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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.47 no.86 São Paulo June 2014

 

TEMA: TRANSMISSÃO DA PSICANÁLISE E REGULAMENTAÇÃO

 

2014: sobre a transmissão da psicanálise

 

2014: concerning the transmission of psychoanalysis

 

2014: con respecto a la transmisión del psicoanálisis

 

 

Marcio de Freitas Giovannetti

Membro efetivo e analista didata da da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP

 

 


RESUMO

Partindo de cinco trabalhos a respeito da transmissão da psicanálise, o autor questiona o Instituto de Psicanálise como lugar privilegiado dessa transmissão, enfatizando a importância do caráter lúdico na mesma. Se em vez do jogo houver um predomínio do caráter ritualístico, a transmissão se perverte.

Palavras-chave: transmissão, rito, sacralização, sociedades frias, sociedades quentes


ABSTRACT

Five papers from different Latin American countries are the starting point for the author's considerations on psychoanalytical transmission. According to Levy Strauss' concepts of "hot" and "cold" societies, he emphasises that where there is a prevalence of play over rites the field of psychoanalytical transmission is closer to the Freudian spirit.

Keywords: transmission, rites, sacralisation, playing


RESUMEN

Tomando como base cinco trabajos que tratan sobre transmisión del psicoanálisis, el autor cuestiona el lugar privilegiado que ocupa el Instituto de Psicoanálisis en esa transmisión, enfatizando la importancia del carácter lúdico de la misma. Afirma que si en lugar del juego hay predominio de un carácter ritualístico, la transmisión se pervierte.

Palabras clave: transmisión, rito, sacralización, sociedades frías, sociedades calientes


 

 

Seis trabalhos que focam as questões inerentes à formação e à transmissão da psicanálise na atualidade me foram encaminhados pelo Jornal para que servissem de âncora aos debates de hoje. Três deles escritos por membros de nossa Sociedade e cada um dos outros por colegas de distintas sociedades. Dos seis, três foram apresentados no Encontro de Institutos Latino-Americanos, realizado em Buenos Aires, no ano passado, um deles apresentado no último Congresso Brasileiro e dois deles escritos especialmente para o Jornal. Sua leitura foi bastante instigante e nem um pouco monótona, justamente por ficarem mais do que evidentes as diferentes abordagens que cada um dos autores faz de temática tão complexa, viva e controversa. Se comecei esta fala fazendo referência aos lugares de produção dos trabalhos, foi porque a problemática do "lugar" pareceu-me a mais central em todos eles.

Não é justamente o lugar aquilo que nosso momento histórico tem mais colocado em questão? "Onde você está?", a frase inicial de qualquer telefonema feito a partir da criação da telefonia móvel, há pouco mais de 15 anos, já se tornou obsoleta, com o uso disseminado dos Instagram e FaceTime: todos sabemos onde todos estamos a qualquer momento. Ou melhor, todos precisamos nos reassegurar de que estamos em um lugar seguro, pois o cotidiano do ciberespaço coloca em xeque a força gravitacional de todos nós terráqueos. Ainda que sejamos psicanalistas, ainda que nossa identidade tenha sido forjada nos espaços oníricos da Stultifera Navis e das escutas flutuantes. Ainda que desde o momento originário desta profissão impossível nossos pioneiros tenham se debatido com a procura do melhor lugar para o desenvolvimento e a transmissão da nova disciplina. O Herr Professor deixou a universidade, estabeleceu sua clínica particular, organizou o grupo das quartas-feiras, fundou uma associação internacional, que depois fundou institutos de formação, que, temerosos com o destino da psicanálise frente à ameaça iminente da morte do fundador, estabeleceram um modelo de formação que permaneceu melancolicamente inquestionável por quase meio século, sob pena de um anátema semelhante ao sofrido por Lacan, mas que felizmente, desde as últimas décadas do século passado, já vem sendo, oficialmente, acompanhado por mais outros dois: o francês e o uruguaio.

"Uma colega me dizia, tempos atrás, que nós, psicanalistas, somos inevitavelmente conservadores", escreveu Leisse de Lustegarten em seu trabalho que se propõe a mostrar como é feita a formação psicanalítica à distância, isto é, a experiência do ILAP, lugar de formação para aqueles profissionais que habitam lugares, cidades e países onde não há ainda sociedades de psicanálise. O ILAP contraria o conservadorismo daquela afirmação: há seminários por Skype, supervisões por Skype e sessões de análise didática por Skype. O famoso tripé da formação, não obedecendo à sincronia tradicional, já vai abrindo caminho para a oficialização de um quarto modelo... Não parece ser desse lugar que fala nossa conterrânea Ana Vannucchi ao dizer que "a formação analítica tem ocupado grande parte de minha vida nos últimos anos, constituindo-se assim numa esperança de que a psicanálise, tal como a recebi de meus antepassados, possa sobreviver aos 'novos tempos'". Seu trabalho, que privilegia a análise do analista dentro do tripé da formação, situa-se num lugar em que parece existir uma convergência dos antepassados no que diz respeito ao que seria psicanálise. Posição esta absolutamente oposta à de Moguillansky. Ele diz: "Neste terreno, sugiro que temos progredido, saindo de paixões movimentísticas, ao admitir que em psicanálise hoje, legitimou-se que convivem diversos modelos e que as diferenças não se saldam entre a 'verdadeira psicanálise' e modelos hereges e dissidentes". E mais adiante, "Então, a meu juízo, um bom ponto de partida é estabelecer que não há uma 'psicanálise', senão que há diversas psicanálises...". É neste ponto que o trabalho de outra conterrânea, Leda Herrmann, vem incidir. Para ela, ecoando o pensamento de Fabio Herrmann, o que há em comum entre as várias psicanálises, o lugar-comum por assim dizer, é o método interpretativo criado por Freud. Em uma palavra, o lugar é o método. Posição que parece compartilhar com Francisco C. dos Santos F. que, ao levar a psicanálise para a Universidade - a formação de jovens médicos -, enfatiza que "na busca do inconsciente alheio, o primeiro que se encontra é o próprio inconsciente", denunciando também a falsa oposição entre a psicanálise e os avanços das neurociências. Socorrendo-se a Laplanche, opõe-se àqueles que "criticam o ensino da psicanálise na universidade por acreditarem que somente na análise pessoal reside 'a pura verdade', já que somente ali ocorreria o processo vivo e fluido de incessante descoberta do inconsciente". Também na esteira da "clínica extensa" coloca-se Ana Gavião, outra paulista, embora, como Ana Vannucchi, privilegie a análise pessoal. A metáfora "À moda da casa", com que batiza seu trabalho, pode dar lugar a pensar que o espaço público da formação seja menor ou inferior ao espaço privado. O que está em franca contradição com toda a história da psicanálise, indissociável que ela é do movimento psicanalítico e mesmo do espírito do tripé, que se baseia numa constante alternância dos espaços privados e públicos da formação.

Aí está o paradoxo inerente ao ato psicanalítico: não há o interno sem o externo, não há o privado sem o público, não há casa sem sociedade. O sonho é a via régia para o inconsciente de cada um de nós, mas cada sonho tem seu umbigo, denunciando que não há Ego sem a polis: todo sujeito se insere numa cadeia genealógica e todo sujeito é também fruto de seu momento histórico. E o ato psicanalítico só se realiza na escuridão do contemporâneo. Como considerou Leda em seu trabalho, a transmissão da psicanálise só é possível dentro da clínica viva, contemporânea.

De forma livre, flutuante, escutemos as vinhetas clínicas dos trabalhos de Vannucchi e de Moguillansky: a paciente de Ana diz que estava perdida, meio desesperada e, de repente, fazendo uma curva, viu uma catedral toda iluminada. O de Moguillansky se queixa pelo fato de ter perdido a compra de um apartamento que o encantara e que seria o lugar em queria viver. Num, o desespero se resolve com uma catedral iluminada. Noutro, há a constatação da perda de um lugar fascinante. Magníficas metáforas que emergem como significantes da problemática da transmissão da psicanálise. As duas falam de lugares: um caminho desesperador e um lugar, objeto de desejo, para viver toda a vida. A diferença é o encaminhamento que se dá para a angústia. A primeira tenta resolvê-la com a visão de uma catedral. O segundo, com a constatação dolorosa da perda do lugar idealizado.

Estão postas aí as alternativas que temos hoje em nossos institutos. Ou os tratamos como catedrais, lugares do sacrossanto saber, ou encaramos a angústia da sua perda como lugares idealizados. Não é necessário dizer que a transmissão se fará de modo muito diferente, quer adotemos uma ou outra perspectiva. Uma das maiores feridas narcísicas decorre da constatação de que nossos pais não foram excelentes. Apenas nos deram a vida dentro de todas as suas limitações humanas. Nossos antepassados psicanalíticos, a despeito de toda sua fertilidade e paixão, também tinham um inconsciente e estavam inseridos em seu momento histórico...

Em seu artigo "O jogo e o sagrado" (1947, p. 165), E. Benveniste diz que o jogo (seja ele Jocus ou Ludus) modifica consubstancialmente o sagrado. Lembrando que a potência do ato sagrado reside precisamente na conjunção do mito que enuncia a história e do rito que a reproduz, ele diz que "se o sagrado pode definir-se mediante a unidade consubstancial do mito e do rito, poderíamos dizer que há jogo quando só se cumpre uma metade da operação sagrada, traduzindo unicamente o mito em palavras e unicamente o rito em ações". Levy-Strauss (1962), em suas brilhantes reflexões sobre aquelas sociedades classicamente chamadas de primitivas ou a-históricas, mostra que não há sociedade sem história, mas, sim, sociedades com história estacionária e sociedades com história em movimento. Sociedades frias e sociedades quentes. "São sociedades frias aquelas onde a esfera do rito tende a expandir-se às expensas do jogo; são sociedades quentes aquelas onde a esfera do jogo tende a expandir-se às expensas do rito". A partir daí, Giorgio Agamben, em seu livro Infância e história, considera que "rito e jogo aparecem como duas tendências que funcionam em toda sociedade mas que nunca chegam a eliminar-se mutuamente e, ainda que quando algumas delas prevaleça em certa medida, sempre deixam que subsista uma distância diferencial entre diacronia e sincronia". Essa distância seria aquilo que chamamos de história. Estaríamos nós, enquanto psicanalistas formadores de sociedades, mais próximos de uma sociedade fria ou de uma sociedade quente? Sacralizamos o ato profanador de nosso fundador ritualizando nossa práxis ou seguimos jogando com ela, como ele foi capaz?

Em O pensamento selvagem, Levy-Strauss afirma que "enquanto o rito transforma os acontecimentos em estrutura, o jogo transforma as estruturas em acontecimentos" (p. 44). Estrutural e estruturante em nossas vidas é a mortalidade, e ao jogar nós nos desprendemos do tempo sagrado e nos situamos no tempo humano. Não há como escapar a esse luto, tal qual o paciente de Moguillansky, a essa perda do lugar em que desejaríamos viver: o para sempre. E é o jogo que, desde priscas eras, vem cumprindo papel central nesta elaboração. Já nas mais antigas cerimônias fúnebres, os jogos e os brinquedos estavam presentes e tinham a função de capturar os espíritos vagantes, os fantasmas que se recusavam a deixar o terreno dos vivos, e, assim, enviá-los ao terreno dos mortos. E com isso evitar que eles, os antepassados, permanecessem enquanto "larvas" num eterno vagar, o que impediria tanto sua transformação em mortos quanto o realojamento de seus espíritos nos corpos dos recém-nascidos. Jogar, portanto, é aquilo que põe em andamento a instituição humana. Não por outra razão, o ato psicanalítico originário se deu com os sonhos e com os Lapsi linguae. Não são eles a manifestação mais pura e mais radical de todo jogo?

A ideia de transmissão só faz sentido no contexto vivo de uma cadeia genealógica na qual existem antepassados e vidas por vir, as novas gerações. O primeiro caso clínico descrito por Freud foi o de uma adolescente, Dora. Sua maior mensagem é a de que ele aprendeu mais com ela do que com todos seus professores. Aí está o espírito mesmo da psicanálise. É desse espírito que nossos institutos de formação devem ser os fiéis depositários, questionando sempre nossos saberes, jamais forçando e/ou deformando o significado da palavra nova para que ela caiba dentro de nosso vocabulário estabelecido. Termino citando Agamben:

Por isso, cabe recordar aos adultos que se servem dos fantasmas do passado só como espantalho para impedir que suas crianças se tornem adultos e que se servem das crianças somente como álibi para sua incapacidade de sepultar os fantasmas do passado, que a regra fundamental do jogo da história é que os significantes da continuidade aceitem intercambiarem com os da descontinuidade e que a transmissão da função significante é mais importante que os significantes mesmos. (Agamben, 2011, p. 124)

 

Referências

Agamben, G. (2011). Infância e história. Buenos Aires: Adriana Hidalgo.         [ Links ]

Benveniste, E. (1947). O jogo e o sagrado. Deucalion, 2, 165.         [ Links ]

Levy-Strauss, C. (1962). La pensée sauvage. Paris: Plon.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 3/4/2014
Aceito em: 24/5/2014

 

 

Marcio de Freitas Giovannetti nnetti@uol.com.br

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