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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.46 no.85 São Paulo jun. 2013

 

MANIFESTAÇÕES

 

A psicanálise e o futuro da psiquiatria

 

Psychoanalyis and the future of psychiatry

 

El psicoanálisis y el futuro de la psiquiatría

 

 

Marcia Szajnbok

Psicanalista de orientação lacaniana. Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP). Psiquiatra. Médica Supervisora do Serviço de Psicoterapia do Instituto de Psiquiatria do HC-FMUSP

 

 


RESUMO

A análise crítica da história da psiquiatria no século XX evidencia a transformação ocorrida a partir da década de 1980, que se deveu principalmente a fatores econômicos e políticos, e não científicos. Ressalta-se a especificidade epistemológica do campo psicanalítico e a importância de sua delimitação clara, tanto para a prática da psicanálise quanto para a possibilidade de colaboração futura entre psicanálise e psiquiatria.

Palavras-chave: história da psiquiatria, diagnóstico psiquiátrico, "economia, política e ciência", campo epistemológico da psicanálise, relações entre psiquiatria e psicanálise


ABSTRACT

Psychiatry has been transforming its grounds through the 20th century, especially since the 1980s, and the critical analysis of this transformation show that it was mainly due to political and economical rather than scientific factors. Psychoanalytical practice and any future collaboration with psychiatry can draw benefits from a specific and clear delimitation of the epistemological field of psychoanalysis.

Keywords: History of Psychiatry, Psychiatric Diagnosis, Economy, Politics, and Science, Epistemological Field of Psychoanalysis, relationship between Psychiatry and Psychoanalysis


RESUMEN

El análisis crítico de la historia de la psiquiatría en el siglo XX pone en evidencia la gran transformación que ocurrió en la década de 1980 consecuencia, sobre todo, de factores económicos y políticos en lugar de científicos. Se especifican los límites del campo psicoanalítico, lo que es importante no sólo para la práctica del psicoanálisis, sino también para la colaboración eventual entre el psicoanálisis y la psiquiatría en el futuro.

Palabras clave: historia de la psiquiatría, diagnóstico psiquiátrico, "economía, política y ciencia", campo epistemológico del psicoanálisis, relación entre psicoanálisis y psiquiatría


 

 

Para melhor compreender o cenário atual, caracterizado por um divórcio quase litigioso entre a psiquiatria e a psicanálise, é útil que façamos uma breve análise dos antecedentes históricos dessa relação.

A história dos diagnósticos é homóloga à própria história da Medicina. Desde Hipócrates, os médicos têm se dedicado a refinar os métodos de observação, com o objetivo de discernir melhor as doenças e, a partir disso, buscar terapêuticas cada vez mais eficazes e específicas. Ao longo dessa história, a transição do século XVIII para o XIX foi particularmente importante, pois o advento da anatomia patológica estabeleceu definitivamente o método anatomoclínico como parâmetro do saber médico. Assim, por exemplo, em sua Anatomia geral, de 1801, Bichat1 escreveu que a Medicina teria direito a se aproximar das ciências quando unisse à observação rigorosa do doente o exame das alterações patológicas reconhecidas em seus órgãos. A partir de então, as entidades nosológicas passam a ser definidas por etiologia, anatomopatologia, evolução, tratamento e prognóstico. Toda a sofisticação tecnológica que ocorreu desde então apenas apurou esse método, cujo paradigma permaneceu intocado.

A psiquiatria, entretanto, esteve ainda à margem dessa concepção por muito tempo. Contemporâneo de Bichat, Pinel lançou os alicerces dessa nova especialidade médica com seu Tratado médico-filosófico sobre a alienação e a mania, de 1801. A descoberta de Bayle2, em 1822, da aracnoidite crônica de origem sifilítica relacionada à paralisia geral progressiva, perfeitamente de acordo com o método anatomoclínico, animou o pensamento psiquiátrico a procurar uma etiologia orgânica para os vários transtornos psíquicos. É nesse cenário que Kraepelin3 publica, em 1896, seu Tratado de Psiquiatria, a primeira nosografia sistemática dos transtornos mentais, compreendidos então como conjuntos de sintomas cuja etiologia, biológica ou genética, estava ainda por ser descoberta.

O jovem Freud, que se maravilhou com a experiência clínica de Charcot e com o método catártico de Breuer para tratar a histeria, também não estava imune a esse espírito científico do final do século XIX. Vê-se nos primeiros escritos freudianos não só uma tentativa de explicação etiológica dos sintomas histéricos, mas também a construção de um modelo que buscava, através da análise do psiquismo, encontrar seus substratos orgânicos, neurológicos. Entretanto, rapidamente Freud se afastou desse caminho e, com a publicação de "A interpretação dos sonhos", em 1900, lançou a pedra fundamental da psicanálise como campo de investigação separado da psiquiatria. O sonho, fenômeno humano universal, passou a ser o paradigma da formação do inconsciente que, desde então, ficou excluída do campo da psicopatologia.

Estas fronteiras epistemológicas, entretanto, nem sempre foram bem esclarecidas ao longo da história tanto da psicanálise como da psiquiatria. De um lado, a ciência psiquiátrica não evoluiu, na primeira metade do século XX, com a rapidez e a eficácia que se pretendia. Não se encontrou nada comparável à etiologia sifilítica para os transtornos mentais maiores, como a esquizofrenia ou a então denominada psicose maníaco-depressiva. A psicofarmacologia, inaugurada na década de 1950 com a clorpromazina, também não se revelou curativa, como de início se supunha. De outro lado, a psicanálise foi largamente difundida no pós-guerra, ganhando tonalidades diferentes nos diversos países onde passou a ser praticada. Enquanto os europeus, ingleses e franceses, sobretudo, mantiveram a formação e a prática analítica de certo modo restritas a suas próprias instituições, nos Estados Unidos a psicanálise rapidamente foi apropriada pela universidade e, particularmente, pela parcela psiquiátrica da academia, numa recombinação de fragmentos teóricos e técnicos da psicanálise.

Todos esses fatores acabaram por conduzir tanto a psiquiatria quanto a psicanálise, notadamente nos Estados Unidos, a um emaranhado confuso de pressupostos teóricos que representava a saúde mental em meados da década de 1950.

 

O dsm

The economy, stupid!4

Embora já houvesse tentativas de classificações para facilitar as estatísticas no campo da saúde mental, a primeira versão do Código Internacional de Doenças (CID) a incluir transtornos mentais foi o CID-6. Publicado após a Segunda Guerra, foi muito influenciado pela nomenclatura desenvolvida pelos serviços de atenção médica aos veteranos, que buscava dar conta dos quadros psíquicos apresentados por aqueles que retornavam aos Estados Unidos. Na mesma época, o Comitê de Nomenclatura e Estatística da American Psychiatric Association (APA) desenvolveu a primeira versão do Diagnostic and Statistical Manual: Mental Disorders (DSM-I), publicado em 1952, uma espécie de glossário de descrições clínicas, fortemente baseado na visão psicobiológica de Adolf Meyer, segundo a qual os transtornos mentais representam reações da personalidade a fatores psicológicos, sociais e biológicos.

Médico suíço radicado nos Estados Unidos, Meyer iniciou sua carreira como neurologista e, a partir dessa formação, trabalhou em vários manicômios, desempenhando papel importante no processo que os transformou em hospitais psiquiátricos. Precursor da psiquiatria social, Meyer estabeleceu conexões entre fatores físicos e reações psicológicas, o que contribuiu para que a psiquiatria da época passasse a incluir métodos psicoterápicos no seu arsenal terapêutico.

Assim, o arcabouço teórico do DSM-I, bem como do DSM-II de 1968, era a psiquiatria psicodinâmica. Esta corrente de pensamento estava, então, no auge de sua popularidade. As explicações dinâmicas para os sintomas psiquiátricos se apoiavam parcialmente na psiquiatria social e parcialmente na psicanálise, resultando numa espécie de Psicologia compreensiva que não atendia aos postulados da ciência médica, mas que também fugia do escopo original da psicanálise, já que apenas se apropriava de alguns de seus conceitos para tornar-se um instrumento de adaptação e supressão de sintomas.

Esse era o cenário em meados da década de 1970, quando o DSM-III começou a ser concebido. Enquanto esteve apoiada nas teorias psicodinâmicas, a psiquiatria foi uma especialidade na qual o diagnóstico desempenhava uma função secundária. A partir da publicação do DSM-III, em 1980, a questão do diagnóstico passa ser a base da pesquisa e da clínica psiquiátricas. Numa extensa discussão sobre o tema, Mayes e Horwitz concluíram que, a despeito de ter sido aclamada como representante da vitória da ciência sobre a ideologia, a mudança de paradigma trazida pelo DSM-III não foi resultado de um súbito progresso científico. Ao invés disso, os autores sugerem que a padronização dos diagnósticos foi produto dos condicionantes econômicos: (1) competitividade dos prestadores não psiquiatras, que vendiam psicoterapia a preços menores; (2) pressões políticas do governo americano para controle dos custos crescentes da desinstitucionalização dos pacientes psiquiátricos; (3) pressão crescente das seguradoras de saúde sobre os psiquiatras para demonstrarem a eficácia de suas práticas, já que a demanda por reembolsos alcançava cifras altíssimas; e (4) a pressão da indústria farmacêutica para vender seus produtos como tratamento para doenças específicas.

Rompendo com a tradição psicodinâmica, os criadores do DSM-III formularam um sistema que se pretendeu ateórico, mas que de fato representou a retomada da visão kraepeliniana da psiquiatria, enfatizando, sobretudo, a classificação de doenças segundo seus sintomas, curso e prognóstico. Spitzer5 foi talvez o autor mais comprometido com a ideia de que os transtornos mentais são um subtipo de transtornos médicos. Este princípio, à época tão dogmático quanto o princípio psicodinâmico, teve a consequência de demarcar, como nunca antes, os limites do campo de atuação psiquiátrica, respondendo às várias demandas socioeconômicas a que os profissionais de saúde mental estavam submetidos.

Talvez justamente por ter vindo tão ad hoc, a terceira edição do DSM instituiu um "antes" ultrapassado e um "depois" atual e pretensamente científico. Nessa época, durante o governo Reagan, as verbas para pesquisa do National Institute of Mental Health (NIMH) cresceram 84%, atingindo cifras acima de quatrocentos milhões de dólares por ano.

Ao longo da década de 1980, ele se tornou não só um guia para a prática clínica e a pesquisa, mas também o principal instrumento na formação psiquiátrica. Desde então, a leitura dos tratados clássicos de psiquiatria clínica e das bases fenomenológicas da psicopatologia deram lugar às várias versões do Kaplan & Sadocks Comprehensive Textbook of Psychiatry, um livro-texto todo ele apoiado na nosologia do DSM-III e das duas edições seguintes, DSM-III-R (1987) e DSM-IV (1994), que apenas reafirmaram, solidificaram e ampliaram a transformação trazida à psiquiatria pelo DSM-III.

Três décadas depois, pudemos observar alguns fenômenos curiosos, gerados por essa transformação: primeiro, o efeito desse manual como livro-texto de psiquiatria estreitou a formação psiquiátrica e gerou uma espécie de perpetuação automática do modelo, uma vez que não só a psicanálise, mas também a própria psicopatologia fenomenológica estiveram cada vez mais distantes do cerne dos programas de residência médica em psiquiatria. A situação é ainda mais preocupante quando os mais novos, que não viveram o período de transição da "velha" para a "nova" psiquiatria, tendem a acreditar de modo por vezes um pouco ingênuo na cientificidade desse sistema classificatório e a desprezar os fatores sociopolíticos que parecem ter sido preponderantes na sua proposição.

Segundo, um instrumento que visava à maior precisão dos limites entre o normal e o patológico acabou conduzindo ao efeito oposto. Se, no início dos anos 1970, o problema era o quanto de dinheiro se dispendia com psicoterapias para não-doentes, para os chamados worried-well, hoje a pergunta poderia ser o quanto de dinheiro se dispende com recursos de saúde mental e psicofármacos para igualmente não-doentes.

 

E a psicanálise...

O segredo da psicanálise é que não há psicogênese

(Lacan, 1988, p. 16)

É comum ouvir que, a partir da década de 1980, a psicanálise foi expurgada da psiquiatria. Vale a pena esmiuçar um pouco esta afirmativa.

Para Freud, a psicanálise estava no campo das ciências da natureza. Seu ponto de partida foi a explicação dos sintomas histéricos a partir da construção de um modelo neurofisiológico que propunha o aparelho psíquico sob o ponto de vista funcional, não anatômico. Trinta anos depois de suas primeiras experiências com as histéricas, Freud retomou a unicidade entre o psíquico e o somático por outro viés, com a proposição da pulsão de morte. Estes exemplos servem para ilustrar que não há dualismo mente-corpo para Freud. Há, sim, a inclusão da representação como parte indissociável do corpo nos seres humano. Os vários autores que se seguiram a Freud puderam escrever isso de muitas formas: o pensamento, em psicanálise, é pensamento encarnado; o corpo é marcado pela linguagem; o corpo na psicanálise não se reduz ao organismo etc. Em suma, o psiquismo de que a psicanálise se ocupa não prescinde do corpo, e o corpo que traz um sujeito para uma análise não é isento de seus efeitos.

De outro lado, a tradição médica foi por muito tempo dualista. A psiquiatria contemporânea a Freud é justamente a de Kraepelin, que sustentava a hipótese da causação orgânica dos transtornos mentais. A psicopatologia jasperiana também sustentava essa dicotomia, propondo os conceitos de processo e desenvolvimento, diferenciados pela possibilidade ou não de estabelecer nexos de compreensibilidade entre o histórico biográfico e o fenômeno psicopatológico.

A Psicologia compreensiva é, de fato, a base do modelo psicogênico. Quando, por exemplo, Kurt Schneider6 descrevia suas reações vivenciais normais e anormais, o nexo de sentido que ele estabelecia entre o evento desencadeante e o quadro reativo era da ordem da compreensibilidade e essa, por sua vez, era um critério apoiado na empatia e pretensamente universalizável. Assim, nessa perspectiva, o luto é uma reação vivencial normal, pois é compreensível que um indivíduo se entristeça quando perde um ente querido. A compreensão empática exclui tanto a singularidade quanto as infinitas idiossincrasias que o humano comporta. É esse detalhe que a separa, radicalmente, da perspectiva psicanalítica.

Tal diferenciação permitiu a Lacan afirmar que é um erro confundir sentido e compreensão, isto é, que não é pela via da compreensão que se chega ao sentido dos sintomas na perspectiva freudiana. O deciframento do sintoma tomado como formação do inconsciente se faz pela via da livre associação, a via que justamente escapa à ordenação racional da fala. Einfall é o termo freudiano, a ocorrência, o que vem à cabeça sem a censura da razão. A interpretação psicanalítica vai, assim, atrás justamente do que parece incompreensível a olho nu.

Esta sutileza, entretanto, foi se perdendo ao longo das elaborações teóricas que basearam a psiquiatria psicodinâmica. Houve uma apropriação de termos psicanalíticos descontextualizados de seu conceito original. Inconsciente, transferência, defesa, resistência, entre outras, são palavras que fazem parte do vocabulário da psicodinâmica, mas muitas vezes se referindo a fenômenos muito distantes daqueles propostos por Freud. Tais equívocos ainda hoje estão presentes em práticas psicoterápicas de orientação pretensamente psicanalítica, que se empenham em normatizar, disciplinar ou adaptar pacientes, objetivos nem de perto semelhantes aos que se esperam de uma análise.

Assim, é preciso rever o expurgo psicanalítico trazido pelo DSM-III. Num primeiro momento, chama a atenção a exclusão de termos tradicionais como neurose e histeria. Mas, penso que isso é o menos importante nesse processo. Há duas exclusões concomitantes aí. A primeira é a de tudo o que se aproximava da psicodinâmica, e nesse pacote se inscreve a supressão dos referidos diagnósticos. A segunda, mais sutil, mas mais grave, é a eliminação completa de qualquer referência ao sujeito humano atravessado pela linguagem e, portanto, submetido às leis do inconsciente. Digo mais grave, pois destituir do ser essa dimensão acaba por diluir a psiquiatria na neurologia.

 

E o futuro?

A recém-lançada quinta edição, DSM-5 (2013), surgiu sob críticas e debates. Muito se discutiu sobre os novos diagnósticos e os que foram suprimidos, o abandono do sistema multiaxial e o possível efeito dessas mudanças sobre a pesquisa e a prática psiquiátrica. Num rápido levantamento no PubMed a partir do tópico de busca "DSM-5 changes", pode-se encontrar críticos e defensores igualmente apaixonados, e mesmo quem diga que, afinal, nada mudou tanto assim.

A ideia de introduzir nos diagnósticos um aspecto dimensional, isto é, de considerar não apenas a presença ou ausência de um dado sintoma, mas também sua intensidade, foi talvez um dos pontos mais polêmicos, já que, mantendo o paralelo com outras especialidades médicas, se pensou em estabelecer limites para populações de risco para um ou outro transtorno psiquiátrico e, mais assustador, se conjecturou implementar medidas preventivas para reduzir os pretensos riscos.

Digna de nota é a crítica elaborada por Thomas Insel, atual diretor do NIMH, e publicada em abril de 2013, onde ele diz, textualmente:

Embora o DSM tenha sido descrito como uma "bíblia" neste campo, ele é, na melhor das hipóteses, um dicionário, criando um conjunto de rótulos e definindo-os. A força de cada uma das edições do DSM tem sido "confiabilidade" - cada edição assegurava que os clínicos usassem os mesmos termos do mesmo modo. A fraqueza é sua falta de validação. Diferentemente de nossas definições de cardiopatia isquêmica, linfoma ou aids, os diagnósticos do DSM se baseiam num consenso sobre grupos de sintomas clínicos, não em qualquer medida laboratorial objetiva. (Insel, 2013)

Desta vez, a pseudocientificidade do DSM não foi uma acusação vinda da boca de psiquiatras psicodinâmicos nostálgicos, muito menos dos psicanalistas. O fato da própria NIMH, pela voz de seu diretor, fazer uma declaração desse teor, poderia sinalizar que, após trinta anos de confusão, a psiquiatria estaria encontrando um caminho para o tão desejado campo da ciência. O próprio NIMH elaborou inclusive um novo projeto, o Research Domain Criteria (RDoC), com o objetivo de transformar os diagnósticos, incorporando informações vindas da genética, dos estudos de imagem, da ciência cognitiva etc., para fundar um novo sistema de classificação. Entretanto, dentre os vários pressupostos que baseiam essa metodologia, explicita-se que "as doenças mentais são transtornos biológicos envolvendo circuitos cerebrais, que implicam especificamente os domínios da cognição, da emoção ou do comportamento". A adversativa se justifica, pois, ao invés de finalmente devolver a psiquiatria aos psiquiatras, essa proposição parece, no fim das contas, conduzir para sua extinção como especialidade, e sua completa absorção pela neurologia.

Tal dissolução, aliás, estaria bem de acordo com a ação do presidente Obama de comprometer 110 milhões de dólares no próximo ano com a chamada BRAIN Iniciative (Brain Research through Advancing Innovative Neurotechnologie). Deixando de lado as teorias da conspiração, é evidente que a neurociência é uma poderosa máquina de fazer dinheiro.

Reportando a conferência "DSM-5 and the Future of Psychiatric Diagnosis", ocorrida no King's College de Londres, em 4 e 5 de junho de 2013, Voruz e Haney citaram o seguinte diálogo, que teria se dado entre o eminente psiquiatra britânico Robin Murray e a plateia, ao fim de sua exposição:

Pergunta: mas a APS (Attenuated Psychosis Syndrome) tem validação?

R. Murray: hambúrgueres existem, mas ele não são validados. Muitos risos e alguém pergunta: então, o que eu devo escrever no meu paper?

R. Murray: algo vago e descritivo. Pergunta: então as categorias do DSM são subjetivas?

R. Murray: claro! E ao final: assim cada um pode encontrar o que lhe cai melhor... e todos podem garantir algum dinheiro! Muitos risos. (Voruz & Haney, 2013)

Os chistes, já sabemos desde Freud, são uma boa maneira de expressar conteúdos muito desconfortáveis à consciência. Evidentemente o professor Murray brincou com sua plateia. Mas talvez seja preciso ouvir bem o que ele diz, além do que ele fala. As últimas três décadas da psiquiatria foram completamente monopolizadas por um modelo que se revela cada vez mais distante da ciência e mais próximo da política e da economia. E o que o futuro próximo sugere tampouco parece muito promissor para a especificação do campo da psiquiatria, já que ela tende a se tornar uma neurologia das funções cerebrais superiores.

O campo do sofrimento, da condição humana como tal, está sendo deixado de lado. Uma pena para os psiquiatras. Para nós, psicanalistas, nenhuma novidade. Esse é o nosso campo. E talvez, a partir da especificidade do discurso psicanalítico, nós tenhamos algo a dizer no futuro, caso os psiquiatras voltem a se preocupar com outras hipóteses teóricas além do fundamento biológico das doenças mentais. Laurent diz que "sem as discussões 'teóricas' sobre o que é e o que não é uma doença mental, os únicos debates incidem sobre a quantidade de itens a ser controlada". Muito pouco. Muito pouco para psiquiatras e, principalmente, para os pacientes.

A psicanálise, com seu método tradicional que é o do relato de caso clínico, a observação da singularidade e a elaboração teórica a partir dela, poderá colaborar bastante, quando o tempo da psiquiatria ateórica finalmente terminar.

 

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Recebido em: 15/12/2013
Aceito em: 18/12/2013

 

 

Marcia Szajnbok, Rua Itapeva, 240, cj. 209 | Bela Vista, 01332-000. São Paulo, SP. Tel: 11 3288-2086 marciasz@hotmail.com
1 Marie François Xavier Bichat (1771-1802): importante anatomista e fisiologista francês, que introduziu a noção histológica de tecido e contribuiu significativamente para o desenvolvimento da anatomopatologia.
2 Antoine Laurent Bayle (1799-1858): médico francês, autor da primeira descrição completa da paralisia geral progressiva (neurossífilis), que ficou também conhecida pelo nome "Mal de Bayle".
3 Emil Kraepelin (1856-1926): psiquiatra alemão, criador da primeira sistematização diagnóstica em psiquiatria e, por isso, considerado por muitos como o criador da psiquiatria contemporânea. Acreditava na base orgânica dos transtornos psiquiátricos e nos então futuros descobri
4 James Carville, coordenador da campanha eleitoral vitoriosa de Bill Clinton em 1992.
5 Robert Spitzer: professor aposentado do Depto. de Psiquiatria da Columbia University, de Nova York. Foi o coordenador da força-tarefa que elaborou o DSM-III.
6 Kurt Schneider (1887-1967): psiquiatra alemão, professor e diretor da Clínica Psiquiátrica da Universidade de Heidelberg no período de 1946-1955, foi importante pesquisador na área da psicopatologia, publicando em 1950 sua obra mais significativa, Psicopatologia Clínica.