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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.47 no.86 São Paulo jun. 2014

 

TEMA: TRANSMISSÃO DA PSICANÁLISE E REGULAMENTAÇÃO

 

A clínica e a transmissão da psicanálise

 

The clinic and the transmission of psychoanalysis

 

Clínica y transmisión del psicoanálisis

 

 

Berta Hoffmann Azevedo

Membro filiado do Instituto "Durval Marcondes" da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP. Presidente da Associação dos Membros Filiados do Instituto de Psicanálise da SBPSP, mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP e autora do livro Crise pseudoepiléptica, Casa do Psicólogo

 

 


RESUMO

O presente texto é uma reprodução da apresentação oral da autora no evento Encontro do Instituto realizado na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo em abril de 2014. A autora aborda o tema da transmissão da psicanálise e afirma os efeitos nefastos dos não-ditos institucionais criados pelos impasses políticos institucionais não elaborados. A clínica contemporânea é apresentada como exigindo a presença de analistas criativos, que possam inventar formas muito próprias de ser analista com cada paciente. O instituto de formação é entendido como um espaço que deve favorecer o surgimento de analistas autônomos e apropriados de sua clínica e os ideias institucionais enrijecidos do que deveria ser uma análise e um analista são apontados pela autora como entraves para a formação analítica.

Palavras-chave: transmissão da psicanálise, clínica contemporânea


ABSTRACT

This text is a reproduction of the author's oral presentation at the Institute's Meeting event held at the Brazilian Psychoanalytic Society in April 2014. The author addresses the issue of psychoanalysis' transmission and states the adverse effects of unspoken institutional impasses created by non-elaborated institutional politicians. The contemporary clinic is presented as requiring the presence of creative analysts who can invent their own ways of being analysts with each patient. The Training Institute is understood as a space that should favour the emergence of independent and appropriate analysts from its own clinic and the rigid institutional ideal of what should be an analysis and an analyst are pointed out by the author as barriers to analytic training.

Keywords: analytic training, contemporary clinic


RESUMEN

Este trabajo fue presentado de forma oral en un evento realizado en la Sociedad Brasileña de Psicoanálisis de San Pablo en abril de 2014, el Encuentro del Instituto. La autora aborda el tema de la transmisión del psicoanálisis y resalta el efecto nefasto de lo "no dicho" institucional que resulta de los impases políticos institucionales no elaborados. La clínica contemporánea se presenta exigiendo la presencia de analistas creativos que puedan inventar formas personales de ser analistas con cada paciente. El instituto de formación se entiende como un espacio que debe favorecer el surgimiento de analistas autónomos, capaces de apropiarse de su clínica y los ideales institucionales rígidos de lo que debería ser un análisis y un analista son señalados por la autora como obstáculos en la formación analítica.

Palabras clave: transmisión del psicoanálisis, clínica contemporánea


 

 

Obrigada pelo convite. É uma honra e uma responsabilidade poder compor esta mesa que se propõe a pensar a clínica e a transmissão da psicanálise no nosso Instituto. Assim que eu assumi a presidência da associação, encontrei o Leopoldo Nosek no elevador e ele me cumprimentou pela eleição brincando que não sabia se devia me dar parabéns, pois cargos dão um trabalho danado e implicam lidar com aspectos de muita delicadeza. Antes de sair, ele me deu uma dica mais ou menos assim: cuidado quando você vir um elefante na árvore. Pode parecer sem sentido, mas se ele está lá é por que alguém o colocou, e mexer com ele implica mexer em algo que outra pessoa fez. Considero essa uma dica preciosa sobre as delicadezas de se movimentar aspectos em uma instituição. E nos coloca um desafio: como fazer com que as ideias possam ser pensadas? Vou apostar que há como ir incluindo diálogos em oportunidades como essa pela qual eu gostaria de cumprimentar a Leda, a Marina, o Márcio e a Izelinda que, como eu, estão se propondo a essa tentativa.

A carta-convite do encontro da FEPAL propõe conversarmos sobre os enquadres praticados na clínica e a transmissão da psicanálise nos nossos Institutos. Não é qualquer elefante. Há pessoas preocupadas e trabalhando pela formação nesse Instituto há muitos anos. Eu vou pedir licença, então, para introduzir algumas questões, sabendo se tratar de um assunto espinhoso, sem soluções fáceis e que afeta diretamente a clínica de cada um de nós.

Eu fui chamada para falar aqui do ponto de vista do membro filiado. O problema é que "o membro filiado" não existe. Não existe a posição do "membro filiado". Não somos um grupo homogêneo, e é bom mesmo que não sejamos. Posso falar, então, do ponto de vista de um membro filiado, o meu. E claro, das ideias levantadas nas atividades da Associação e conversas com outros membros filiados.

Essa ressalva não é sem importância dentro da perspectiva que temos adotado na Associação dos Membros Filiados (AMF), que me parece também pertinente para essa fala. Temos sustentado a ideia da importância de se manter viva a diferença; não solucioná-la, mas fazê-la trabalhar. Temos pensado que a função maior da AMF é justamente a de manter vivo o estrangeiro, a possibilidade de um terceiro que abra para o reconhecimento de que não há completude narcísica possível dentro da instituição. Ela só pode existir como ilusão e cobrar um preço caro por isso. A tensão sempre presente entre a demanda que o membro filiado possa fazer para a instituição de amor, nomeação, preenchimento intelectual e narcísico e a contrapartida oferecida e cobrada pela instituição é sempre uma tensão existente que precisa de espaço para ser pensada.

Vamos então ao tema proposto quanto a pensarmos a clínica contemporânea e a transmissão da psicanálise em nosso Instituto, colocando em questão de que maneira a nossa formação pode favorecer que estejamos instrumentalizados para enfrentar a clínica e seus desafios contemporâneos. Entendo que uma marca da clínica contemporânea, pelo menos até onde tenho podido pensar a partir dos estudos e da vivência com meus pacientes, é que ela envolve necessariamente a criatividade do analista. Implica poder estar com o paciente onde ele se encontra, sem interpretações prontas, ajudando a construir uma linguagem possível num jogo que se cria especificamente naquele encontro. É uma clínica que exige uma consistência tal do analista que lhe permita construir com cada paciente um jeito muito próprio de funcionar. E é preciso muito rigor para não se manter rígido.

Quando pensamos o enquadre na clínica, ele existe por uma função. Bleger (1988) afirma que ele serve de sustentação, de marco, e que só é percebido tal como o amor e o bebê quando chora. Haveria nele uma dimensão consciente e outra inconsciente.

Roussillon (2006) propõe que o enquadre "simboliza a simbolização", "fabrica signos" na medida em que simbolizamos falando e por isso há a restrição de motricidade e percepção visual. Além disso, na medida em que o analista está fora do campo visual do analisando, ele convoca à simbolização da ausência, envolvendo a capacidade de estar só na presença do outro. O enquadre, portanto, diz muito de maneira muda, instaurando condições de simbolização.

Há situações em que, em meio a dificuldades no manejo com o caso, o analista se vê recorrendo defensivamente ao enquadre, como para se agarrar em algo quando lhe faltam outros recursos no momento. Quando se percebe a tempo, é possível suspender tal apego à forma para analisar o que está fazendo o enquadre "chorar". Algumas vezes, analisado o que está se passando, a dificuldade em relação ao enquadre se dissolve. Outras, é preciso escutar justamente a inadequação da aplicação do formato padrão a casos que exigem outro manejo.

Roussillon ainda propõe que, nas situações transferenciais nas quais a questão do sofrimento narcísico-identitário desempenha papel predominante, "as exigências originadas do enquadre e o modo de funcionamento ao qual ele impõe colocam o analisando numa situação de fracasso ou despertam as vivências históricas de fracasso de suas capacidades de simbolização", ameaçando "os arranjos psíquicos que o sujeito pôde empregar para atenuar os efeitos da situação traumática". Criam-se aí "situações-limite da psicanálise".

André Green (em entrevista para Urribarri, 2012), autor comprometido com os desafios da clínica contemporânea e com os limites da analisabilidade, formula haver no enquadre uma fração constante e uma variável, e que esta última, como o próprio nome sugere, tende a variar. A matriz ativa, aquela que deve se manter constante, diz respeito ao funcionamento fundamental do par analítico: a associação livre e a atenção flutuante. Para Green, "as variações do enquadre (e da técnica em geral) têm um sentido preciso: criar condições de possibilidade para o trabalho de representação, para o funcionamento da função dialógica. A volta às indicações da análise clássica significa um empobrecimento arriscado para a psicanálise" (citado por Urribarri, 2012, p. 218). Nesse caminho, Green desenvolve a noção de Enquadre interno.

Dentro dessa perspectiva, penso que o Instituto precisa funcionar como um facilitador para que sejamos analistas que criam, que se autorizam em sua clínica de maneira muito apropriada e que tenham acesso a discussões clínicas e teóricas que forem se fazendo necessárias.

Quando pensamos o formato da formação oferecida no Instituto, o primeiro ponto a ser levantado é sobre o papel que o Instituto deve ter. O que esperar dele? Quem deve se responsabilizar pelo percurso do membro filiado? Ele mesmo ou o Instituto? Em que medida? Qual a relação da Sociedade com seus membros filiados? Como eles são vistos? Trata-se de folhas em branco cujas marcas devem ser inscritas pela instituição ou podem eles trazer seus percursos integrados na busca que fazem ao entrar no Instituto? O membro filiado quando chega ao Instituto vem buscar algo, vem porque reconhece uma falta e há uma expectativa que o Instituto possa contribuir na sua construção singular como analista. O que o Instituto oferece? Uma autorização? Um grupo? Um espaço de pertencimento, debate e troca de experiências? Uma doutrinação? Um elemento fundamental a meu ver é que se possa oferecer embasamentos e espaços para que cada analista em formação possa se tornar um analista único, possa se apropriar de seu próprio saber. Talvez essa seja, afinal, a tarefa mais difícil.

Na análise, com nosso paciente, precisamos estar lá, vivos, respondendo por nosso trabalho sem convocar o nome da instituição para nos chancelar.

Estamos ali conduzindo análises, responsáveis pela transferência dos nossos pacientes e bancando manejos muitas vezes arriscados que envolvem os rumos de um processo analítico. Como a instituição pode favorecer essa apropriação autônoma da posição de analista?

No bem conhecido texto provocativo de Kernberg (2010) intitulado "Trinta maneiras de destruir a criatividade dos candidatos à psicanálise", o autor aponta o risco de uma formação que extermine a capacidade criativa de seus candidatos. O limite entre a formação e a formatação é realmente tênue e precisa ser cuidado. Um difícil limite para a instituição psicanalítica. Se por um lado nos oferece um fundamental suporte para a "solidão essencial" do analista em seu consultório, diante do paciente, por outro lado precisa estar atento ao risco de um enquadre possivelmente paralisante e empobrecedor. Oferecer parâmetros é diferente de massificar os candidatos em nome de um ideal. A existência de grupos identificados com tradições teóricas muito diferentes dentro de nossa Sociedade me parece um ponto forte da casa. O currículo composto de seminários eletivos também.

Se levamos a sério a função do Instituto em favorecer analistas apropriados de sua clínica e não apenas reprodutores de um modelo, a tendência a resolver os impasses institucionais com normatizações perde o sentido. O excesso delas no que diz respeito ao que é ou não um analista, ao contrário de constituí-lo, nos afasta irremediavelmente da "verve" psicanalítica.

Para fazer frente aos impasses da clínica, o analista precisa ter liberdade para pensar e formular suas questões.

Nos eventos organizados pela Associação para conversas horizontais e nos corredores, realmente parece que a afirmação da carta da FEPAL faz muito sentido: a clínica de quatro a cinco vezes por semana para a maioria de nós não é predominante. Pelo que conversamos com colegas membros já da Sociedade me parece que isso não é privilégio dos membros filiados.

O que penso é que, conforme afirmou Moguillansky (2014) em seu texto, não es tá aí a marca da psicanálise ou o que a caracteriza. Sua marca está dada pela ética própria que define sua escuta. A escuta de um psicanalista não deseja para o paciente um caminho de cura a priori, deseja apenas que uma análise ali se dê. Em sua apresentação no Encontro de Institutos, Moguillansky nem se ocupa propriamente dessa querela de três, quatro ou cinco vezes por semana, ele situa o essencial aí, nesse ponto da ética. Ele afirma:

A psicanálise que penso que temos que transmitir não teria que ter entre seus propósitos conseguir doctos, mas seres que descubram com perplexidade sua singularidade, sua ignorância, o que não entendem, que se perguntem, que inclusive admitam o absurdo; que despertem da sonolência, essa pequena morte que é a resignação e o conformismo. (Moguillansky, 2014, p. 30)

Quando penso nessa temática da frequência de sessões, penso que muitas vezes ela acaba ganhando maior relevância do que o efeito subversivo que essa ética tem sobre o sujeito. Como garantir que esse efeito subversivo se dê? Como favorecer, afinal, que uma análise se dê? Essas, me parecem, são questões que devem compor uma formação consistente. Penso que é preciso encontrar junto ao paciente um ritmo de encontro que permita que o "desconcerto" próprio da análise se dê. Falo em "desconcerto" porque entendo ser esse o efeito esperado de uma análise em curso. Não penso que esse ritmo a ser encontrado seja universal. Talvez um ponto sobre o qual pudéssemos conversar mais em nossos seminários seja este: de que maneira nós, analistas, membros do Instituto ou já da Sociedade, fazemos para determinar a indicação de frequência para os nossos pacientes? E que pudéssemos conversar sem que esse fosse um tema tabu, que dividisse os grupos em posições ideológicas que impedisse a troca criativa. Clinicamente, quando recebemos um paciente comum que chega com seu sofrimento para ser escutado, como fazemos para definir uma frequência boa de trabalho? Já sabemos a priori o que será bom para aquela análise, ou construímos no encontro essa indicação? Estamos tendo espaço no Instituto que favoreça estarmos preparados para essas situações em nosso dia a dia? Penso que o impasse político que toca o assunto da frequência de sessões em nossa Sociedade atrapalha nosso ambiente formativo em relação ao tema, de maneira que as conversas sobre as conduções clínicas nesse quesito tendem a ser poluídas pela delicadeza do impasse relativo às análises de formação.

Pergunto-me: qual o risco envolvido no debate sobre o enquadre da formação? Será que a consistência de nossa formação ficaria ameaçada se nos debruçássemos a pensar o sentido e a função do número de sessões em uma análise? Como psicanalistas, sabemos dos efeitos nefastos de um tema sobre o qual não se pode falar. Vão se criando regiões inteiras não pensáveis, circuitos associativos impedidos de se percorrer que, isso sim, ameaçam nossa formação.

Obturar a possibilidade de debate com a lógica da tradição, do "tem sido assim há tanto tempo", sem poder de fato considerar o que tem estimulado o tema, não seria como não ouvir o paciente agarrando-se defensivamente ao enquadre?

Uma das experiências formadoras fundamentais de um analista é a troca sobre a clínica: ouvir e falar sobre o que de fato se faz na clínica. Os ideais enrijecidos do que seja uma análise e um analista dificultam esse compartilhamento franco e vão criando regiões muito abrangentes de não-ditos institucionais que se tornam entraves para a formação.

Para que um membro filiado possa se autorizar como analista, penso que é preciso encontrar saídas para as idealizações construídas sobre o que é ser analista. Ser analista é uma tentativa a cada nova análise que se inicia e a cada sessão. Estamos todos nessa condição, estamos todos pressionados pela condição do mundo e da clínica para inventar maneiras de ser analistas em cada situação. Precisamos falar disso.

Penso que o convite proposto pela carta da FEPAL de suspender o fazer para apenas pensar possa ser uma saída. Desejo que consigamos aceitá-lo mais vezes!

 

Referências

Bleger, J. (1988). Simbiose e ambiguidade (3ª ed.). Rio de Janeiro: F. Alves.         [ Links ]

Kernberg, O. (2010). Trinta maneiras de destruir a criatividade dos candidatos à psicanálise. Revista Percurso, 23(45),13-24.         [ Links ]

Moguillansky, R. (2014). A transmissão da psicanálise e a prática analítica atual. Jornal de Psicanálise, 46(85),27-34.         [ Links ]

Roussillon, R. (2006). A "linguagem" do enquadre e a transferência sobre o enquadre. Colóquio da Sociedade Psicanalítica de Paris - 80º aniversário (Mutualité). Paris, 18 de novembro.         [ Links ]

Urribarri, F. (2012). André Green: a clínica contemporânea e o enquadre interno do analista (entrevista realizada por Fernando Urribarri). Revista Brasileira de Psicanálise, 46(3),215-229.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 3/4/2014
Aceito em: 12/5/2014

 

 

Berta Hoffmann Azevedo bertaazevedo@terra.com.br

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