no momento seguinte, já escapou ao aprisionamento do conhecido, e também como forma de impedir que a descoberta prossiga.

O conhecimento poderia ser uma defesa contra a verdade, especialmente quando se trata da verdade do inconsciente, objeto que sempre escapa. Laplanche não partilha da ideia de que a psicanálise seja uma verdade intransmissível e que não se ensina. Aproxima-se de Freud (1919/1992a), que acreditava que ela devia ser incluída nos currículos dos cursos universitários, tanto na Medicina, como na Psiquiatria e nas ciências humanas.

Freud aponta, inclusive, as sociedades de analistas como um sintoma da exclusão da psicanálise do acervo do saber universal representado pela universidade. Essa exclusão gerou como efeito uma situação de autogestão que fez com que a psicanálise prescindisse da universidade para subsistir. Os analistas podem aprender teoria, observa Freud, valendo-se dos textos de outros psicanalistas e dos encontros científicos das sociedades, e podem aprender a trabalhar através da supervisão de colegas mais experimentados - e para isso em nada a universidade se faz necessária. Mas prevê, ao mesmo tempo, ganhos mútuos com a aproximação da psicanálise com a universidade.

O exemplo de Freud é o estudante de Medicina. Em virtude da parcialidade com que sua formação os conduz aos temas da anatomia, da biologia e da química, acaba despriorizando o valor do significado dos fatores psíquicos, tanto nas funções vitais fundamentais como nas doenças e seu tratamento. O resto dessa falha na educação do jovem médico se manifestará numa falta de interesse pelos problemas inerentes à vida humana - tanto na saúde como na doença - e numa inabilidade em lidar com os pacientes que até mesmo os curandeiros terão sobre eles maior efeito.

O mesmo raciocínio pode ser aplicado ao campo "psi" na atualidade, onde a tendência a teorizar e superficializar restringe o espaço de ensino dos princípios psicanalíticos. No Brasil, é no contexto das graduações em Psicologia e Medicina - com setores hostis à psicanálise - que ganham força os modelos intelectivos, persuasivos e alternativos para o tratamento da alma humana, disseminados na formação acadêmica por modelos de pesquisa e de ensino que tendem a instrumentalizar, quantificar e medicalizar a subjetividade. Por outro lado, são tantos os "inconscientes" mencionados e tantas as fórmulas de rápido acesso a eles que já não guardam relação alguma com o conceito freudiano. Perde-se a trilha que conduz ao respeito pelos enigmas e dilemas profundos da alma humana em busca de um adaptacionismo raso e rápido, travestido de eficácia.

Freud acredita que é a psicanálise, através de seu método singular, o melhor meio de ensinar uma Psicologia de sentido profundo e um modelo de aparelho psíquico aos estudantes em geral. Mas deixa, contudo, uma advertência: que não se pense que o estudante, nesse contexto, vai aprender a prática da psicanálise propriamente dita. Ele pode aprender algo da psicanálise e aprender a pensar processos e fenômenos patológicos e normais a partir da psicanálise.

Birman (2003) defende que é possível transmitir teoria psicanalítica na universidade. Observa que não se ensina psicanálise na universidade num curso de um semestre para os alunos da graduação: dá-se um texto de Freud (1992a/1919), trabalham-se conceitos, orientam-se leituras. O autor sustenta que esse processo produz alguns efeitos interessantes. Pondera que não devemos esperar que alguém vá se tornar psicanalista a partir de uma classe acadêmica, mas criar um espírito crítico nos alunos, um efeito "desviante" capaz de produzir ruídos no pensamento homogeneizado, massificado e rotineiro em que vivemos.

Para Laplanche, as objeções ao ensino da psicanálise na universidade são de natureza individual e política. O aspecto individual enfatiza a restrição de ensinar psicanálise a "não analistas". Ela é bastante conhecida e veremos como se mostra oportuna nesse trabalho. O problema é que o contato com o inconsciente como objeto de investigação se faz, prioritariamente, pelo contato com o próprio inconsciente - que se desconhecido fica, desconhecidos permanecerão os dos demais.

Mezan refere que a pesquisa acadêmica em psicanálise tem sido alvo de um intenso debate nos últimos anos, em virtude do incremento de programas de pós-graduação voltados para esta disciplina. Sua posição é tão precisa que vale a pena citá-lo na íntegra:

Um dos traços mais irritantes dessa discussão, porém, é o caráter vago e genérico das formulações de uns e de outros. Há os puristas, geralmente encastelados nas associações psicanalíticas, que temem ver conspurcada a sacrossanta psicanálise pela sua inserção na universidade - seja porque temem a "intelectualização" (versão ipa), seja porque, estando na universidade, a psicanálise seria inelutavelmente contaminada pelo "discurso universitário" (versão lacaniana). Há os defensores do "método científico", geralmente entrincheirado nos departamentos de Psicologia, que julgam impossível realizar com seriedade uma investigação do tipo qualitativo porque esta se apoia em poucos "casos" e deles extrai conclusões por vezes de grande alcance. (Mezan, 2002, pp. 428-429).

Laplanche conclui que a objeção a ensinar psicanálise a não analistas não deve levar ao abandono do ensino da psicanálise na universidade. O fato de os alunos não estarem obrigados a fazer uma análise é bem visto pelo autor. Analisar-se é uma experiência independente, livre, não normativa, e não objeto de exigência. O autor acrescenta que é sintoma de muito pouca fé na receptividade e reatividade do inconsciente dos alunos não querer transmitir-lhes os fundamentos da teoria porque não estão num processo formal de análise. Isso está de acordo com o que observei ao longo desse trabalho: o inconsciente de cada um responde à experiência de contato com o inconsciente do outro. É o efeito desviante referido por Birman, aquele que pode levar a resultados mais interessantes.

 

4. A experiência clínica e o método

O modelo de ensino que adotei é uma escolha aberta ao questionamento. A ideia é inverter a lógica de ensino que vai da teoria para a prática. A experiência vem em primeiro lugar. A teoria só faz sentido se o aluno precisar dela como ferramenta necessária para ler aspectos da realidade que não se revelam espontaneamente. Funciona assim: os estudantes têm suas aulas numa sala de espelho unidirecional na Clínica Escola da Universidade. No início de cada aula é realizado o atendimento de um paciente informado e de acordo com a natureza do trabalho. Um dos alunos conduz o processo clínico tendo o acompanhamento de alguns colegas e do professor atrás do espelho. Logo após o grupo se reúne para a discussão, que é seguida de uma aula na qual são introduzidos conceitos psicanalíticos fundamentais que dão sustentação teórica à experiência. O material clínico é transcrito e serve como banco de dados para utilização posterior em produções científicas, devidamente autorizadas pelo paciente através do termo de consentimento livre e informado.

Tão logo estejam habituados com o processo, os alunos formam grupos de trabalho para produzir artigos baseados em algum ponto de interesse levantado durante as observações. São essas produções que iremos examinar, porque elas refletem as inquietações, as críticas, as resistências bem como os pontos de curiosidade científica dos alunos.

A prática de observação é um recurso didático. Ela possibilita ao estudante o reconhecimento dos modos de manifestação próprios do inconsciente e de suas formações, bem como a apreensão das sutilezas peculiares à escuta psicanalítica. Quer despertar os acadêmicos para a existência, no encontro inter-humano da sessão, de aspectos que ultrapassam o senso comum e apontam para as significações profundas ligadas ao infantil que ali se revela. Se o estudante puder desenvolver uma escuta sensível a esses fatores, a experiência terá atingido seu objetivo. O procedimento do espelho está sujeito a críticas. Conhecemos os efeitos intervenientes que causa à situação analítica, íntima e privada por princípio, e veremos como esse tema será muito discutido pelos alunos.

O trabalho não visa habilitar terapeutas, mas desenvolver as habilidades e competências dentro dos limites impostos pelo ensino da entrevista clínica com alunos iniciantes. Deve, portanto, colocá-los minimamente em contato com a tarefa ética que é escutar e receber o sofrimento humano trazido por cada um dos sujeitos e acolhê-lo de um modo, ao mesmo tempo, isento e caloroso. A experiência de análise pessoal não é requisito obrigatório, mas um dos efeitos desejáveis seria que as inquietações vividas desembocassem em uma demanda livre e pessoal de análise.

 

5. Comentando resultados

Apresento a seguir uma proposta de ordenamento dos resultados através do agrupamento das produções por categorias de análise. A tabela abaixo apresenta uma lista geral dos trabalhos e as categorias em torno das quais eles se agrupam, num panorama das produções dos alunos e de seus interesses científicos.

 

 

São, ao todo, trinta e sete produções dos alunos realizadas ao longo de quatro anos organizados por ordem cronológica. Alerto que os temas foram ordenados a partir de uma posição de maior distância em relação à experiência clínica direta, iniciando com trabalhos na interface da psicanálise com a música, a poesia e o cinema, passando depois pela psicopatologia e por ensaios de precisão conceitual, para finalmente se dirigir aos poucos à técnica e chegar ao âmago da tarefa do clínico iniciante e ao trabalho psíquico que por esta lhe é imposto, nos grupos cinco e seis. Essas duas últimas categorias reúnem dezoito trabalhos, ou seja, praticamente a metade de toda a produção. O interesse desse trabalho se centra nessa metade das produções: elas apontam para preocupações dos alunos e inquietações com seus afetos no trabalho de aprendizagem e trazem consigo um vibrante questionamento que se volta para o trabalho clínico e para a forma como é desenvolvido. A tabela a seguir detalha as preocupações dos alunos com seu trabalho como terapeutas, componentes do grupo cinco, organizadas em três subcategorias:

 

 

Algumas apreensões dos alunos acabaram por aglutinar-se, ao longo do tempo, em linhas de investigação, com a continuidade de temas que tomam por base um trabalho anterior. É o caso das dificuldades dos terapeutas iniciantes para enfrentar processos precocemente abandonados. Os alunos tendem a realizar uma atribuição culposa em que sua condição de iniciantes os responsabiliza pela evasão dos pacientes, não raro representados como "cobaias" de um experimento. Essa posição severa os conduz à conclusão de que só seriam bem atendidos fora da atual situação e por pessoas mais experientes. Esquecem que se precisa começar por algum lugar para tornar-se experiente. Esse modo de pensar foi discutido nos trabalhos e revelou-se por vezes um recurso defensivo convidativo ao abandono da tarefa ou à inibição para aprender a atender.

Situação semelhante se encontra quando surgem problemas clínicos difíceis vividos por aqueles que viram pacientes provocadores e hostis. A transferência negativa instalada de início leva à inquietação de saber como conservar a abstinência e sustentar a escuta nessas condições. O mesmo se dá com a angústia dos alunos perante o silêncio. O silêncio os aterroriza pela sensação de que é causado pela incompetência do iniciante, incrementando a fantasia de que precisam saber o que dizer se o paciente não falar nada. O desamparo dessa situação move como poucas coisas os alunos a investigar, tanto os terapeutas quanto aqueles que assistem atrás do espelho. A tabela seguinte detalha os afetos relacionados com a vivência dos alunos no trabalho clínico e aponta para uma tarefa com grande poder de mobilizar angústias, separando duas subcategorias:

 

 

Essas duas subcategorias estão muito enlaçadas, apenas se diferenciando por uma atitude de questionamento mais direto da modalidade de atendimento, na subcategoria um, em contraposição com as angústias mobilizadas por essa situação e seus efeitos na aprendizagem na subcategoria dois.

Na primeira os trabalhos evidenciam as críticas dos alunos à observação porque ela abre a intimidade da cena terapêutica. O assunto gestou ideias criativas, como a que relaciona a excitação inicial dos alunos e sua posterior contrariedade e culpa pelo fracasso clínico com a visualização da cena primária e seus efeitos psíquicos. Além disso, muitas entrevistas e grupos de discussão municiaram de dados trabalhos que discutiram a opinião dos demais colegas sobre essa modalidade de tratamento ou sobre o método de aprendizagem. Isso mostra que a tarefa tem sido criticamente avaliada e discutida, especialmente na medida em que se constitui como obstáculo ao processo clínico.

A segunda subcategoria discute os custos psíquicos que oneram os alunos na experiência de aprender sob esse modelo de trabalho, seja como assistente ou terapeutas. Uma proposta liga o aspecto traumático de toda aprendizagem, e dessa em especial, com o decorrente ônus que o aluno enfrenta ao atender pela primeira vez; outra trata possíveis dificuldades adicionais enfrentadas na aprendizagem sob observação, se comparada com a supervisão tradicional.

O grupo quatro, dos trabalhos sobre técnica, tem interesse na medida em que indica uma forte preocupação com o despreparo teórico e técnico e reflete a natural angústia com este confronto. A experiência inicial pode, por essa razão, converter-se em traumática. Há um descompasso entre a complexidade da situação vivida e as ferramentas psíquicas para seu adequado enfrentamento. Enfrentamento, aliás, fadado a uma inadequação em função de um visitante inesperado: o próprio inconsciente.

 

5. Finalizando

Este é um trabalho de observação. Ele explora uma realidade e traça conjecturas nela apoiadas como quem desenha um mapa de memória sem pretender que seja conclusivo. Essas observações finais são hipóteses sobre o que tenho visto ao longo de três anos e meio e devem ser aprofundadas. Minhas notas finais se concentram na capacidade de mobilização de angústias e defesas presente na tarefa de aprender o trabalho clínico e no estado de despreparo teórico, clínico e pessoal do aluno que com ela se defronta.

O primeiro aspecto se reflete no número de trabalhos dedicados às angústias do terapeuta e ao próprio modo como acontece o atendimento. Os alunos, ao observarem o colega trabalhando, imaginam-se nessa situação e se angustiam em pensar como seria se fosse com eles. A mobilização de angústias do lado de cá do espelho é um forte impulsor para tentar ligar, pela via do trabalho teórico, a inquietação do desconhecido. Teorias sexuais adultas, como diria Laplanche (2000). Pode ser. Desde que não nos conduzam a mitos e sim a conservar a abertura mental necessária para trabalhar. A propósito, alguns percebem que esse desconhecido é antes um desconhecido interno, ativado pelo contato com o inconsciente do paciente e do colega terapeuta. Creio que por essa via se alcança uma discussão mais viva e honesta sobre a necessidade da experiência de tratamento pessoal do terapeuta, recheando com verdade e significado uma recomendação que é repetida muitas vezes pelos professores, mas que é ainda distante da realidade do aluno.

Existe, contudo, o risco do aluno ficar à mercê de defesas severas e que impeçam sua aproximação ao objeto de estudo em foco. A percepção do próprio despreparo pode dar margem, em algumas situações, a atribuições projetivas simplistas de responsabilidade, como por exemplo, responsabilizar os conteúdos programáticos deficitários do curso - esquecendo seu momento precoce e esperando que a graduação forme terapeutas. Também há a já referida representação melancólica de se acharem muito incapazes de atender alguém a ponto de prejudicar os pacientes. São movimentos defensivos para lidar com o traumático de uma situação que, por sua intensidade ou natureza, apanha o sujeito num momento em que suas capacidades psíquicas estão aquém do necessário para sua apreensão e domínio. Isso prejudica a aproximação do aluno com a beleza complexa desse trabalho.

O despreparo teórico leva à aplicação mecânica de princípios técnicos que, por não serem compreendidos, se tornam rígidos. Essa rigidez sintomática causa um rechaço crítico contra as regras técnicas e faz o aluno ingressar numa angústia por resultados ilusórios, expressa na arriscada adesão a métodos persuasivos. A situação não é fácil. Faz muita falta o domínio de códigos que permitam traduzir e interpretar essa experiência.

É preciso mobilizar recursos para a ligação dessa experiência. Eles podem favorecer um contato inicial positivo com a psicanálise e fazer de seu ensino um trabalho enriquecedor. Não contamos com as condições ideais. Faltam as bases conceituais e o espaço necessário de trabalho conjunto supervisionado para fornecer as matrizes identificatórias do modelo de trabalho dos mais experientes. Criar uma atitude acolhedora e, ao mesmo tempo, rigorosa para com a tarefa - fruto das transferências presentes no processo de aprendizagem e na relação com o professor e colegas - é o que importa. Afinal, o que são essas produções senão narrativas que buscam dar conta de uma história singular de transferência com o professor e com o início de seu trajeto clínico? Essa é minha homenagem a tão ricas e diversas narrativas. Porque não é simples simbolizar o desconhecido do próprio inconsciente, mas é um recurso que se adquire e ganha valor no a posteriori da experiência profissional.

 

Referências

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Recebido em: 17/12/2013
Aceito em: 18/12/2013

 

 

Francisco Carlos dos Santos Filho. Rua Uruguai, 2001, conj. 611, 99010-112. Passo Fundo, RS, franciscocsantosf@hotmail.com