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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.46 no.85 São Paulo jun. 2013

 

PSICANÁLISES POSSÍVEIS

 

Narrar a clínica: entre tradição e ruptura

 

Narrating clinical practice: amid tradition and rupture

 

Narrar la clínica: entre la tradición y la ruptura

 

 

Leda Maria Codeço Barone

Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, sbpsp. Doutora em Psicologia - IPUSP. Professora do Centro Universitário FIEO-UNIFIEO

 

 


RESUMO

Ninguém desconhece que Freud foi um exímio escritor e que em seus historiais clínicos viu-se impelido a contar uma história do doente no lugar de uma história da doença dando início a um novo gênero literário. Desde o início da psicanálise a questão da escrita da clínica tem suscitado o interesse de diferentes autores que procuram estudar o estilo, a abrangência e a relação dela com a teoria. Neste trabalho, a escrita da clínica será estudada sob a perspectiva do método da psicanálise, num diálogo com ideias benjaminianas sobre o fim da narrativa tradicional e como estas foram trabalhadas por Gagnebin, com objetivo de articular duas questões: a natureza do objeto da escrita da clínica e o lugar que o analista ocupa na relação transferencial. O analista na clínica sustenta o lugar de testemunha, de um terceiro, capaz de ouvir a narração insuportável do outro. Ele recolhe os restos, o indizível, os fragmentos e os lapsos de história contados pelo paciente e propicia o surgimento de uma narrativa capaz de articular passado, presente e futuro, não numa continuidade homogênea, mas que dê conta das rupturas, do absurdo e das lacunas de sentido que se fazem presentes no campo transferencial.

Palavras-chave: narrativa, clínica, método psicanalítico, testemunha


ABSTRACT

No one is unacquainted with the fact that Freud was an excellent writer, and that, in his clinical writings, he saw himself impelled to tell a history of the sickened, rather than a history of the sickness, inaugurating a literary genre. Since the early stages of Psychoanalysis, clinical writing has aroused the interest of numerous authors who seek to study its style, breadth and relationship to theory. In this article, clinical writing will be studied in the perspective of the psychoanalytic method, in dialogue with Benjaminian ideas about the end of traditional narrative and how they were worked on by Gagnebin, with the objective of connecting two issues: the nature of clinical writing and the lieu the analyst occupies in the transferential relationship. The analyst sustains the lieu of witness in the clinical setting of third party, able to listen to the unbearable narrative of another. He collects the leftovers, the unsayable, the fragments and parapraxes in the history told by the patient, allowing for the emergence of a narrative able to articulate past, present and future, not in a homogenous continuity, but accounting for ruptures, the absurd and the gaps of meaning that make themselves present in the transferential field.

Keywords: narrative, clinical practice, psychoanalytic method, witness


RESUMEN

Nadie desconoce que Freud fue un eximio escritor y que en sus historiales clínicos se vio impelido a contar una historia del enfermo en lugar de una historia de la enfermedad, dando inicio a un nuevo género literario. Desde el inicio del psicoanálisis, la cuestión de la escrita de la clínica ha suscitado el interés de diferentes autores que buscan estudiar el estilo, el alcance y la relación de ella con la teoría. En este trabajo, la escrita de la clínica será estudiada desde la perspectiva del método psicoanalítico, en un diálogo con ideas benjaminianas sobre el fin de la narrativa tradicional y como estas fueron pensadas por Gagnebin, con el objetivo de articular dos cuestiones: la naturaleza del objeto de la escrita de la clínica y el lugar que el analista ocupa en la relación transferencial. El analista en la clínica sostiene el lugar de testigo, de un tercero, capaz de oír la narración insoportable del otro. Recoge los restos, lo indecible, los fragmentos y los lapsos de historia contados por el paciente y propicia el surgimiento de una narrativa capaz de articular pasado, presente y futuro, no en una continuidad homogénea, sino que abarque las rupturas, el absurdo y las ausencias de sentido que se hacen presentes en el campo transferencial.

Palabras clave: narrativa, clínica, método psicoanalítico, testimonio


 

 

entre o nosso hoje, o nosso ontem e
o anteontem caíram todas as pontes.
Stefan Zweig (1999, p. 9)

 

Ninguém desconhece que Freud foi um exímio escritor e que em seus historiais clínicos viu-se impelido a contar uma história do doente no lugar de uma história da doença dando início a um novo gênero literário, o que o levou a comentar:

Eu mesmo me surpreendo com o fato de as histórias de doentes que escrevo serem legíveis como romances (Novellen) e de a elas faltar, por assim dizer, o carimbo sério da cientificidade. Devo consolar-me disso pelo fato de esse resultado dever ser imputado à natureza do objeto, mais que a minha preferência. (Freud, citado por Assoun, 1996, p. 228)

Embora muito se tenha escrito sobre o assunto (a escrita do analista), vou tomá-lo novamente, mas sob a perspectiva do método da psicanálise, a interpretação, entendida como ruptura de campo num diálogo com ideias benjaminianas sobre o fim da narrativa tradicional e como estas foram trabalhadas por Gagnebin (2006) com objetivo de tentar articular duas questões: a natureza do objeto da escrita do analista e o lugar que o analista ocupa na relação transferencial.

Dito de outra maneira, qual a natureza do objeto e o lugar que ocupa a escrita do analista que recolhe os restos de um estranho diálogo em que escuta uma história em fragmentos da qual não participou, mas que por ser encenada e revivida em sua presença encontra suporte para ser tecida?

A psicanálise surge no fim do século xix para dar conta do resto que a racionalidade deixou escapar de suas malhas. A esse respeito comenta Salvain (1992) que ela trata exatamente daqueles pontos que fogem do âmbito da ciência, melhor dizendo; de uma verdade que não se dobra aos fundamentos da matemática e do controle de variáveis. Entre estes restos deixados pelas ciências físicas e pela tecnologia produzida a partir delas, Herrmann (1997b) diz se encontrar entre brumas a ideia psicanalítica, a ideia por que não dizer, original daquilo que Freud sabiamente soube recolher. Trata-se de "uma forma peculiar de atividade interpretativa" que guarda certa semelhança com a conversa comum cuja

produção de conhecimento estrutura-se sobre as posições relativas dos interlocutores e somente ocorre por ação de presença, requerendo o embate vivo das subjetividades em questão. (Herrmann, 1997b, p. 16)

Reconhece ainda o autor que essa ideia aparece vez por outra na literatura, na filosofia, nos precursores da Psicologia, na palavra dos exegetas da religião, nos rituais de magia, enfim em diferentes contextos em que o homem é tomado em consideração.

Retomando essa ideia em outro texto, Herrmann (1997a) vai precisá-la melhor reconhecendo que a psicanálise deriva do diálogo humano e se apoia na capacidade que a palavra tem de afetar a recordação. Às vezes possibilitando-a, outras impedindo-a ou transformando-a, porém criando-a sempre. O autor ainda ressalta que o importante aqui é considerar o que o analista faz desse diálogo: ele o transfigura tomando-o como ponto de partida para a investigação psicanalítica, isto é, o analista o submete ao método psicanalítico, à interpretação entendida como ruptura de campo. O analista ouve o paciente em outro campo, diferente daquele em que ele se encontra, de forma a produzir uma ruptura que deixará à mostra as regras que organizavam o campo.

Dessa maneira, a interpretação, entendida como ruptura de campo, não prova nada, mas cria condições para o surgimento de sentidos que deverá ser diferente de uma eventual sentença interpretativa proposta pelo analista. Diz então o autor:

Interpretar é como partejar - espera-se que nasça um bebê e não um fórceps, que do paciente surja um sentido, não que resulte o instrumento teórico do analista. (Herrmann, 2008, pp. 60-61)

Pela interpretação, ao tomar em consideração o discurso do paciente em sua dimensão metafórica, ou seja, em apreendê-lo em outro campo, o analista acaba por provocar uma ruptura dos pressupostos que limitavam o sentido em uma dada área psíquica, favorecendo o surgimento de representações excluídas da consciência. A partir da consideração de "tais representações aberrantes", o analista poderá deduzir a regra de organização do campo rompido.

Retomando as ideias já expostas até agora, parece-me lícito considerar que a psicanálise trata especialmente dos restos, daquilo que não se pode dizer abertamente, do esburacado, do fragmentado. O analista, em sua escrita, recolhe estes restos para transformar em tecido narrativo. Apodera-se de fios soltos, de espessura e tensões diferentes para tecer uma narrativa. E a palavra analítica eficaz será "aquela capaz de partejar o absurdo do útero do cotidiano" - como tão bem propõe Herrmann -, e será também aquela que não pretende explicar, mas deixar surgir novos sentidos que serão rearranjados pelo paciente à sua maneira. Assim, por sua escuta descentrada, o analista propicia o surgimento de uma narrativa que articula passado, presente e futuro, porém não numa continuidade homogênea, mas que dê conta das rupturas, do absurdo, das lacunas de sentido que se fazem presentes no campo transferencial.

Porém, esse trabalho de articulação se dá num tempo próprio imposto pelo método interpretativo de ruptura de campo. Esse tempo, segundo Herrmann (2008), é o futuro do pretérito, ou tempo condicional, representado pelo símbolo do infinito (∞). Segundo o autor, a ruptura de campo coloca em crise as estruturas vivenciais do paciente tendo como efeito alterar e corrigir suas lembranças. Dessa maneira, "modifica-se o solo de memória e o passado passa a ter sido outro. Como conseqüência e em pequena medida, o presente, ou seja, o futuro de um novo passado, muda e também passa a ter sido sempre aquele que se criou, provocando estranheza ao paciente" (Herrmann, 2008, nota de L. Herrmann).

Das ideias de Walter Benjamin interessa-me aqui as que ele desenvolveu sobre o fim da narrativa tradicional, ideias trabalhadas principalmente em dois textos: "Experiência e pobreza" de 1933 e "O narrador" de 1936. Em ambos os textos Benjamin fala da perda da experiência e do consequente declínio da capacidade de narrar. Gagnebin (2006), no texto que tomo aqui como referência, esclarece que o termo experiência deve ser tomado no sentido forte e substancial, ou seja, naquele

que a filosofia clássica desenvolveu, que repousa sobre a possibilidade de uma tradição compartilhada por uma comunidade humana, tradição retomada e transformada, em cada geração, na continuidade de uma palavra transmitida de pai para filho. (Gagnebin, 2006, p. 50)

E é exatamente para tratar desta questão que, em "Experiência e pobreza", Benjamin se vale de uma fábula que leu num livro de leitura. Conta a fábula que um velho vinhateiro em seu leito de morte confia a seus filhos um segredo: há um tesouro escondido em suas terras. Os filhos cavam e não encontram nada. Porém no ano seguinte suas vinhas florescem mais que nunca. Os filhos então compreendem que o pai lhes transmitiu uma experiência e que sua riqueza provém dessa experiência. É interessante observar o ponto para o qual Gagnebin vai chamar atenção na fábula. Não é para o ensinamento moral proposto pela fábula: a nobreza do trabalho, mas para a questão da autoridade da palavra do pai. Para a autora o importante no exemplo é que a palavra do pai, pronunciada no leito de morte, tem efeito nos atos dos filhos que a reconhecem como herança simbólica; a palavra do pai transporta algo que passa de geração para geração.

Em ambos os textos ainda, Benjamin observa que a perda da experiência acarreta outro desaparecimento, o desaparecimento das formas tradicionais de narrativa cujas fontes encontram-se nessa comunidade e nessa possibilidade de transmissão. E para o autor esse duplo desaparecimento provém de fatores históricos - capitalismo, técnica - que culminaram com as atrocidades da Primeira Guerra Mundial: "os combatentes tinham voltado silenciosos do campo de batalha. Mais pobres em experiências comunicáveis, e não mais ricos" (Benjamin, 1933/1996a, pp. 114-115), observa o autor em ambos os textos.

Ainda Gagnebin a respeito destes textos vai apontar que Benjamin, nesse diagnóstico,

reúne reflexões oriundas de duas proveniências: uma reflexão sobre o desenvolvimento das forças produtivas e da técnica e outra reflexão convergente sobre a memória traumática, sobre a experiência do choque ... portanto, sobre a impossibilidade, para a linguagem cotidiana e para a narração tradicional assimilar o choque. (Gagnebin, 2006, p. 51)

E mais, a autora vai reiterar ser exatamente a impossibilidade de uma resposta simbólica diante do trauma que vai levar Benjamin a desenvolver consequências diferentes nos dois textos analisados a despeito de partirem ambos do mesmo ponto de vista, ou seja, da constatação da perda da experiência e da capacidade de narração tradicional. Neste ponto, gostaria de chamar a atenção para o tema da presente reflexão ressaltando que a escrita do analista se insere precisamente neste lugar: o da perda da experiência, e que a própria psicanálise já nasce com essa marca: a de dar conta dos restos, do que não tem lugar.

Assim, aponta Gagnebin, enquanto no texto "Experiência e pobreza" a análise de Benjamin incide sobre as mutações que a pobreza de experiência acarretou nas artes contemporâneas, em "O narrador", impelido pelo imperativo de não deixar o passado cair no esquecimento, Benjamin "esboça a ideia de outra narração, uma narração nas ruínas da narrativa, uma transmissão entre os cacos de uma tradição em migalhas" (Gagnebin, 2006, p. 54).

E esse "narrador sucateiro", no dizer de Gagnebin, terá como tarefa recolher não os grandes feitos, mas os restos. Deverá recolher o que não tem sentido nem importância, o que escapa à história oficial. E essas sobras são de duas ordens: em primeiro lugar o sofrimento indizível das duas Guerras Mundiais, e em segundo lugar aquilo que não tem nome e não deixa rastro. Diz então Gagnebin:

o narrador e o historiador deveriam transmitir o que a tradição, oficial ou dominante, justamente não recorda. Essa tarefa paradoxal consiste, então, na transmissão do inenarrável, numa fidelidade ao passado e aos mortos, mesmo - e principalmente - quando não conhecemos nem seu nome nem seu sentido. (Gagnebin, 2006, p. 54)

Creio aqui também reconhecer a natureza do objeto a partir do qual o analista tece sua narrativa, esteja ele diante de seu paciente ou de qualquer recorte da psique do real.

Ao reconhecer que "tal história não pode ser o desenrolar tranqüilo e linear de uma narrativa contínua", Gagnebin sugere dois conceitos que poderiam ter utilidade para pensar numa narrativa possível: o conceito de cesura, comum a Hölderlin e a Benjamin, e o de interrupção, comum a Brecht e a Benjamin. De minha parte, gostaria de sugerir outro, tratando-se da escrita do analista: o de ruptura de campo. O analista apreende esses restos, estes fragmentos, esses lapsos de história, de um paciente ou de qualquer recorte do real humano sob o crivo do método interpretativo para partejar sentido, para deixar surgir um esboço de sentido.

Nesse ponto, para atender a exigência de memória tão vivamente defendida nos textos de Benjamin e ao mesmo tempo levar em conta as dificuldades apontadas sobre a possibilidade de experiências passíveis de narração, Gagnebin faz uma observação que reputamos importante para minha argumentação. Diante da exigência de memória há "o risco de recair na eficácia dos bons sentimentos, ou pior ainda numa espécie de celebração vazia, rapidamente confiscada pela história oficial" (Gagnebin, 2006, pp. 54-55).

Sugere então a autora uma distinção entre comemoração (que descamba para o religioso ou para as celebrações de Estado), e o de rememoração, de maneira a nos aproximarmos do pensamento benjaminiano. Tal rememoração, diz Gagnebin, para ficarmos fiéis a Benjamin,

implica uma certa ascese da atividade historiadora que, em vez de repetir aquilo de que se lembra, abra-se aos brancos, aos buracos, ao esquecido e ao recalcado, para dizer, com hesitações, solavancos, incompletude, aquilo que ainda não teve direito nem à lembrança nem às palavras. A rememoração, também significa uma atenção precisa ao presente, em particular a estas estranhas ressurgências do passado no presente, pois não se trata somente de não esquecer do passado, mas também de agir sobre o presente. A fidelidade ao passado, não sendo um fim em si, visa à transformação do presente. (Gagnebin, 2006, p. 55)

Vale lembrar aqui o regime de tempo em análise: o futuro do pretérito referido por Herrmann com o símbolo do infinito (∞). Neste símbolo,

a laçada da esquerda representa o passado; o ponto em que as duas se cruzam, a ruptura de campo e a laçada da direita, o novo presente que se modificou como um futuro do passado alterado. (Herrmann, 2008, nota de L. Herrmann)

E para fundamentar a proposta que introduzirá mais adiante, Gagnebin lembra um sonho recorrente contado por Primo Levi em seu livro É isto um homem?, sonho este presente em muitos sobreviventes de Auschwitz. O sonho narra a volta do sobrevivente para casa e sua tentativa de contar aos amigos, à família, os horrores vividos no campo de concentração. Mas ninguém fica para ouvir. Um a um, todos, indiferentes, deixam-no sozinho, de maneira a não poder dizer a experiência inenarrável do horror. Desse sonho toma a figura "daquele que se levanta e vai embora" para propor uma saída possível.

Em sua proposta, Gagnebin aponta para o estabelecimento de um espaço simbólico em que se possa articular um terceiro, aquele que "inscrevendo um possível alhures possibilita novamente um sentido humano ao mundo" (Gagnebin, 2006, p. 57), e que no sonho de Primo Levi deveria ser a função dos ouvintes, que lamentavelmente se negam a ouvir. No entanto, somente assim, encontrando um terceiro, um ouvinte, esta história poderia ser contada, traçando, assim, outro destino. Para situar esse terceiro, Gagnebin propõe uma ampliação do conceito de testemunha:

testemunha não seria somente aquele que viu com os próprios olhos, o histor de Heródoto, a testemunha ocular. Testemunha também seria aquele que não vai embora, que consegue ouvir a narração insuportável do outro e que aceita que suas palavras levem adiante, como num revezamento, a história do outro; não por culpabilidade ou por compaixão, mas porque somente a transmissão simbólica, assumida apesar e por causa do sofrimento indizível, somente essa retomada reflexiva do passado pode nos ajudar a não repeti-lo infinitamente, mas a ousar esboçar uma outra história, a inventar o presente. (Gagnebin, 2006, p. 57)

Este terceiro, creio, é também o analista que não vai embora, que permanece e toma em consideração seu paciente ou qualquer outro recorte da psique do real. A natureza do objeto de sua escuta/escrita são restos, fragmentos de uma história, memórias traumáticas, fixações, narrativas em migalhas, e o lugar que ocupa quando escuta uma história da qual não participou, mas que por sua presença e suporte permite que seja narrada, é o de testemunha. É este lugar-terceiro (do analista de posse do método interpretativo) que permite a passagem da celebração sintomática1 - a repetição traumática - à rememoração elaborativa tão bem ilustrada nos apelos do pobre Iona do conto Saudade de Tchekov. Iona, após a morte do filho, tenta contar, em vão, o acontecido para qualquer um que encontra em seu caminho. Ninguém se dispõe a ouvi-lo. No entanto, quando está sozinho:

No filho não pensa, quando está sozinho não pode... Pode falar dele com alguém, isso pode, mas pensar nele a sós consigo próprio, imaginá-lo é insuportável e assustador... (Tchekov, 2001, p. 28)

 

Referências

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Benjamin, W. (1996b). O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In W. Benjamin, Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política (S. P. Rouanet, trad., pp. 197221). São Paulo: Brasiliense. (Trabalho original publicado em 1936)         [ Links ]

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Recebido em: 11/12/2013
Aceito em: 17/12/2013

 

 

Leda Maria Codeço Barone. Rua Dr. Alceu de Campos Rodrigues, 46, cj. 38, 04544-000. São Paulo, SP. Tel: 30459064, ledabarone@uol.com.br
1 Ver "Neurose e história", capítulo do livro Andaimes do real. O método, de Fabio Herrmann (1991)